▫▫ Capítulo Único: Laços de Família ▫▫
― Nem parece real ― fungou Susannah ao seu lado. ― Num dia, estamos nos divertindo e no outro...
Felicia a abraçou quando ela recomeçou a chorar. Embaixo dos óculos escuros, suas próprias lágrimas voltaram a se acumular, mas sabia que a família precisava de alguém capaz de se manter forte mesmo em meio ao caos.
A poucos passos de onde as duas estavam sentadas, jazia Charles Mitchell em um caixão cercado por alguns dos parentes mais próximos. Ao menos, os que tinham condições de fazê-lo.
Harriet, sua tia, parecia ter envelhecido dez anos nas últimas vinte e quatro horas.
Roselynn, sua avó, estava enfrentando com mais dignidade do que se esperava a perda do filho. De mãos dadas com o neto, agora órfão de pai, depositou um beijo na lateral da cabeça de Paul e apoiou o queixo, fechando os olhos por um momento.
Mais atrás, conversando em voz baixa com um casal de amigos, Felicia viu os pais. Polly parecia ainda mais pálida que o normal e Roger a amparava, cuidadoso.
A tragédia os pegara em cheio completamente desprevenidos. Como Susannah bem lembrara, na manhã anterior as duas e os tios reuniram os filhos para uma festa na piscina para aproveitar o tempo agradável.
Extrovertido e piadista, Charles era o preferido delas desde que eram crianças. Seu jeito de ser contrastava com os dos irmãos: Polly era mais reservada e Wayne, de quem Charles era gêmeo, trabalhava em uma multinacional de vendas; o que o fazia passar boa parte do tempo viajando ao redor do mundo e Charles era a única pessoa com quem tinha verdadeiro contato dentre todos os parentes. Havia voltado para passar um tempo na cidade há cerca de uma semana e partiria de novo dali a alguns dias. Segundo Harriet, os dois irmãos estavam juntos na hora do desastre.
Um movimento ao seu lado a distraiu e Felicia viu a pequena Katterina correr em direção à entrada do cemitério. Um homem loiro e alto em um elegante terno preto apareceu. Os olhos estavam também ocultos por óculos escuros, mas eram azuis iguais aos da filha, que pegou no colo e beijou assim que a alcançou.
― Obrigada por vir, Alexander ― sussurrou quando ele se sentou ao seu lado.
― Não precisa agradecer, Felicia. ― Acomodou Katterina no colo. ― Sinto muito pelo seu tio. ― Então se inclinou, sussurrando: ― Como aconteceu?
Ela lançou um olhar discreto a Susannah, que se levantou indo em direção ao marido e às duas filhas ― também gêmeas, Joy e Hope. Certamente, não queria ouvir aquilo mais uma vez.
― Ele e o tio Wayne foram no chalé da vovó, em Monte Charlotte. ― Suspirou. ― Mas eles acabaram batendo o carro em uma árvore. Quando o socorro chegou, já era tarde demais. O tio Charles estava dirigindo e perdeu o controle.
Engoliu em seco e baixou os olhos, erguendo-os ao sentir os dedos dele se entrelaçando com os seus. Viu alguns dos presentes olharem-nos de esguelha, como se estranhassem o gesto de carinho, o que Felicia ignorou por completo.
Não era porque tinham se divorciado que precisavam se odiar. Ao contrário, a amizade só ficara mais sólida. Tinham uma filha juntos e o clima amigável entre ambos apenas contribuía para que ela lidasse bem com a nova situação familiar.
Pelos próximos minutos, permaneceram naquele silêncio soturno, cortado apenas quando um ou outro conhecido se aproximava para oferecer suas condolências. O tempo parecia se arrastar, como em um pesadelo.
Foi quando Roselynn levou a mão à boca e recomeçou a chorar ao desviar os olhos para a entrada da sala onde acontecia o velório.
Ao acompanhar seu olhar, Felicia sentiu o coração falhar uma batida. Os mesmos olhos azuis claros, cabelos escuros e lábios apertados em uma linha fina. Olhar para Wayne era como ver Charles vivo de novo, e a certeza de que nunca mais a veria a atingiu com ainda mais força do que antes.
O silêncio reinou no lugar enquanto ele se aproximava em passos lentos, mancando a olhos vistos até alcançar a mãe e envolvê-la em um abraço apertado. Depois, fez o mesmo com a irmã caçula e, por fim, passou direto pela viúva para ir se pôr ao lado do sobrinho, sussurrando algo no ouvido do garoto e o abraçando também.
Não era surpresa. Wayne e Harriet nunca haviam se gostado e ele considerava um erro aquele casamento. Porém Felicia esperava que, pelo menos em um momento como aquele, os dois pudessem deixar suas diferenças de lado. Não foi o que aconteceu.
