Capítulo 4
— Preciso de um favor seu — disse assim que a porta se abriu.
— Ah, oi! Eu estou bem, obrigada por perguntar — Eylem respondeu me dando passagem.
Fingi não notar seu tom de deboche ao se dirigir a mim, apenas entrei na casa deixando o frio do lado de fora, sendo recebida por um calor aconchegante vindo da lareira, e um cheiro delicioso de carne recém saída do forno.
Parei assim que pisei no tapete marrom felpudo que cobria grande parte do centro da pequena sala, havia duas poltronas com estofado no assento e braços de madeiras ao lado da lareira, sobre ela — na parede de pedra — estava um quadro pintado, de Ariost e a esposa, já falecida — os avós de Eylem, e pais de Vasti. A porta que levava até a cozinha estava entreaberta, aumentando ainda mais a percepção do cheiro de comida recém feita
Olhei para a garota que acabara de fechar a porta atrás de si, selando o frio do lado de fora. Seu olhar de deboche mudara para curioso, e ao mesmo tempo preocupado. Ela me conhece desde criança, crescemos juntas, e sabemos identificar quando algo não estar certo conosco.
Eylem estava com os cabelos negros presos em uma trança, uma camisa branca e larga em seu corpo esguio, uma calça preta de couro, e uma bota. Sua pele morena estava levemente corada, o que me fez crer que ela esteja fazendo o jantar.
— Me desculpe — ela pediu quando viu minha expressão aflita. — Soube da reunião, minha mãe me contou a pouco. Ela veio só trocar de roupa e voltou para prepararem sua partida. Saiba que eu também vou e...
— Você não vai — a cortei.
— O que? Como assim não vou? Eu posso ser útil..
— Sei que pode. E por você ser a única com tamanha habilidade, que goza de toda a minha confiança, que vim lhe pedir isso — disse receosa.
Embora ter Eylem ao meu lado durante essa viagem seja algo tentador, tenho outra tarefa mais importante para ela, algo que caso saia de controle pode mudar o rumo de tudo, e terminar em uma tragédia maior ainda.
— Pedir o que exatamente? — ela me olhou temerosa.
— Você já vai descobrir.
★★★
O dia amanheceu mais frio e sombrio do que nunca, senti calafrios ao pensar que isso seja um mal presságio de minha partida, que talvez eu deva desistir. No entanto, agora é tarde demais para isso.
A ponte estava escorregadia, o rio abaixo congelado, e do outro lado era possível ver apenas pequenos pontos pretos em meio a imensidão branca. Uma comitiva me seguia, ao meu lado Bert e Howard cavalgavam em silêncio.
O vento gélido castigava meu rosto, me trazendo a sensação de agulhas fincando minha pele. O casaco negro e o capuz, não eram capazes de afastar a sensação desconfortante do gelo. A ponte era uma grande construção de madeira e aço, leva exatos cinco minutos para atravessa-la andando ou cavalgando lentamente — o que é o nosso caso.
E esses foram os cinco minutos mais agonizantes de minha vida. Minutos que passei relembrando meu dia anterior repetidamente, me martirizando. E por mais que eu buscasse afastar as lembranças recentes, meu cérebro as trazia de volta, fazendo com que minha agonia aumentasse a cada instante.
O momento em que o rei disse que meu pai está vivo, que ele aguarda ansioso para voltar para a casa, porém ainda não pode viajar —, isso para mim foi um presente. Meu pai vivo... Até ontem pensava que o havia perdido para sempre, que ele estava morto. Mesmo se o conselho não permitisse minha partida, eu iria atrás dele, desistiria do título de governante do Desert, e partiria para revê-lo.
No entanto, ainda tenho receios quanto a essa aliança com Morningh. E aceitar essa trégua, e uma possível união de nossos povos novamente está me custando caro. Tive que ouvir inúmeros sermões e ameaças de minha mãe, logo após dizer "sim" a Kian, e ele partir para o acampamento perto da fronteira — ponte.
Os Drak também não aceitaram tal decisão, principalmente os anciões, já que eles guardam rancor de Morningh, e do rei Taras, o responsável pela maldição das Yeborath. Contudo, eu ainda tenho o poder sobre eles, ainda posso tomar as decisões que achar melhor... Só não sei por quanto tempo.
O ressoar dos cascos dos cavalos sobre a madeira acompanhavam as batidas afoitas e impacientes do meu coração. Elas pareciam um lembrete do que me aconteceria se tudo desse errado, se for uma armadilha.
