KHÁTARSIS: DEVERIA TER SIDO
And I've got a lot to pine about
I've got a lot to live without
I'm never gonna meet
What could've been, would've been
What should've been you
[Bigger Than The Whole Sky, Taylor Swift]
Seus olhos estão pegando fogo.
Daqui, em uma distância consideravelmente segura, consigo sentir o calor queimar as pontas dos meus pelos, sinto meus dedos tocarem em brasa quando aperto a manga do cardigan, e todo o meu corpo arrepia quando você aterrissa como se não passasse de um floco prestes a se tornar líquido gelado entre os dedos.
Admiro a sua postura sempre tão ereta e imponente, o sublime intocável resvalando brando sobre o concreto, transpassando em idas e vindas sobre realidade. Seus olhos de águia se suavizam a cada movimento novo, a cada rodopiar, e seu sorriso se instaura por todo o rinque de patinação, saborosamente agudo como o aço cortando o gelo.
Admiro a destreza com que move os pés, nunca dessincronizados, frente e trás dançando como se a gravidade fosse lenda porque você permeia, mas não toca o chão. O compasso ritmado de um anjo fadado a nunca cair, pelo contrário, habilmente sobrevoa com a classe de um ser místico, entrelaçando suas duas faces em um adejo feroz e doce, criando o sentido de antítese para enfim, completar o salchow com a brandura e repousar como se beijasse a flor mais delicada do jardim.
Sua beleza, leveza, dedicação e até mesmo o toque firme e delicado que não sinto é fascinante, me prende ao som doce do corte fino na superfície em que dança — uma flauta encantada que chama o meu olhar e sorrisos sem me pedir permissão. E eles vêm, cada pedaço do meu consciente deseja se aproximar, sem cerimônia alguma, até mesmo meus pés formigam para ir até você, até o gelo e essa coreografia infinita de um momento efêmero.
Você não tem medo do tombo, isso é ainda mais admirável.
O espio com a triste certeza de que não deveria estar aqui, agindo conforme o impulso irrefreável, numa curiosidade arriscada, fujo do mundo quente lá fora e sempre encontro abrigo quando o observo aqui, rodopiando, saltando e deslizando graciosamente entre saltos e toques graciosos.
Guardo minhas ambições para minha carreira, ela sim pode me levar em algum lugar de verdade e ser algo grande, não preciso ter tanto medo de que ela não dê certo, justamente porque quanto ao amor, esse que me arrasta até aqui, não poderia ser tão penosa.
Deus não permitiria que eu apenas fosse uma figurante em todos os aspectos da vida, permitiria? Em alguma área as coisas precisam dar minimamente certo para que a centelha de esperança, a crença fervorosa nas convicções que nascem das entranhas, não seja apagada pelo balde ardentemente frio jogado sobre ela.
Bom, minha centelha vira uma pequenina fogueira quando o observo limpar as lâminas dos patins, quando checa se está tudo nos conformes em seu uniforme de treino e sinto que a fogueira pode crescer quando toca a mão de sua parceira. Porque através da cena perfeita — você deslizando sobre o gelo — consigo me encontrar em devaneios onde estou no lugar dela.
Me sinto uma perdedora quando venho aqui sabendo o que encontrarei, suas mãos na cintura dela, perpassando os braços e pernas como se não houvesse mais ninguém os observando. Sua devoção à coreografia e profissionalismo em ouvir as duras correções, esse fogo nos olhos que quase derrete o gelo pelo qual você baila, e eu nunca estou ao seu alcance, nunca perto o suficiente para viver cada evento causado por você. Não mais.
O que há de humilhante no platonismo também há de beleza, porque o amo sem esperar que você responda que esse acelerar de coração também é real em seu peito. Então não me importo que toque nela, bom, me importo, mas há um aceitar de sina que supera as expectativas de ser vista por você e retornar a um contorno para a estrada abandonada que nunca pegamos.
Fazia um bom tempo que não o visitava, não ficava nos fundos, no penúltimo corredor das fileiras de cadeiras procurando me manter distante, longe o suficiente para não correr para o rinque. Então mais uma vez rememorei os dias secretos do depois, quando tomava meu chá de pêssego, bem gelado, enquanto o via morder os lábios, colocar os dedos nos próprios ombros formando um x ao girar. O movimento perfeito, que me tira do eixo e no espaço de tempo em que estive fora, longos três meses de reflexão, achei que beijar outras bocas fosse extinguir isso, esse ardor que cresce ao te observar dialogando com o treinador que sempre parecia tão sério.
