Capítulo 11
A alguns metro de distância, trancada em uma cela com paredes e piso de pedras cinza escuro, sob a fraca iluminação de algumas tochas nas paredes, estava a mulher capaz de ocupar tanto sonhos quanto os pesadelos de qualquer ser sobre a terra.
Correntes de ferro prendiam ambos os braços e pernas da mulher — mulher, porque apesar de aparentar minha idade, ela era uma imortal, com séculos vividos. Uma coleira — aparentemente de ferro — estava ao redor de seu pescoço. A mulher estava acorrentada a parede da cela, as costas antes curvadas, agora estavam eretas, mesmo ela estando sentada sobre o chão.
A calça escura que ela usava, estava suja, a camisa que antes deveria ser branca, agora estava suja de sangue e outras coisas que não identifiquei. O rosto pálido estava com vários ferimentos, o nariz estava vermelho e inchado. Havia marcas roxas abaixo de seus olhos, a respiração da bruxa estava fraca, ela não se mexeu um centímetro, seu único movimento foi erguer a cabeça em nossa direção.
Poderia pensar que isso era mais uma mentira de Kian, mas só um tolo para não perceber, que mesmo a mulher quase morta, porém capaz de manter um sorriso cruel na face ao encarar seu inimigo, é uma bruxa. E a julgar pelos ferimentos, realmente ela é alguém poderosa, porque qualquer outro já teria morrido.
— Como você sabe que ela é a segunda de Meliha? — consegui perguntar, entretanto meus olhos continuaram na bruxa à minha frente.
— Alguns dias de tortura — ele respondeu naturalmente. — Ah, e fogo. Mas pelo que me lembro das histórias, é o gelo dos Drak que elas temem — ele se virou para mim.
Apenas assenti incapaz de desviar o olhar da mulher acorrentada.
— Como a capturaram?
— Ela estava tentando nos espionar. Funcionou durante uma semana. Pelo que conseguimos descobrir ela queria saber a localização do nosso Pylar. E provavelmente tinha um espião no Desert, e agora elas já sabem onde Pylar de vocês está.
Meu coração disparou. Se realmente havia algum espião no Desert elas podem ter descoberto mais do que só o esconderijo do nosso Pylar.
— E para que Meliha quer abrir os portais do submundo? — me forcei a concentrar no assunto atual.
— Isso nem sob tortura ela respondeu.
— Mas vai dizer para mim — caminhei em direção a cela, a bruxa sorriu com divertimento.
Eu arrisquei muito confiando em Kian, ele mentiu para mim, e agora eu perderia o comando dos Drak. Contudo, se eu levasse algo em troca, se a viagem não fosse totalmente em vão, eu poderia continuar no comando. Que os deuses me perdoasse, mas eu arrancaria a verdade dela.
— Atali — Kian segurou meu braço me fazendo parar. Olhei para sua mão que me impedia de ir até a mulher que poderia ter a solução para meus problemas. — Desculpa — ele retirou a mão as pressas.
— Como você disse, o que ela mais teme é o meu poder — sibilei. — Eu posso descobrir o que Meliha quer.
— Ela está quase morta, e só por isso ela não consegue escapar, além dos venenos não mortífero que nossos curandeiros injetaram nela. Ela não vai lhe dar a resposta que busca, creio que prefira morrer a trair sua líder.
— Então que morra — eu não estava me reconhecendo.
Fazia tempo que eu não me reconhecia, oito meses para ser exata. Fazia oito meses que meu pai morrera e oito meses que tudo mudou, que minha vida mudou.
Tudo que eu fazia era treinar, estudar leis e estratégias de batalha com meu pai. E na minha mente isso duraria por anos, porque eu o teria por anos. E quando chegasse a hora de eu assumir meu posto, ele estaria ao meu lado, me auxiliando. Mas não foi assim. Quando menos esperava ele morreu, me vi forçada a assumir meu papel mais cedo, tive que lidar com algo desconhecido sem apoio.
Minha mãe deveria me apoiar, me ajudar, deveríamos estar unidas, e eu confiei nela, até ouvi-la dizer a Ettore que o preferia no comando do Desert, que eu era imatura para algo tão importante. Ouvir minha própria mãe dizer que não confiava em mim, que preferia o sobrinho ganancioso na liderança de nosso povo do que a própria filha, isso foi o maior golpe que recebi. Quando não renunciei a liderança, ela colocou Howard para me espionar.
Esses últimos meses tem sido um inferno. Minha família querendo meu fracasso, tendo que liderar uma nação, meu pai morto, e agora a ameaça de Meliha. Qualquer um mudaria, eu mudei e não me orgulho disso. No fundo, uma parte minha consegue intender Kian, ele tem passado pelo mesmo que eu. Só estamos tentando sobreviver.
