Capítulo 21
Minha cabeça rodava, minha visão estava embaçada, e não me lembrava onde minhas espadas estavam. Não recordava o que havia acontecido, por qual motivo meus braços doíam tanto, e porque minha perna parecia arder em chamas. Não ouvia nada, minha garganta estava travada, e nem ao menos um gemido de dor escapava de meus lábios.
Minha última lembrança era de meus companheiros lutando bravamente contra os slengs, e a breve visão de Eylem sendo arremessada contra uma roxa, lembro de um rugido alto, e de Bert correr ao meu encontro. Lembro-me dele dizer algo sobre " meu dever era sobreviver".
Me recordo de correr até Howard quando o primeiro cão de guarda o atacou, quando atravessei uma estaca de gelo em sua boca que já estava aberta pronto pra mata-lo. O grito de dor da criatura ecoou dentro de mim, seus olhos vermelhos permaneceram fixos em meu olhar, mesmo quando o corpo sem vida da besta caiu sobre a neve.
Fora sorte. Talvez, realmente Atali estava cuidando de nós, pois um Bastikis não morria tão facilmente, sua pele era mais dura que o aço, resistia ao fogo, gelo, metal e a magia. Mas eu fora sortuda, acertei o único ponto que se mostrava vulnerável: sua boca. Howard se virou ofegante em minha direção assim que a besta caiu a seus pés, seu semblante estava apavorado e confuso, embora houvesse um lampejo de agradecimento em seus olhos castanhos.
Eu matara uma cão de guarda de Penaty; a floresta dos pesadelos; o vale do desespero; a casa dos monstros; o lar da morte e sofrimento; o deserto de chamas; o lago vermelho; a porta para o submundo.
Cinco estavam em Neu, agora quatro. Embora pudessem ser menos, afinal, eu matei um, era possível que outros pudessem ter morrido, já que há melhores guerreiros que eu entre os Drak. Porém, apesar de quase inconsciente, uma coisa eu pude ter certeza: Meliha nascera do inferno, e queria trazê-lo para nosso mundo.
Lembro de correr novamente até o penhasco e ver várias casas em chamas, logo em seguida um sleng me atacara me lançando conta o chão, de relance pude ver que a neve já não era mais branca, pois possuía várias tonalidades, entre elas o vermelho que corria em nossas veias. Uma flecha certeira de Eylem acertou o olho da criatura, me dando tempo de recuperar meu raciocínio e cortar a cabeça do demônio com uma lâmina de gelo.
A batalha ainda estava apenas no início, mas a exaustão já estava nos consumindo. A neve havia parado de cair, porém o céu ainda permanecia oculto por nuvens pesadas, e o vento soprava cada vez menos frio.
Cinco slengs cercaram Eylem no exato momento que me pus novamente de pé, concentrei meus poderes na neve sob meus pés e o irradiei sobre ela, até que ele alcançasse as criaturas, congelando-as dos pés a cabeça. Com um único golpe minha amiga as destruiu, fazendo com que estilhaçassem como cristais.
Rodwell e Rallwen lutavam lado a lado contra uma horda de slengs. Era impossível distinguir os gêmeos durante o calor da batalha, os mesmos cabelos loiros e a pele pálida, eram completamente iguais, até mesmo a estatura mediana. Rodwell possuía uma cicatriz pequena abaixo do olho esquerdo, e era mais brincalhão do que o irmão, no entanto nem uma dessas características se mostrou durante o calor da batalha, então, era impossível saber qual dos dois havia empalado um sleng atravessando espinhos de gelo por todo seu corpo, fazendo com que as asas ficassem abertas. Talvez fosse Rallwen, já que era o irmão com o senso de humor mais perverso.
Tierry provavelmente não tinha boas recordações dos gêmeos que o escoltaram de volta para a casa. Embora eles não se importavam com o que houve no passado de nosso povo, Rodwell e Rallwen jamais deixariam passar a oportunidade de importunar um estrangeiro.
Porém, agora não havia oportunidade de ambos mostrarem seu lado travesso, apenas sua face mais cruel e perversa. Embora, creio, que em uma batalha o lado perverso de cada um seja o único que deva ser revelado.
Nossa geração jamais presenciou uma batalha, e agora estávamos lutando uma guerra, nossas chances de vencer, era infundadas, mas iríamos lutar, porque o que o tempo não pôde tirar de nós, foi o espírito guerreiro.
A batalha não estava perdida... a batalha não estaria perdida enquanto um Drak permanecesse de pé.
Respirei fundo, minha magia estava dormente, assim como meu corpo que era arrastado sobre a neve fria. Neve... gelo... magia... O gelo que formava a neve sob meu corpo era o mesmo que corria em minhas veias...