Wayne cumprimentou Susannah, o marido dela, as gêmeas e até trocou umas palavras com o cunhado, de quem não era tão próximo também, antes de vir se sentar a seu lado sem sequer lançar um olhar a Harriet.
O casal estava passando por uma crise, embora tentassem disfarçar. Charles devia ter contado algo ao irmão em algum momento, o que apenas serviu para aumentar as reservas dele em relação à mulher.
Alexander também lhe deu os pêsames e até mesmo Kat o cumprimentou com um doce sorriso infantil e um "olá, titio", que Wayne respondeu com mais carinho do que o habitual ― uma vez que não gostava muito de crianças.
Então se pôs em silêncio e a surpreendeu ao passar um dos braços por seus ombros em um abraço desajeitado.
― Sei que não somos tão próximos, mas o Charles gostava muito de você, Fe ― sussurrou ele, quando se soltaram; fazendo-a estranhar, uma vez que também não era dado a apelidos carinhosos. ― Eu queria que soubesse disso e, tenho certeza, que ele também.
Ela mordeu o lábio para não chorar e apenas envolveu as mãos dele com as suas. Sempre haveria tempo para estreitar os laços, pensou. Infelizmente uma tragédia precisara marcá-los para isso, mas resolveu aproveitar.
Afinal, a vida era curta demais, um sopro.
Algo nele estava diferente, ela só não sabia dizer ainda se era o efeito do momento ou se havia algo mais. Antes que pudesse descobrir, ele recuou, cruzando os braços e mantendo os olhos presos em algum ponto fixo à frente.
A caminhada pelo cemitério até o túmulo onde Charles repousaria ocorreu debaixo de um silêncio cortante, quebrado apenas quando o padre começou a recitar suas palavras de praxe, que Felicia mal conseguia prestar atenção. O tempo todo, sua mente vagava, alternando entre o presente e as dolorosas memórias.
Lembrou todos os momentos importantes de sua vida em que o tio estivera presente. As viagens em família quando ela e Susannah eram pequenas, sua festa de quinze anos ― em que ele fizera questão de dançar uma valsa com ela ―, quando decidira se tornar policial e ele fora um dos únicos a apoiá-la, quando se mudara para a Suécia e ele também fora um dos poucos a ficar do seu lado...
Entre tantas outras que faziam, ao mesmo tempo, seu coração pesar e se alegrar apenas pela oportunidade de poder tê-lo em sua vida e sempre terem sido tão amigos.
― Me ligue se precisar de alguma coisa ― disse Alexander, quando todo o tormento havia passado e os familiares começavam a ir embora.
― Obrigada ― respondeu com um sussurro.
Ele havia se oferecido para ficar com as três meninas por algumas horas enquanto a poeira baixava e Susannah ― ainda aérea demais para pensar direito ― permitira para ter tempo de se recompor.
Ajudou-o a acomodar a filha e as sobrinhas no banco de trás do carro e ficou parada na calçada até que sumissem de seu campo de visão ao dobrar a esquina; no entanto, ainda ficou um tempo parada ali, observando os outros se afastando. Muitos eram rostos que ela sequer conhecia e outros tantos esqueceria em pouco tempo, mas não tinha energia para pensar naquilo. Quando finalmente conseguiu colocar as pernas em movimento, os últimos dos presentes já iam longe.
A caminhada até seu veículo, estacionado na rua ao lado do cemitério, foi solitária e exigiu todo seu autocontrole para não chorar. Limpou os olhos, segurou firme o volante com as duas mãos, respirou fundo e deu a partida.
Mal se lembrava do trajeto percorrido quando parou em frente ao prédio onde morava, mas sorriu de leve ao ver que alguém a esperava. O apoio de um bom amigo era tudo de que precisava.
Ela só ainda não tinha se dado conta ainda do quão fragilizada estava até desabar em um choro sentido envolvida pelos braços de Andrei, que acarinhou seus cabelos murmurando palavras de apoio até que ela se recompusesse.
Trabalhavam juntos há anos como detetives do departamento de homicídios, mas há um bom tempo haviam cruzado a barreira da mera parceria profissional e se tornado amigos pessoais. Nas últimas duas semanas, ele se dedicava sozinho a manter as ruas de Alliance seguras enquanto ela aproveitava as férias.
Bom, ao menos antes de todos aqueles eventos ruins...
― Desculpe ― sussurrou quando se afastou, pouco mais tarde.
― Não precisa, Felicia. ― Era uma das poucas vezes em que ela podia dizer que o tinha visto realmente sério. ― É natural depois de hoje.
― Quer subir?