Somos dois jovens tentando fazer nosso povo sobreviver a uma bruxa com séculos vividos.
— Meliha vai gostar de saber disso.
Tanto Kian quanto eu nos viramos ao mesmo tempo para olhar a dona da voz baixa e rouca.
— Morningh e o Desert unidos novamente — ela soltou uma gargalhada quase inaudível. — Meliha vai amar matar vocês dois. Um Rein e uma Balts, juntos novamente contra ela. A história parece estar se repetindo — apesar do sorriso em sua face, seus olhos pareciam brasas queimando com puro ódio.
Cerrei os punhos ao lado do corpo. Taras traiu Meliha com uma Balts — uma ancestral minha, a mesma família a qual pertenço —, a filha do líder dos Drak na época. Sei muito bem o que ela quis dizer com "a história parece estar se repetindo ".
— O que Meliha quer tirar do submundo? — perguntei ignorando seu comentário.
— Me matem se quiser — ela disse entre uma tosse seca, sangue escorreu por seus lábios.
Avancei em sua direção, Kian se pôs em meu caminho.
— Não vale a pena mata-la, podemos usa-la contra Meliha mais tarde — Kian disse me fazendo parar e pensar na questão.
— Isso não vai funcionar — a mulher disse. — Quando uma bruxa é capturada ela morre para seu clã. Meliha não cederá a qualquer chantagem que pretenda fazer — ela estava sem fôlego.
— Algo me diz que você vale mais do que pensa — Kian a olhou.
A bruxa o ignorou.
— Acredita em mim agora? — Kian se voltou para mim.
— Acredito — disse vencida enquanto me dirigia para a saída.
— E o que vai fazer? — ele me seguiu.
— Voltar para o Desert, tenho que reforçar nossas defesas e nos preparar para o ataque de Meliha.
— Acabamos de chegar, você deveria passar esta noite aqui — ele parou de caminhar me levando a fazer o mesmo e encara-lo. — Seus guerreiros merecem esse descanso depois de dias na estrada — ele disse por fim.
Kian tinha razão. Nenhum deles era culpado por minha frustração.
— Partiremos ao amanhecer — cedi. Kian assentiu satisfeito.
★★★
Uma hora depois eu me encontrava na sala de visitas principal do castelo de Morningh, com meus pensamentos me sufocando, embora, boa parte da culpa era do corpete apertado do vestido que eu ainda usava. Pedi a Kian que mandasse chamar Bert e Howard, precisava lhes passar as novas instruções para nossa partida.
A decoração do lugar não era nada diferente dos demais cômodos, exceto por uma lareira que se encontrava apagada, e um mapa de Morningh na parede acima da lareira. As amplas janelas se encontrava abertas deixando com que a brisa fresca da noite entrasse na sala movendo as cortinas vermelhas.
Ainda estava parada em frente a janela observando a vista da cidade iluminada e aparentemente barulhenta, quando o barulho da porta sendo aberta chamou minha atenção. Bert e Howard passaram apressados por ela, talvez tenham pensado que poderia ser alguma emergência que me levou a convoca-los tão tarde da noite.
— Viemos assim que recebemos o recado — Bert disse assim que parou à minha frente.
Tentei não me importar com a sobrancelha de Bert erguida ao olhar para o vestido que eu usava, ou o olhar de Howard que percorreu meu corpo de cima a baixo vagarosamente, e se não fosse as circunstâncias eu teria ficado envergonhada.
— Costumes idiotas de etiqueta — dei de ombros ao dizer por fim quando percebi que os dois estavam curiosos sobre minhas vestimentas.
— Aconteceu alguma coisa? — Bert perguntou mudando de assunto.
— Só queria lhes passar as novas instruções — disse encarando-o. — Partiremos amanhã, ao amanhecer.
— Pensei que ficaríamos mais — Bert franziu a testa deixando suas rugas mais evidentes.
— Mudança de planos — respondi simplesmente.
— Podemos saber o que a levou fazer isso? — ele indagou.
— Meliha vai tentar roubar o Pylar de nosso templo na próxima lua cheia.
Até mesmo Howard que estava estranhamente quieto se mostrou assustado com minhas poucas palavras.
— Como... Como a senhora descobriu? — Bert perguntou.
— A bruxa que encontramos na Floresta Cinza disse depois de alguns minutos sob tortura que ela levou o Pylar delas. E sabemos como tudo isso funciona, ou seja, ela precisa do nosso.
— O que ela quer com eles? — finalmente Howard disse algo.
— Não sabemos.
