Capítulo 3
Minha mãe encarava Ariost com os olhos franzidos em descrença. Já o velho conselheiro, que servira meu pai tantos anos, que era como seu irmão mais velho, e ainda é como um avô para mim, continua com sua expressão serena, enquanto olha em minha direção esperando uma resposta.
O que você quer fazer? — foi sua pergunta.
O que eu quero fazer em relação a toda as nossas descobertas? O que eu quero fazer em relação ao convite do rei? Se eu irei acreditar que o meu pai está vivo? Se irei confiar em um estranho que carrega o sangue do homem que nos amaldiçoou?
Ariost permanece alheio — ou apenas ignorando — a fúria de minha mãe. Ele é o mais velho do conselho, seus cabelos curtos já estão brancos, denunciando sua idade avançada, ao redor de seus olhos escuros rugas marcam sua pele negra. Seu corpo esguio e magro está curvado sobre a mesa, enquanto seus cotovelos estão sobre ela, ele apoia o queixo sobre as mãos unidas, sua atenção totalmente voltada para mim.
Seu casaco de couro escuro já está gasto, assim como as botas pretas e a calça marrom — ele nunca foi apegado as coisas materiais. Ao contrario de meu primo, Ettore, que está vestindo as roupas mais finas que ele deve ter encontrado quando soube da reunião com o rei. Em sua calça preta, é possível ver um cinto de couro, onde ele carrega uma adaga. Suas botas parecem recém polidas, o casaco azul escuro que cobre até metade de suas coxas, está aberto, revelando uma camisa impecavelmente branca por baixo.
Enquanto Ariost me olha com esperança, Ettore espera um deslize meu para voltar ao assunto de sempre: eu não tenho capacidade de governar uma nação. Ele passa a mão sobre o cabelo castanho em um corte curto, demonstrando impaciência, a medida que seus olhos — também castanhos — me inspecionam. Sua estatura de guerreiro passa a imagem de líder que muitos esperam ver, no entanto, eu sou à primeira no comando.
Pelo fato de eu não ter mais irmãos, e meu pai não ter sobrinhos, Ettore foi escolhido como um possível substituto, caso algo aconteça comigo. Sendo ele um dos melhores guerreiros do Desert, e sobrinho de minha mãe, o conselho o declarou adequado para o cargo. Eles só se esqueceram se estudar seu caráter e ambição.
A sala na qual estamos é menor do que a que recebemos o rei, essa é usada somente para reuniões do conselho. O ar aqui parece mais pesado, o cheiro de livros velhos e empoeirados preenchem o ambiente, devido as varia prateleiras com diferentes tipos de livros por toda a sala. A única janela que possibilita a passagem de luz do dia encontra-se aberta, contudo, são as velas nos candelabros que iluminam o ambiente com mais eficiência.
Uma mesa com cinco lugares está no centro da sala, no chão um tapete vermelho vinho cobre grande parte do assoalho de madeira. Um grande mapa do Desert de Neu está pregado na parede principal, na parede do lado encontra-se outro de toda a nossa vizinhança, incluindo Morningh.
Deixamos o rei e seus acompanhantes sobre os olhos atentos de nossos guerreiros, no salão principal, onde os recebemos. Temos que discutir esse assuntos com total privacidade, já que qualquer decisão tomada será arriscada.
— E então, Atali? — minha mãe corta o silêncio que se fez desde a pergunta de Ariost. — Estamos esperando sua resposta.
Eu não sabia o que responder.
— O que vocês fariam em meu lugar? — foi a única coisa que encontrei para dizer.
A insegurança e o medo já estavam me dominando.
— O que nós faríamos? — Ettore riu com escárnio. — Para começar, aquele garoto metido a rei nem teria pisado em nossas terras.
— E se ele estiver certo? — Vasti perguntou o encarando.
Olhei para ela com um olhar agradecido que ela compreendeu imediatamente. Ao que parece tenho dois aliados neste jogo.
Ettore encarou a mulher com um misto de raiva e deboche, Vasti por sua vez sustentou seu olhar com determinação. Já seu pai, Ariost, não gostou do olhar que meu primo direcionara à sua filha.
No entanto, ela continuava a fita-lo, sua calma sendo substituída por uma expressão de ódio a medida que o sorriso presunçoso de Ettore aumentava. Esperei, e torci para que ela perdesse a calma e usasse uma cadeira para fazer com que aquele sorrisinho desaparecesse da cara dele, e com sorte arrancar um ou dois dentes de sua boca.