Odiou o tom de sua voz, que mais parecia implorar "não me deixa sozinha, por favor", mas se sentiu um pouco mais confortável ao ouvi-lo responder:
― Claro.
Sem cerimônia, chutou os sapatos assim que entrou no apartamento, largando-se no sofá e abraçando as pernas após jogar a bolsa na poltrona ao lado. Tão à vontade quanto se estivesse em sua própria casa, Andrei avançou em direção à cozinha e voltou com duas taças e uma garrafa de vinho.
Ela se sentia mesmo como alguém que precisaria de doses cavalares de álcool para se sentir melhor.
― Todas as vezes que eu oferecia vinho, ele respondia "só se eu puder colocar conhaque dentro". ― Sorriu de leve e tomou um longo gole.
― Vocês se davam muito bem, né?
Felicia assentiu.
― Ele dizia que eu era a preferida. ― E adicionou com um novo sorriso enviesado: ― Não conta pra Susannah.
Andrei riu.
― Seu segredo está guardado comigo.
Então a tristeza voltou a pesar sobre seus ombros.
― Parece tão surreal, ontem ele estava vivo e agora...
Bebeu de novo e, como se sentisse que precisava colocar tudo para fora logo de uma vez, narrou toda a manhã de descontração que tiveram no dia anterior, o choque da notícia no início da noite e as últimas horas, quando todo o cerimonial em torno do velório e enterro fizeram a ficha cair.
― Eu passei por lá mais cedo, mas não quis entrar. Achei que era melhor deixar entre família e amigos dele ― ele começou meio hesitante, então bebeu um pouco também. ― Cheguei pouco depois do Alexander, mas desisti e vim pra cá te esperar.
Meio sem querer, ela olhou a mão esquerda, onde antes estivera sua aliança de casada. Foi quando se lembrou de algo, detalhes que, até então, haviam passado despercebidos.
Andrei pareceu perceber sua súbita mudança.
― Tudo bem?
― Sim, eu... Você vai achar que fiquei maluca se eu contar.
Bebeu todo o restante da taça de uma só vez.
― Eu já acho isso ― ele gracejou, e ela o fuzilou com os olhos. ― Ei, Felicia, foi só uma piada ― ele completou ao vê-la correndo para o hall de volta e calçando os sapatos de salto que largara de qualquer jeito ao chegar.
― Eu sei, não estou brava. ― Voltou para pegar a bolsa. ― Preciso resolver isso ou vou ficar maluca mesmo. Desculpa sair assim, eu prometo que te explico depois.
Quando se colocou na estrada novamente, relembrou todos os detalhes que podia daquela manhã horrível, tentando se convencer de que o luto só podia estar mexendo com suas faculdades mentais, porém precisava tirar a dúvida.
A ideia ainda não fazia sentido algum quando finalmente chegou diante da casa pequena e cercada de verde que Wayne ocupava sempre que resolvia voltar para a cidade natal. Seus joelhos tremiam de ansiedade e ela precisou respirar fundo algumas vezes para recuperar o autocontrole.
Uma vez que captava algo estranho, a investigadora não conseguia descansar até ter certeza.
Tocou a campainha e esperou até que o tio viesse, e vê-lo de perto ainda a deixava sem fôlego. Quanto mais perto, mais perturbadora era a semelhança com o irmão morto.
― Oi, Felicia. Posso ajudar?
― Está ocupado?
Ele lançou um olhar sobre o ombro antes de responder:
― Isso pode esperar. Venha. ― Ela o seguiu em direção à cozinha, vendo pelo caminho algumas caixas e uma mala largadas a um canto, ao que ele explicou: ― Acho que não tenho mais motivos pra ficar, estou voltando pra Europa depois de amanhã.
Ela assentiu e se sentou a uma mesa pequena e redonda, unindo as mãos e baixando os olhos. Ele se sentou em um silêncio expectante e ela passou as mãos pelos cabelos.
― Por quê? Estou tentando entender, mas não consigo.
― Eu que não a entendo, Fe.
― Só existe uma pessoa no mundo que me chama assim, e você sabe muito bem. ― A voz vacilou no final, mas ela prosseguiu, tão firme quanto possível. ― O que aconteceu naquele carro? Eu preciso saber. Preciso saber porque não consigo acreditar que o homem que eu considerei como meu segundo pai e amei por tantos anos seria capaz de trair todo mundo desse jeito.
Toda a tristeza havia, subitamente, se transformado em raiva.
O que Charles pensava que estava fazendo, brincando com toda a família em um momento como aquele?
Diante da verdade, ele a encarou, lívido.
― Foi um acidente, Felicia. ― Seu tom era cansado e distante.
― Não minta.
A suspeita estava nas entrelinhas, mas ele não pareceu perceber.