Concentrei toda as minhas últimas forças sobre meu corpo, levei minha mente até as pontas dos meus dedos, e senti... Senti a neve entre meus dedos, fria e molhada, então absorvi toda magia presente nela. Precisava de algo para tocar, algo que me lembrasse quem eu era e o que eu devia fazer.
Meus olhos doeram quando os abri, e o que tive foi a visão embaçada de um céu avermelhado pela fumaça das chamas que consumiam as florestas ao nosso redor. Busquei a magia mais fundo de mim, até senti-la começar a curar-me. Contudo, a dor que senti foi insuportável. Não podia curar-me de uma só vez, o processo deveria ser lento ou esgotaria meu controle sobre o gelo.
Consegui virar o suficiente para ver que estava sendo arrastada para o alto da Fortaleza Branca, para sentir que algo prendia minha perna, foi quando o vi... O Bastikis estava logo a minha frente. Os olhos vermelhos encaravam meus minúsculos olhos cinzas. A criatura era enorme e mantinha suas presas em minha perna, me arrastando como um pedaço de carne prestes a ser devorado. Suas narinas dilatavam a cada respiração, e o fedor de brasa e podridão invadiam meus pulmões.
Eu era sua refeição.
Não iria morrer devorada por um cão gigante. Se eu tivesse que morrer essa noite, seria mais dignamente.
O medo não me oprimia tanto quanto a dor que irradiava por todo meu corpo, me impedindo de tentar qualquer movimento afim de me soltar. Apenas estiquei minhas mãos sobre a neve, usei o gelo ao nosso redor e o moldei com minha magia. Espinhos cresceram do chão e se quebraram quando encontraram a pele da criatura. Um rosnado saiu da boca da fera que não sofreu nenhum arranhão.
Tentei novamente a mesma estratégia, porém foi em vão, a pele do Bastikis era impenetrável. Um medo enorme cresceu dentro de mim, me sufocando, pelo canto do olho pude ver meu sangue manchar a neve branca. Eu estava me curando tão lentamente que a magia não estava cicatrizando o ferimento em minha perna, o qual a besta mantinha as presas enterradas.
Em um ataque de medo e desespero lancei inúmeros espinhos de gelo em direção a fera, sem mira ou alvo, só não queria morrer sendo devorada. Meus irmãos estavam lutando e morrendo logo abaixo de onde eu estava, precisava voltar e ajudar, precisava mostrar que eu era digna de lidera-los.
Um urro de dor grotesco ecoou em meus ouvidos no exato momento que senti as presas deslizarem em minha carne, se retirando. Me arrastei sobre a neve para longe da fera que rosnava atordoada e sacudia a cabeça. Em meio a confusão pude ver uma estaca de gelo atravessada em um de seus olhos. Não me permiti comemorar a sorte que tive, apenas concentrei todo meu poder e me curei.
Em segundos minha perna não sangrava mais, tão pouco doía, minha visão estava normal, e meu corpo pronto para a batalha, entretanto eu estava completamente desarmada contra a criatura mortal que agora me encarava com um ódio inimaginável. Meus poderes demorariam para voltar, e minhas armas se perderam em algum lugar quando fui capturada pelo Bastikis.
A criatura avançou em minha direção jogando neve para trás com o impulso de suas patas, então me preparei para correr...
Estava prestes a sair em disparada por entre as árvores quando uma imensa parede de gelo surgiu entre mim e a criatura, nos separado. A besta colidiu com o obstáculo em sua frente caindo sobre o chão.
— Estava esperando para ser devorada?! — uma voz conhecida caçoou atrás de mim.
Me virei incrédula para a voz que zombava de mim.
— Mãe?!... O que faz aqui? — perguntei confusa.
— É assim que agradece por eu ter salvo sua vida — disse caminhado em minha direção.
— Você deveria estar com sua legião ao pé da montanha — continuei.
— Fomos obrigados a recuar e nos agrupar com seu grupo — ela deu de ombros.
Suas roupas estavam sujas de sangue, assim como seu rosto, mas ela mantinha a postura de uma rainha.
— Quando? Como? Por quê? — fiquei mais confusa ainda.
— Os Bastikis fizeram um massacre, e as vadias de Meliha resolveram aparecer.
Meu sangue gelou.
— Como está nossa situação? — a pergunta quase não saiu.
Na verdade o que eu queria saber mas não ousei perguntar com medo da resposta, era: onde estava Meliha?
— Nenhuma das bruxas subiu a montanha, mas pelo que fui informada estão fazendo uma carnificina lá embaixo.
— Quantas?
— Não sabemos o número exato, mas não são muitas — ela disse. — Onde estão suas espadas? Porque não usou seus poderes? — ela arqueou uma sobrancelha mudando de assunto.
— Perdi quando fui capturada — revirei os olhos sabendo o que ela iria pensar. — E esgotei meus poderes me curando dos ferimentos — conclui. — Quantos Bastikis ainda restam?