— Será que podemos confiar nessa informação? — Bert disse preocupado.
— A Yeborath presa no calabouço abaixo de nós confirmou.
Os dois guerreiros empalideceram.
— Eles a capturaram tentando descobrir a localização do Pylar de Morningh — expliquei. — Mas ela não disse o que Meliha pretende fazer com eles — me adiantei a explicar.
Howard praguejou ao meu lado.
— Então o rei não mentiu, afinal — Bert parecia aliviado.
Aliviado porque isso significava que meu pai estava vivo. O verdadeiro líder dos Drak estava vivo.
— Onde está o Conan? — foi Howard quem perguntou.
Engoli meu desespero.
— Ficará feliz em informar a minha mãe que ela tinha razão — não sei onde encontrei forças para dizer.
A expressão de alívio de Bert desapareceu. Um silêncio aterrorizante preencheu o ambiente.
— Eu sinto muito — Howard me surpreendeu ao dizer tais palavras.
— Isso não importa mais. O que precisamos fazer agora é regressar ao Desert e impedir Meliha de entrar no templo — disse ignorando o nó que se formou em minha garganta.
— E Ruray? — a pergunta de Bert me tirou o ar.
Isso era uma guerra — me obriguei a pensar. Tínhamos que usar todas as nossas armas, todas as nossas defesas, tudo que possuímos.
— Se for necessário ela vai lutar — respondi.
— Mas...
— Estamos em guerra — disse. — Meliha vai usar tudo contra nós, devemos revidar a altura.
★★★
Quando as nuvens no horizonte atingiram uma cor quase alaranjada devido ao sol que começava a nascer, eu já me encontrava no pátio do castelo vestindo minhas roupas de sempre. Minhas espadas estavam presas as costas no boldrié, meus cabelos castanhos presos em uma trança simples, segurava as rédea de minha montaria enquanto o rei se mantinha à minha frente.
Os demais guerreiros Drak já estavam prontos para partir, apenas aguardavam meu comando. Não passaríamos pela Floresta Cinza dessa vez, tínhamos tempo, e eu queria usar esse tempo para me preparar para encontrar minha mãe, para confronta-la.
— Não se preocupe — falei para Kian quebrando o silêncio entre nós. — Vou libertar seu amigo, e garantir que ele seja escoltado de volta.
— Obrigado — ele agradeceu aliviado.
O silêncio pesou entre nós novamente. Kian trajava preto dos pés a cabeça, exceto pela coroa dourada, seus olhos azuis refletiam a fraca luz da aurora, a visão era quase hipnotizante.
— Sei que começamos de forma errada — Kian iniciou. — Mas ambos sabemos que precisamos dessa aliança para enfrentar Meliha.
— Eu sei — disse preocupada. — Mas não será algo fácil. Quando eu contar o que aconteceu, que fui enganada por você, minha liderança será questionada. Provavelmente, você terá de negociar uma aliança com um novo líder do Desert, e no que depender de minha mãe, esse líder será meu primo.
— Seu pai me mandou ir até você — Kian me surpreendeu. — Não sua mãe, não seu primo, muito menos os conselheiros do Desert. Acho que isso significa que ele confiava em você, e acreditava que conseguiria resolver qualquer problema que surgisse.
Um nó se formou em minha garganta.
— Não pretendo desistir do meu posto tão facilmente — disse por fim. — Mas não será fácil selar uma união entre os nossos povos.
— Se não fizermos isso, não teremos mais nada para chamar de nosso — Kian me encarou.
— Verei o que posso fazer — disse caminhando em direção ao cavalo de pelagem negra. — Não espere notícias, tenho uma batalha para travar em breve — disse montando na cela do animal.
— Sinto muito por seu pai, não queria que as coisas chegassem a isso — kian lamentou.
— Posso selar um aliança com Morningh para deter Meliha — o encarei do alto —, posso até lutar ao seu lado. Mas jamais o perdoarei por ter me enganado dessa forma.
— Eu não preciso do seu perdão — Kian me encarou de volta. — Só preciso dos seus exércitos.
— Então reze aos seus deuses para que isso baste para vencer essa guerra — disse.
— Acho que os deuses não se importam mais conosco — Kian deu de ombros.
— Você é a prova de que está enganado — respondi.
Kian sabia que eu me referia ao seu poder recém descoberto. Talvez os deuses ainda viam algo bom em nós, talvez eles nos ajudariam.
— Boa sorte — Kian disse se afastado do cavalo no qual eu estava.
— Adeus — disse conduzindo o cavalo para o portão de saída.
Estávamos regressando para casa com novos problemas para serem resolvidos. E acima de tudo frustrados, porque quem fomos buscar não voltaria conosco.
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