Atrás de mim, estava Eylem, pronta para cumprir a missão que lhe dei. Logo atrás minha mãe trazia um semblante de ódio no rosto, Ettore e os outros conselheiros se despediram antes de sairmos. Vasti ficou contente pela filha não me acompanhar, ficando segura em nosso lar. E embora Vasti tenha se oferecido para me acompanhar, não permitir que se arriscasse, ordenei que ela ficasse e ajudasse a administrar o Desert até minha volta.
Já minha mãe, veio apenas para me lembrar a todo instante que eu estava cometendo uma estupidez. Sua presença era um aviso silencioso do que me aguardava caso eu falhasse.
Quando finalmente chegamos ao final da ponte, Kian me esperava ao lado de Thierry. Uma pesada capa lhe cobria as roupas, deixando apenas o cabo da espada a mostra, ele não estava usando coroa, e seus olhos azuis pareciam duas pedras gelo ao me avaliarem enquanto descia do cavalo e me aproximava.
— São todos que irão? — ele perguntou olhando sobre meus ombros.
— Sim — respondi simplesmente. — Não preciso de mais do que isso para mata-lo se necessário — dei de ombros. Em resposta recebi um meio sorriso.
Duzentos guerreiros, era a quantia que iria me acompanhar até o reino de fogo — como era chamado há séculos atrás. Ele trouxe duzentos para o Desert de Neu, nada mais justo que levar duzentos para Morningh.
— O que eu disse é verdade — Kian me olhou sério. — Se algo acontecer a Thierry...
— Você marchará com seu exército, e queimará nossas cidades — disse com um tom sarcástico. — Você já disse isso.
— É bom que se lembre — ele disse por fim.
— E é bom que se lembre também do que eu lhe disse — o ameacei.
Dois líderes lutando para o bem de seu povo — era o que estávamos fazendo. E não o culpo pelas ameaças, também irei fazer as minhas quando necessário, e principalmente cumpri-las caso precise. Por um segundo me perguntei, como seria se ele dominasse o fogo — como seus ancestrais — e nos enfrentássemos. Fogo e gelo... Não consigo pensar em quem venceria, só no estrago que faríamos. Quase sorri diante da ideia.
Ao seu lado Thierry estava calado, o maxilar travado a medida que observava nossa conversa. É bom que ele esteja com medo, isso evitará que ele cometa alguma estupidez.
Senti alguém se aproximar e se posicionar ao meu lado. Pelo canto do olho vi Eylem inspecionar o jovem guerreiro que seria nosso hóspede.
— É ele? — ela perguntou-me. Apenas assenti. — Não será uma tarefa difícil.
Apesar dela estar tentando intimida-lo, eu sabia que o rapaz não teria nenhuma chance contra a garota, mesmo Eylem não possuindo magia.
— Do que ela está falando? — Kian perguntou.
— Eylem será encarregada de cuidar de seu amigo — respondi.
Kian a olhou dos pés a cabeça. Me perguntei qual terá sido sua conclusão, já que a garota carregava tantas armas presas em seu corpo, que me faz pensar como ela ainda consegue andar.
— Cuidar de que forma? — ele estava apreensivo, assim como seu guarda.
— Da forma que o impeça de cometer alguma estupidez, ou que alguém do Desert cometa — respondi.
— Não confia em seu povo? — senti uma pontada de provocação em sua voz.
— Não quando o assunto é Morningh — respondi friamente.
E realmente não confio, principalmente em minha mãe e em meu primo.
— Espero que isso não seja nenhuma armação — Kian me olhou fixamente.
— Digo o mesmo a seu respeito — o encarei de volta.
Kian pode ter vindo pedir minha ajuda, mas ficou claro que ele não confiava em mim, muito menos em meu povo. Então não consigo compreender porquê ele confiou em meu pai. Quanto mais penso a respeito disso tudo, menos sentido faz.
Minha mãe não pode estar certa. Isso não pode ser uma armadilha.
— Vamos logo com isso — disse impaciente a medida que afastava minhas dúvidas. — Eylem, já sabe o que fazer — me virei para ela que apenas assentiu. — Estarei de volta dentro de quinze dias ou menos, cuide para que nada saia do controle..
— Não se preocupe, farei tudo como ordenado — ela respondeu.