Vasti, diferente de minha mãe não é uma guerreira, sua maior arma é sua mente afiada e seu raciocínio brilhante. Ela é uma estrategista, ao contrario da filha, que é uma das melhores de nossa geração, o que contraria sua mãe, já que ela preferia ver a garota em uma biblioteca do que em um campo de batalha.
— Acho que a idade está afetando suas habilidades de raciocínio — Ettore riu.
— Não ouse desrespeitar minha filha seu moleque — Ariost se levantou de seu assento.
— Não se preocupe pai — Vasti sorriu. — Ele só está preocupado. Caso Atali traga o Conan de volta para casa, o povo do Desert jamais voltará a questionar sua capacidade de líder. E o pobre garoto não poderá mandar em nada aqui — ela sorriu com triunfo.
Foi inevitável conter meu sorriso de satisfação, Ettore seria capaz de colocar fogo na sala apenas com o olhar, mesmo seu poder sendo o gelo. Vasti está certa, e por isso ele não pode conter sua reação de ódio.
Ainda não realizei nem um ato grandioso que provasse meu verdadeiro valor para meu povo, tudo que eles veem é uma garota que possui grandes habilidades em combate, mas isso é o que mais temos no Desert.
Mesmo eu sendo a líder dos Drak por direito de sangue, não há nada que os impeçam de me tirar dessa posição. Por isso preciso de meu pai aqui, não me perdoaria se a segurança e o destino de meu lar fosse para as mãos ambiciosas de meu primo.
— Já chega — minha mãe se alterou. — Estamos aqui para uma votação. E eu voto não. Não vou mandar minha única filha para terras estrangeiras, e esperar com que eles mandem sua cabeça de volta para a casa — seu olhar estava direcionado em minha direção agora.
Estremeci diante da possibilidade dela estar certa, disso tudo ser uma armadilha. Minha mão apertou o cordão de meu pai, por baixo da mesa com mais força.
Me ajude pai — clamei mentalmente.
— Ele trouxe o cordão como prova — Vasti interveio. — E se o Conan estiver vivo? Nosso líder... Seu marido, o pai de sua filha — ela sibilou.
— Um cordão não prova nada. Eles podem estar aliados com o povo de Acrab, e ter pego esse cordão do cadáver dele — a voz de minha mãe falhou por breves segundos.
Sei como isso é doloroso para ela; sei que ela chora todas as noites quando está sozinha; como ela sente a falta dele. E sei também, que sua desconfiança e ódio pelos Rein não permite que ela confie neles, nem mesmo em momentos como esses.
— Estão se esquecendo do que ele falou? E se Meliha realmente invadir o Desert de Neu? — indaguei.
Havia a possibilidade de meu pai estar vivo, e também de um clã imortal de bruxas aliadas a um rei ambicioso e um assassino sanguinário estarem prestes a marcharem para nossa casa.
— Tolice — minha mãe emitiu um estalo de língua. — Outra prova de que ele não é confiável.
— Na verdade, isso é outra prova de que devemos averiguar tudo isso com cautela — Ariost interveio. — Caso venha uma guerra, iremos precisar de aliados.
— Prefiro ver o Desert consumido em chamas do que me aliar a um Rein — ela disse com ira.
— Por isso você não é nossa líder — Vasti abriu um pequeno sorriso.
— Não...
— Basta — as interrompi. — Estamos aqui para uma votação. E como Ariost disse, isso tudo precisa ser averiguado com cautela. Ao contrario de você, mãe — a encarei — eu enfrentaria o próprio Agnih, desceria no inferno e confrontaria Anaon, mas não permitiria que meu povo perecesse.
Seus olhos se arregalarão com menção aos deuses do fogo e do submundo. Desde que me lembro, ninguém os mencionam, principalmente Agnih, o deus do fogo. Muitos contam historias, de que quando os Drak romperam o acordo com os Rein, nossos deuses também passaram a se odiarem. Mas para mim isso são apenas histórias para crianças curiosas, já para outros se tornou uma afronta a deusa do gelo, dizer o nome do deus do fogo. Tolos supersticiosos.
— Agora que tenho o silencio e a atenção de vocês, vamos continuar — disse depois do silêncio que durou alguns minutos.
— Meu voto também é não — Ettore sorriu para minha mãe.
Típico — quase disse em voz alta. Ettore sempre segui minha mãe como um cachorrinho obediente.
— Pois eu voto sim — Vasti se direcionou a mim. — E eu me ofereço para ir com você até Morningh.
— Você...
