Capítulo 12
O cordão de meu pai parecia queimar minha pele, a medida que eu observava o pingente em forma de dragão na palma de minha mão. O sol se punha ao longe, e seus fracos raios de luz começavam a deixar a floresta à minha volta mais escura, no entanto, seus raios ainda permaneciam persistentes em volta do riacho.
Estava sentada sobre a grama, em frente a pequena cachoeira, desde quando encontramos um local para passarmos a noite. Enquanto eles montavam o acampamento temporário, decidi caminhar, para escapar de ter que ver o pânico e a dúvida estampados na face de cada guerreiro Drak.
O clima quente ainda estava presente, havíamos passado pelo vilarejo de Aphard há um dia atrás. Dessa vez, me permitir admirar com calma cada detalhe da única vila que encontramos em nossa jornada, na vasta extensão de terras onde reinava o cultivo de lavouras de vários tipos de alimentos.
Cinco dias de puro silêncio haviam se passado, lentamente, em pura agonia. Todos tentavam não parecer curiosos quanto ao fato de que meu pai não estava regressando conosco, no entanto, eles eram inteligentes o suficiente para saberem que ele estava realmente morto.
Sei, que assim como eu, eles esperavam o retorno de meu pai, que também alimentaram falsas esperanças. Meu pai era alguém querido em nosso lar, um líder justo, corajoso e sábio, como eu jamais serei.
Bert os informou antes da nossa partida de Morningh, sobre o que estava prestes a acontecer, sobre o futuro ataque de Meliha em busca do Pylar. Não quis saber qual fora a reação deles, porém, sei reconhecer um olhar de preocupação em qualquer rosto, e é esse olhar que vejo em muitos dos Drak, agora. Não os julgo, eu também estou com medo.
Entretanto, eu estava enfrentando outra preocupação no momento. Durante toda a nossa jornada de volta para a casa, eu temia qual seria a reação de minha mãe quando lhe confirmasse que ela estava certa, de que Kian me enganou. Imaginava a cena acontecendo com perfeição, conseguia ver o brilho de triunfo em seus olhos quando jogasse as palavras em minha cara, quando dissesse que ela estava certa.
Via nitidamente o sorriso presunçoso no rosto de Ettore, ao saber que seria o novo líder dos Drak, embora isso não dependa de minha mãe. Ela apenas irá por o conselho contra mim, fará com que eles vão aos anciões do Desert, para que eles possam tirar o posto de líder de mim, e propôr que seja Ettore, o novo líder. Assim eles evitam um combate na arena.
Mas no fundo, o que me incomodava não era a possibilidade de perder a liderança dos Drak. O que mais me incomodava, o que estava me tirando o sono, e acendendo um ódio dentro de mim, era eu ser a única que realmente parecia triste e abalada com a morte de meu pai. Eu era a única que arriscou tudo pela oportunidade de vê-lo novamente.
Apertei o cordão em minha mão a medida que uma lágrima solitária rolou por minha bochecha. O sol já havia sumido completamente, e junto com a escuridão da noite veio a solidão, senti um aperto no peito que me tirou todo ar. De repente tudo que eu queria era gritar.
— Atali — uma voz grossa e familiar me despertou de meus devaneios.
Limpei os resquícios das lágrimas rapidamente já me colocando de pé, a visão de Howard parado à minha frente fez-me recordar que eu não podia desmoronar.
— Sua tenda está pronta — ele continuou. Seu olhar foi direcionado para o cordão em minha mão. — A comida também — terminou olhando para mim.
Howard estava com os cabelos um pouco abaixo do queixo e a barba por fazer — o que o deixou com uma expressão mais séria ainda. A camisa branca que ele usava estava um pouco aberta, deixando evidente que o sol do norte fez muito bem a ele, sua pele antes clara, agora estava bronzeada. Howard continuou a me olhar, seus olhos castanhos assumiu um tom escuro sob a fraca luz do dia.
— Eu... — ele começou a falar. — Eu... sinto muito pelo seu pai, de verdade, eu sinto. — Ele baixou o olhar para a grama a seus pés.