Hoje cheguei atrasada, depois de todos esses dias longe de vir espiar sua arte e seu amor, então o ensaio já está chegando ao fim e talvez eu devesse fazer como sempre, partir antes que você fosse embora, antes que você saísse de seu palco gelado e sumisse pelo vestiário. Porque quando em um dia quente, esperei até que você fosse primeiro, tive a impressão de que seus olhos estavam em mim, brevemente, mirou em minha direção e parecia que um sorriso iria surgir, mas sua parceira também era seu par fora dos treinos e competições.
O amor bateu em sua porta, e tenho certeza que com seu jeito sofisticado o abraçou e entrelaçou os dedos do ar quimérico, pronto para dar pequenos loops com o romance que quase nos encontrou. O amor que bateu em sua porta com os braços abertos para te enlaçar e sentir o perfume doce de seu pescoço, por tão pouco, quase foi o meu.
Então senti dor ao esperar você se despir deste pedaço artístico seu, como se isso fosse possível, voltar a ser o rapaz comum com o estilo próprio — o único de todos os homens e mulheres a ficar tão elegante com um simples moletom cinza e calça de alfaiataria marrom —, tornando a ser alguém que fica além do meu radar. Voltar a ser o amor de outra pessoa, o amor que poderia ter sido meu.
O beijo que não consegui sentir, que ia além da minha capacidade de fantasiar era o único lugar que nunca estive com você, torturou a carne que pulsa em meu peito por tanto tempo que achei possível ficar doente de amor. Sim, eu já sentia as miosótis e tulipas crescendo dentro de mim, por isso escolhi permanecer somente até onde poderia suportar a falta de ar.
Mas antes de sair às escondidas para não ver algo que me quebrasse dessa vez, sua colega e amante pegou a mochila, se despediu tão friamente e se foi sem tocar teus lábios.
O observei se manter em pé sobre os patins, apoiado no batente, os braços cruzados enquanto olhava para o chão e apenas respondeu que ficaria um pouco mais quando o treinador perguntou se não iria também.
Eu ia, eu juro que iria embora, meu objetivo em vir aqui depois de tanto tempo foi findar isto, este sentimento unilateral que germina e me traz a sensação de que vomitarei flores. Mas você começou a deslizar vagarosamente sobre o gelo, sem grandes movimentos, sem a velocidade ideal para pegar um impulso.
E então... o tom cálido e grave sobressaiu ao som da dança de seus pés, a sua voz profunda reverberou ecos no vazio que estou preenchendo, repercutindo em meu corpo o paralisando membro por membro, me empurrando para uma catalepsia.
Sua voz direcionada em mim é como uma falsa morte, não fujo e também não vou ao seu encontro, apenas escuto atentamente os sons ao meu redor. Não há como me mover e meu coração bate de uma forma estranha, meio calmo, meio descompassado.
— Fazia um tempo desde que você não vinha... — Você não me olha, mas sinto que há câmeras apontadas para mim — Achei que tinha enjoado dos ensaios.
Uma resposta foi ensaiada em meus lábios, mas como? Como eu diria algo quando meu propósito era seguir como mais uma anônima, uma admiradora secreta do seu bailar sobre o gelo, uma amante do esporte prestes a encerrar meu momento de paixão platônica.
— Acho que você já sabe que os ensaios são fechados. Sem público, sabe? Mas vejo que resolveu fazer uso de seu privilégio, não é? — Ainda não consigo olhar para você e minhas mãos suam — O gato comeu sua língua?
— Eu não virei mais, desculpe, é a última vez.
A última vez que desejarei ser sua dançarina, o último suspiro por você e pelo rinque. Pretendo me afastar desse reinado pálido, cujo governante é o sussurrar do atrito das superfícies, então não voltarei mais aqui.
— Você gosta? Do que vê, do nosso espetáculo? — sua voz profunda tem grande impacto diante a acústica que nos rodeia preenchido pelo chiar da lâmina no gelo — Quero sua opinião, ela sempre é fantástica.
— Vocês são bons, têm sintonia — meu coração afunda no peito e o chiado permanece, eu gostaria que fosse mentira — Tanto o seu pouso quanto o dela são suaves e não faz o gelo quebrar em muitos pedaços — Quando me observa entre a franja que cai sobre os olhos interrompo minha fala, preciso respirar para terminar minha dolorosa sentença — E então tem a química, vocês são perfeitos.
Ouço o cravar quando freia, a lâmina perfura, causa rachaduras, mas já não é o gelo que grita, é meu coração murmurando o que eu não queria que existisse, queria que a frase fosse sobre nós, sobre o sentimento que hoje pulsa somente em mim.