— Sim — Ariost cortou a fala de minha mãe. — Meu voto também é sim. Se há uma mínima chance, um gota de esperança de que meu amigo esteja vivo, eu ariscarei um voto de confiança no jovem rei.
— Vocês estão malucos — minha mãe vociferou. — Todos vocês estão. Atali, não ouse acompanha-lo até aquela terra amaldiçoada.
— Uma terra onde meu pai pode estar morrendo agora — rebati.
— É muito perigoso, não temos nenhuma garantia da parte deles — ela disse com a voz áspera.
— Não se preocupe eu sei o que estou fazendo. Caso algo dê errado, eu tenho a Ruray...
— Ruray?! — a pergunta de minha mãe saiu entre uma risada de descrença. — A Ruray não irá a lugar algum, ainda mais para Morningh. Se Meliha descobrir sobre ela...
— Tudo bem — a interrompi. — A Ruray fica, eu não preciso dela, sei me defender sozinha.
No final, ela estava certa, seria loucura leva-la para Morningh, contudo, se algo der errado Ruray irá em meu auxílio, mesmo contra minha vontade. Porém, não sei o que dizer ao rei, ainda não consegui me decidir, e essa discussão toda só piorou ainda mais essa dúvida.
Ariost tem razão, se existe alguma possibilidade de meu pai estar vivo, eu preciso traze-lo para casa. Ele faria o mesmo por qualquer um de nós, não posso permitir que as desconfianças e ódio de minha mãe me impeçam de salva-lo.
Será que ela não entende?! É meu pai... Jamais viraria as costas para ele.
— Isso quer dizer que você vai? — seu olhar era severo.
Meu coração acelerou. A decisão agora era minha.
★★★
— Você já se decidiu? — Kian estava parado à minha frente agora.
Estávamos de volta ao salão principal, nós cinco sentados à mesa, e Kian a alguns metros à espera de uma resposta.
A noite estava se aproximando, pela janela aberta era possível ver os fracos e alaranjados raios de sol que desapareciam no horizonte, enquanto em nosso lar a neve havia parado de cair por alguns instantes.
A sala agora estava mais escura e quente, ou apenas o clima parecia ter mudado devido a tensão palpável que se instalara no ambiente.
— Caso eu vá até Morningh, que garantias eu teria de que não é uma armadilha? — perguntei.
Já havia feito minha escolha, entretanto, duvidas ainda me perturbavam.
— Por que eu me daria ao trabalho de deixar meu reino no meio de uma guerra, para vim até aqui atrai-la para uma armadilha? — ele perguntou.
— Talvez para poder fazer uma troca com Meliha, sabemos que ela nos odeia tanto quanto odeia você. E somos sua única fraqueza — disse convicta.
Kian ficou em silêncio.
— Tudo bem. Tem razão — sua voz saiu com pesar. — Venha à Morningh, você e quantos guerreiros queira trazer. E como garantia de seu retorno, Thierry ficará aqui.
O soldado pareceu engolir o próprio ar ao ouvir a fala de seu soberano.
— Kian — ele falou quase em um sussurro. Era uma súplica.
Pude ver em seus olhos o pedido silenciosos: por favor, não me deixa aqui.
Só então percebi que eles não eram apenas rei e súdito, ou rei e soldado. Havia algo a mais na relação dos dois, talvez amigos, irmãos — de mães diferentes —, ou até mesmo algo mais forte que isso.
E a forma como ele o defendeu durante a discussão, como me enfrentou, mesmo correndo o risco de terminar com uma estaca de gelo atravessada em seu peito, tudo isso confirma minhas suspeitas.
— Que valor um soldado teria em comparação a vida de minha filha? — minha mãe o encarou.
— Thierry é como um irmão para mim, jamais faria isso se não fosse extremamente necessário — ele a respondeu. — E caso algo aconteça a ele, eu não me importaria de fazer meus exércitos abandonarem Morningh e marcharem para cá. Não me importaria, em massacrar seu clã, em queimar tudo nesse deserto gelado — sua voz estava grave, como a de um verdadeiro rei.
— Está me ameaçando? — semicerrei os olhos.
— Estou lhe avisando. Eu quero uma aliança entre nossos povos, mas também posso mudar de ideia. Não serei o único a sacrificar algo para isso dar certo.
Isso bastou para mim.
— Tudo bem — disse me levantando de meu assento. — Eu aceito. Partiremos ao amanhecer, e reze para seus deuses, por que caso eu desconfie de algo, seus súditos receberam uma estatua de gelo no lugar de seu rei.
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