Não tive resposta para sua lamentação, pois ela me parecera sincera, e ultimamente eu só o via como um inimigo. Um silêncio perturbador se instalou entre nós, e o único som que ouvíamos era os dos animais na floresta.
— Acho melhor voltar para o acampamento — ele disse se virando para sair.
— Howard — o chamei por impulso. Ele parou se virando para me olhar com curiosidade.
As palavras que eu ia dizer se desfizeram no ar quando abria a boca novamente. Foi quando eu percebi o quanto eu estava quebrada.
— Algum problema? — Howard perguntou parecendo preocupado.
— Não é nada — suspirei. — Desculpa, pode ir.
Howard me olhou intrigado, entretanto decidiu se retirar. Antes que ele chegasse perto da árvore mais próxima, voltei a sentir a dor no peito. Não queria ficar sozinha, e no entanto, não queria voltar para o acampamento.
— Howard — o chamei novamente. Ele se virou no mesmo instante. — Você pode ficar aqui, comigo? — perguntei antes de perder a coragem.
★★★
Lembro-me do dia em que assumi o lugar de meu pai em nosso clã; lembro-me de que dois dias depois, minha mãe pediu-me que aceitasse Howard como um de meus guardas pessoais. Ela disse que, o fato dele ter sido treinado desde os sete anos no acampamento das montanhas do sul, o qualificavam como um guerreiro de confiança.
Realmente ela estava certa. Howard se mostrou o melhor guerreiro que já havia visto, e mesmo seu poder não sendo tão grande como os de alguns Drak, ele o fazia se tornar letal. Soube depois de algumas semanas que ela mesma o trouxera do vilarejo das montanhas do sul, o que me fez questionar o porquê dela ter feito algo do tipo com alguém, que claramente não era tão mais velho que eu.
Sempre imaginei que se ela colocasse alguém para cuidar de mim — como ela disse —, seria alguém mais velho, mais sábio, alguém como Bert, e no entanto, fui eu mesma que optei por Bert, já ela, escolheu alguém jovem e não tão experiente, apesar de todo seu treinamento.
Quando descobri a que família Howard pertencia, todas as peças do quebra cabeça se encaixaram, principalmente quando minha mãe ficava sabendo de todos os meus movimentos.
Howard Riagáin, filho de Mihangel Riagáin, que é primo de minha mãe e consequentemente, sobrinho do meu avô materno. O pai de Howard era primo de minha mãe, a mesma família fria e calculista. Portanto, Howard era a pessoa certa para ser o espião de minha mãe. Além do que, era seu pai o comandante dos exércitos e do nosso vilarejo do sul.
Entretanto, Howard não era ninguém inconveniente, muito pelo contrário, ele sempre ficava calado, falava somente quando questionado sobre algo, e sempre obedecia sem reclamações. Seu único defeito era a lealdade à minha mãe, no entanto, eu pretendia mudar isso.
— Por que Meliha iria querer atacar logo agora? — Howard perguntou enquanto encarava o lago à nossa frente.
A noite tinha chegado finalmente, era possível ouvir as vozes de nossos guerreiros no local onde o acampamento fora montado, até mesmo uma fraca luz de uma fogueira, onde provavelmente algum animal estava sendo assado — se a caçada tivesse sido bem sucedida.
Estava a alguns centímetros de distância de Howard, ambos sentados na grama rasteira a beira do logo. Meus olhos se mantinham focados na água que refletia o brilho das estrelas no céu noturno.
Quando pedi a Howard que ficasse, foi notável o olhar apreensível em seu rosto, contudo, ele não recusou o pedido — não uma ordem, fora um pedido, e talvez seja isso o que ele mais tenha estranhado. Porém, ele simplesmente ficou, e depois de vários minutos em silêncio, ele resolveu iniciar um assunto. Um assunto que eu tentava esquecer.
— Talvez — disse — ela esteja entediada — dei de ombros.
A resposta de Howard foi um sorriso quase inaudível. Um sorriso que curiosamente achei atraente. Balancei a cabeça para dispersar os pensamentos inconvenientes que surgiram em minha mente.
— Realmente viver pela eternidade deve ser entediante — ele disse com certo divertimento na voz.