Ou se importar.
― É verdade. Batemos na maldita árvore. ― Ele escondeu o rosto entre as mãos. A voz saiu abafada e chorosa entre os dedos. ― Eu tentei salvá-lo, eu juro que tentei. Fiz o que pude, mas ele morreu nos meus braços.
Suas têmporas martelaram diante da situação inesperada.
― Por que se passar por ele, então?
Silêncio.
Então foi a vez de Charles sucumbir diante a tristeza e cair em um choro repentino. O homem adulto de repente virara o mesmo menino que ela se acostumara a ver nos retratos de família, tão frágil e desolado que ela não conseguiu evitar: levantou e deu a volta na mesa, abraçando-o.
Fosse o que fosse que viesse a seguir, sabia que precisaria ser forte para ouvir. A verdade parecia ter espinhos e estar ansiosa para rasgar sua carne.
― Tudo foi uma mentira, Fe. Toda a minha vida nos últimos vinte anos foi uma mentira ― respondeu ele, entre lágrimas. ― Harriet nunca me amou. Wayne estava certo. ― Então a revelação a atingiu como um soco no estômago: ― Paul não é meu filho.
Ela o soltou e recuou um passo, chocada.
― O quê?
― Nós brigamos feio ontem, na volta. O Paul tinha saído, por sorte, e não ouviu nada. A vadia me contou que me traiu com um ex dos tempos de faculdade e pra não fazer nenhuma loucura, saí de casa. Vim pra cá e Wayne sugeriu que eu ficasse no chalé da mamãe até me acalmar. Estava me levando pra lá quando aconteceu.
― Eu... Eu sinto muito. ― Estava atônita.
Mas aquilo ainda não explicava tudo.
Como se adivinhasse isso, ele continuou:
― Eu não quero voltar pra lá, não quero viver essa mentira. Não consigo mais olhar pra ela e o garoto não merece descobrir isso. Achei que se fingisse ser o Wayne, fosse embora e não voltasse mais, todos ficariam bem.
― Acha que é justo com eles? ― Sua voz saiu entrecortada.
― De qualquer forma, ele está morto. O sofrimento é real.
― Tio, eu... ― Deu as costas em direção à janela. ― Eu preciso pensar.
― Fe, por favor. Já é tarde demais pra desfazer, só traria mais dor. Nem todo mundo é como você e Alexander. Tente entender. Não tem como esse casamento acabar de forma pacífica, pense no escândalo. Pense no Paul.
Os olhos dele brilhavam de lágrimas quando ela se virou.
― Foi um plano engenhoso ― admitiu.
Ele franziu o cenho, confuso.
― Como descobriu?
― Além do apelido? ― Ergueu a mão esquerda. ― Graças ao sol.
Ele encarou as próprias mãos e sorriu de canto.
Na dela, o bronzeamento quase fizera sumir por completo a marca da aliança; ao passo que na dele realçara porque o anel estivera lá durante toda a manhã. Ela percebera ao pegar suas mãos e tentar consolá-lo no velório, mas estivera com a mente anuviada demais pela dor para reparar na hora.
― Estou orgulhoso de seu talento nisso, Fe, e acredite em mim, não queria você metida nessa bagunça. Sempre amei você como se fosse minha filha. Por favor.
Só havia um caminho a seguir, e foi ali que Felicia fez sua escolha.
― Não acredito!
― Nem eu.
― E aí, foi só isso?
― O que queria que eu fizesse, Andrei? ― Não estava verdadeiramente ofendida, mas ele não precisava saber. ― Minha única condição foi que ele deixasse o país imediatamente. Consegui uma passagem no último voo pra Espanha, ajudei a terminar a arrumação e o despachei no aeroporto.
― Uau, não quero pensar como foi pra você.
― Estou magoada, sim... Mas não consigo odiá-lo ― admitiu. ― Ele está certo, nunca mais ia ser a mesma coisa. Deixar tudo como está é horrível, mas revelar ia ser ainda pior.
― É, tem razão. ― Ela ouviu o suspiro pesaroso do outro lado da linha. Contudo, logo ele se recompôs. ― Acho que temos um recorde aqui, caso resolvido mais rapidamente na história!
Ela sorriu.
― E olha que eu ainda estou de férias.
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Não quis falar lá nas notas iniciais para não dar spoiler, mas a ideia veio quase todinha do clipe de "Haifisch" que é um dos meus preferidos do Rammstein. Você pode vê-lo aqui:
https://youtu.be/GukNjYQZW8s
E caso tenham gostado, deixem comentários <3 Adoro ler a opinião de vocês. Se gostou e não sabe o que dizer, aceito estrelinhas. Muito obrigada por terem lido até aqui e até a próxima :D
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