— Com esse, três — ela disse olhando para a criatura que se recuperava do golpe. — Ao que parece Meliha nem irá se dar ao trabalho de aparecer — minha mãe quase cuspiu as palavras.
— Porque acha isso? — perguntei.
— Porque foram necessárias apenas algumas criaturas e uma dúzia de bruxas para massacrar nosso clã, por que acha que ela apareceria aqui? — desdenhou.
— Para zombar de nós — dei de ombros.
— Creio que para ela, não somos dignos nem disso.
Um rosnado chamou nossa atenção. A besta estava sobre as patas e nos encarava com uma promessa de morte estampada em seu olhos.
— Vamos acabar logo com isso e voltar para ajudar os outros — minha mãe olhou em minha direção entregando uma de suas espadas.
★★★
Matar a besta foi mais fácil que o esperado. Mais duas flechas de gelo nos olhos a deixando cega, e imobiliza-la por completo com uma armadura de gelo, em seguida um último golpe que estilhaçou o Bastikis.
Ainda não sentia meus poderes, embora não houvesse exaustão alguma em meu corpo, o que facilitaria a volta para a batalha. Descemos a montanha até a entrada da fortaleza, o que nos permitiu ver as chamas na aldeia e nossos companheiros em batalha à nossa frente.
— Atali... — uma voz me chamou com um tom severo, mas ao mesmo tempo aliviado.
— Howard?! — olhei para o guerreiro que caminhava em minha direção com passos firmes e apressados.
Havia manchas de sangue em sua bochecha e aparentemente nas roupas escuras. Duas espadas conhecidas estavam presas em suas costas junto a aljava de flechas que pertencia a Bert.
— Procurei por você por tudo quanto é canto — ele parecia furioso quando parou à minha frente.
— Estava resolvendo um pequeno problema — menti, porque não era nem de longe um "pequeno problema".
— Chama "quase ser devorada" de pequeno problema? — minha mãe caçoou.
— Você está ferida? — Howard deu mais um passo em minha direção, encurtando a distância para me examinar atentamente.
— Não — respondi. — Mas vou ficar sem poderes por um tempo.
— Entendo — disse ao compreender o motivo.
Por alguns segundos apenas nos encaramos, até eu me sentir desconfortável com o olhar dele sobre mim.
— Minhas espadas — disse para quebrar o silêncio.
— Ah — ele pareceu despertar de algum pensamento profundo. — Achei elas perto da entrada do templo, por isso estava preocupado, achei que poderia ter acontecido algo com você — disse me entregando as espadas.
— Estou bem agora...
Um clarão roxo chamou nossa atenção cessando minha fala, antes que eu pudesse prender minhas espadas no boldrié. Minha garganta secou... Duas bruxas de cabelos avermelhados estava sobre a montanha. Vimos quando um de nossos guerreiros correu até ela com espadas em punhos, e uma das mulheres apenas estendeu a mão em sua direção. Os passos do homem diminuíram a velocidade, e quando ele finalmente a alcançou, a bruxa já estava com a mão em volta de seu pescoço. Em um golpe rápido e preciso ela quebrou o pescoço do homem como se quebrasse um graveto.
O caos se instalou sobre a montanha. Os Drak se reuniram concentrando suas forças nas duas mulheres que ofereciam maior perigo a nós naquele momento.
— Puta merda — a voz de Eylem saiu em um xingamento ao meu lado.
Em outras circunstâncias perguntaria de onde ela surgiu tão rápido e silenciosamente, mas não havia tempo para questionamentos.
— Vocês três — disse para minha mãe, Howard e Eylem —, venham comigo — ordenei.
— Para onde? — Eylem questionou.
— Não podemos deixar que ninguém chegue perto do Pylar — disse me virando para ir em direção ao templo.
Antes de dar o primeiro passo, meu coração parou, assim como todo meu corpo e os três guerreiros ao meu lado. O mudo pareceu ficar em silêncio. Já não ouvia mais o barulho da batalha. Tudo que eu via era a figura que surgia em meio a fumaça e caminhava em nossa direção como um fantasma flutuando na noite.
Era o corpo de uma mulher a julgar pela estatura e as curvas acentuadas. Pude comprovar isso quando ela finalmente ficou a cinco metros de distância, e a claridade das chamas ao nosso redor a iluminaram. Sim... Era uma mulher. E não precisávamos de apresentação para saber que se tratava da mais mortal mulher que já existira. Tudo nela irradiava poder.
A visão chegava a ser hipnotizante. A mulher possuía longos cabelos negros e os olhos eram tão escuros quanto eles, a pele era clara como a neve que pisávamos, e os lábios fartos e vermelhos. Ela trajava uma túnica branca que marcava todo o seu corpo, e aparentemente não carregava nenhuma arma.
— Vão a algum lugar? — sua voz saiu em um tom sedutor.
— Meliha — minha voz não passou de um sussurro.
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