— Acho que uma hora ou outra elas devem morrer — disse pensativa. — Quer dizer... viver pra sempre, acho meio impossível.
As Yeborath não tinham uma historia como as Colchis. Ninguém sabe ao certo qual sua origem, quem elas servem, a qual deuses elas fazem suas preces, ou talvez elas não tenham um. Apenas sabemos que elas existem e que caminham por essas terras desde a fundação dos mundos. Penso que elas sejam uma praga, uma maldição, um mal que os deuses fizeram para manter o equilíbrio. O bem não pode existir sem o mal.
— Meliha é a prova de que isso não é impossível.
— Teremos que encontrar uma forma de mata-la, então — conclui.
— Talvez se corta-la em pedacinhos e espalhar pelos quatro cantos da terra funcione — quase foi possível ouvir a risada que ele conteve ao dizer tal pensamento.
— Isso seria cruel — fingi indignação.
— Aposto que pensou a mesma coisa — Howard disse despreocupado.
Foi então que notei, eu não estava com raiva dele, e podíamos ter uma conversa normal, talvez até uma amizade improvável. Porém, sempre existiria uma dúvida em meu coração...
Howard e eu nos entendíamos no começo, antes de descobrir que ele era um espião de minha mãe. Que ele reportava a ela todas as minhas decisões, principalmente as que não saiam como esperado. No entanto, fora ele que me ajudara com o aperfeiçoamento de meus poderes. Devo muito a ele e a Bert, por isso, não podia julga-lo como um traidor, não poderia desonra-lo.
Um silêncio recaiu sobre nós, e cogitei a possibilidade de voltar para o acampamento, já que eu estava morta de fome e cansaço. Porém, um dos motivos para pedir que ele ficasse, era porque precisávamos ter uma conversa.
— Quando chegarmos no Desert — comecei a dizer voltando o olhar para Howard ao meu lado. — Minha liderança será questionada. Dirão que fui enganada pelo rei de Morningh, dirão que arrisquei a vida desses homens por puro capricho. Irão dizer que sou imatura e irresponsável para guiar os Drak — meu olhar se mantinha firme. — Não irei desistir do meu posto, não irei entregar a liderança a Ettore e nem a ninguém. Irei lutar na arena se for preciso, mas não irei ceder. Preciso saber agora, e quero sua sinceridade — o fitei. — Em quem você irá depositar sua lealdade?
Os olhos de Howard se arregalaram, observei ele engolir em seco a medida que desviou o olhar de mim para as mãos em poucos segundos, então os voltou para mim novamente.
— Minha lealdade — ele começou a falar tentando firmar a voz. — Minha lealdade sempre foi da senhora.
— Não minta para mim — disse sem me alterar. — Sei do seu parentesco com minha mãe — ele quase se congelou. — Sei que é leal a ela, que reporta todos os meus passos e decisões a ela. Então, estou lhe dando a chance de escolher servir a mim, de ser leal a mim. Porque depois que voltarmos ao Desert, as coisas irão mudar, e quem não estiver comigo, estará contra mim, e eu o julgarei como uma possível ameaça.
— A quanto tempo sabe? — Howard questionou. — Sobre nosso parentesco?
— Há tempo suficiente — respondi me pondo de pé. Howard se levantou em seguida. — Então escolha um lado. Mas se escolher o meu, saiba que ao menor sinal de traição, você será morto.
— Irei servir a senhora — ele me olhou com certeza estampada em seu rosto. — Servirei somente a senhora.
— Ótimo — conclui. — Você já sabe as consequência caso pense em me trair.
— Não irei trai-la — ele disse convicto.
— Estamos em guerra. Não preciso de mais inimigos — disse estendendo a mão para ele. — Já temos um inimigo em comum, e ela não perdoa, muito menos dá segunda chance.
Howard olhou para minha mão estendida em sua direção, por alguns segundos vi ele hesitar, entretanto, ele cedeu. Observei minha mão desaparecer quando ele a envolveu com a sua, em um aperto de mãos firmes e decisivo.
Howard era meu soldado agora, não o de minha mãe. E ela também iria ter que escolher um lado. Eu estava regressando para casa, e meu povo teria uma líder, não uma criança assustada e ressentida.
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