Olhei para o guarda que trajava o mesmo uniforme preto com detalhes vermelho, uma capa marrom simples estava sobre seus ombros, no entanto consegui ver as armas que ele carregava. Ele estava pálido, apesar de sua pele levemente bronzeada, seus lábios estavam brancos — talvez pelo frio, ou medo de sua estadia em nossas terras. Os cabelos castanhos estavam meio bagunçados e ao redor de seus olhos claros, havia olheiras que denunciavam sua noite mal dormida.
— Entregue as armas para ela — disse para Thierry.
— Como? — sua voz quase não saiu.
— O que você ouviu. Ande logo — ordenei.
— Obedeça — Kian disse a ele.
Com uma careta de desgosto e raiva, Thierry retirou o cinto que prendia a espada e algumas adagas e os entregou a Eylem.
— Já que terminamos por aqui, podemos ir? — Kian perguntou.
— Boa sorte — Eylem dirigiu um olhar confortante para mim.
Acenei com a cabeça em concordância. Peguei as rédeas de meu cavalo que estava com Bert e o montei, Kian fez o mesmo com o seu.
— Não se preocupe, vai dar certo — ele disse a Thierry.
— Não sei quem é mais estúpido — o soldado respondeu. — Você com esse seu plano idiota, ou eu por segui-lo.
— Me faço a mesma pergunta — Kian sorriu, em seguida saiu cavalgando em direção aos soldados que o aguardavam para a partida.
— Só tenho um aviso — uma voz feminina me trouxe calafrios.
Esqueci-me da presença de minha mãe. Olhei para o lado onde ela estava sobre uma égua marrom, seu cabelo estava preso em seu habitual coque, uma capa azul escura cobria sua roupa de montaria.
— Se você não regressar dentro de quinze dias — ela prosseguiu — os Drak terão um novo líder.
— Está me ameaçando? — sibilei.
— Estou lhe dizendo que será o preço a ser pago caso sua ideia estupida der errado — ela respondeu friamente.
— Ela não dará. Trarei meu pai de volta para casa, e então iremos nos preparar para receber as Yeborath — rebati tentando soar confiante.
— É o que veremos — ela respondeu se virando para voltar para casa.
De cima de meu cavalo, observei Eylem e Thierry montarem em seus cavalos e seguirem de volta para nossa aldeia. Permaneci parada enquanto nossas tropas se mexiam rumo a nosso novo destino, Bert e Howard aguardavam ao meu lado, como duas sombras esperando para me seguirem.
Respirei fundo tentando acalmar os batimentos do meu coração e o tremor de meu corpo. A ansiedade e o medo já estavam me consumindo, e isso só atrapalharia meu raciocínio. Aos poucos consegui estabilizar minhas emoções, olhei em volta, para o meu povo que eu estava conduzindo para o desconhecido, e temi por cada um deles. O que me consolava era pensar que ao final de tudo isso, terá valido a pena.
Segui para o campo prateado de soldados, a media que o marrom dos Drak se misturava ao metálico de suas armaduras. Bert e Howard seguiram ao meu lado até alcançarmos o rei, me posicionando ao seu lado, com meus guarda costas logo atrás.
Pelo canto do olho vi Kian me olhar rapidamente, e em seguida desviar o olhar. Por alguma razão que desconheço, me lembrei das palavras de Thierry, sobre o plano de Kian ser algo idiota, e me perguntei se ele também não acreditava na possibilidade de unirmos forças.
Automaticamente o aviso de minha mãe me trouxe um calafrio. Não posso falhar — repeti a mim mesma. Ir à Morningh; trazer meu pai de volta para a casa; negociar uma possível aliança; vencer Meliha e seus exércitos. Simples — tentei me convencer.
Meu coração começou a bater descompassadamente, só pensar na possibilidade de meu pai estar vivo, fez meus olhos arderam, contudo, afastei as lagrimas que ameaçavam cair.
— Vamos pela Floresta de Orvalho — Kian começou a falar depois de alguns minutos, ou horas. — Fazemos uma parada em Alphard, depois pegamos a Trilha Vermelha.
Levaríamos dias para chegar em Morningh desse jeito. Talvez o desespero tenha me consumido e tirado todo meu juízo. Desespero e medo de perder para Ettore, de voltar para casa depois do prazo que minha mãe estipulou, ou apenas ansiedade para rever meu pai. Sim... Foi tudo isso que tirou minha sanidade e me fez abrir a boca para dizer a maior estupidez de minha vida.
— Iremos pela Floresta Cinza.
E de repente, o ar, a neve, o tempo, tudo, pareceu parar. Pois eu acabara de dizer que iriamos cruzar a Floresta Cinza, o lar das Colchis; Terra dos Demônios.
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