Percebo que findar esse ciclo é mais intenso do que idealizei, porque sinto e escuto tão bem que posso vê-lo em minha frente, bem aqui, exatamente onde pulsa, a carne em meu peito jaz espalhada em cacos junto a poeira branca...
— Em patinação artística se não há química entre o casal, a equipe acaba ficando fadada a não encantar... Bom, ninguém quer perder a competição — finalmente o olho e você está esticando o braço frente a sua barriga, como se fosse tocar em outro alguém — Temos que ter fogo nos olhos enquanto seguimos os passos minuciosamente ensaiados.
Por isso sempre o vejo queimar vermelho sobre o palco azul? Por que cada frase dita por você torna as coisas mais difíceis de digerir?
— Isso é desafiador. Bom, às vezes é — tento não deixar minha voz reverberar trêmula e consigo alcançar o objetivo com poucas falhas — Sabe, transparecer devoção.
Meu coração está tão alto que talvez a acústica do lugar o revele no mesmo tom que nossas vozes e o corte do metal.
— É se entregar inteiramente, é a devoção ao quanto o seu corpo se dobra, estica e mantém a instabilidade — Uma de suas pernas está levantada no ar, enquanto a outra na vertical o mantém equilibrado. — Isso começa a ficar difícil quando uma equipe está se desestabilizando.
— Mas essa entrega... — Suspirei, eu deveria ter ido antes, quando ainda não tinha sido percebida — Ela não te dá abertura para descobrir onde começou a desandar?
Você está pensando no que eu disse, e aos poucos recolhe a mão estendida, a perna direita volta ao seu lugar e suspira ao parar no meio da pista.
— Você ainda ama patinação? — Gosto de observá-lo com a camisa preta grudada em seu tronco, consigo perceber sua respiração descompassada. — Você está bem?
Finalmente nossos olhos se encontram e acho que aqui mesmo minha primeira e última catarse se inicia e se finda, essa dança artística, esse pairar no gelo deveria ser nós dois. Fecho meus olhos e vejo claramente: teria sido você.
Meu coração já não se decide se acelera ou para abruptamente, de gritar, de imaginar o que deveria e o que poderíamos ser se... Você ainda lembra?
— Receio que sim, não tanto quanto um dia amei, mas... — sorrio, é tão triste que nem quero continuar sendo observada por você — Ainda faz parte de mim, mas já não dói.
Olhamos na mesma direção, meu tornozelo coberto pela meia branca estava inteiro, pelo sorriso que vacilava em seus lábios compreendi, ia além daquele osso, alcançava o músculo bombeando sangue e tocava no ponto final que as circunstâncias me ofereceram.
— Você ainda faz parte da equipe — Suas mãos estão na cintura e a cabeça pende para o lado enquanto alguns fios caem detrás de sua orelha — Venha, relembre um pouco como é estar aqui.
Você está estendendo a mão para mim e, meu Deus, eu quero que você exploda, vá para longe e não atenue minha vontade de chorar, mas ajo completamente oposto ao que minha carne pede, sigo em sua direção.
Sento no banco e abro a bolsa, nela está minha antiga companheira, rosa com meu nome gravado nela, o primeiro nome esquecido pelos íntimos, mas existente em homenagem a pianista favorita da minha mãe. Ela diz que Liana soa tão doce quanto uma sonata de amor e se enlaça perfeitamente ao meu destino, ser luz dentro ou fora dos rinques de patinação.
Calço em busca de imersão, ainda serve bem em meus pés e isso me faz querer desmanchar em saudade inebriante, porque lembro de como era estar ali de verdade, sem depender exclusivamente da minha imaginação, o que foi verdade.
Ao estar de pé e alcançar a sua mão eu me lembrei de como fora meu primeiro contato com você, onde o conheci na pista, quando eu ainda podia patinar, quando eu tinha a oportunidade de fazer parte.
— Iremos pegar leve, tudo bem? — Assenti quando ficamos de frente um para o outro — Eu sei que você vem escondido há muito tempo, Liana.
E então me viro, mas mantenho as mãos agarradas às suas, avançamos vagarosamente e a sensação de estar aqui novamente inunda meus olhos, preciso respirar fundo e piscar para afastar as lágrimas.
— Imagino que deve ser doloroso para você, se não quiser...
É mais que doloroso, estraçalha pouco a pouco o meu âmago e apesar disso escolho observar as possibilidades que nunca terei, escolho me ferir para de alguma forma encontrar a cura para meu coração. Finalmente encontrar um fim para dois amores que não me pertencem, que estão conectados intrinsecamente a ponto de não se desatarem e me sobrar apenas uma escolha, a de deixar ir.
O patinador que me tirou o fôlego em nosso primeiro teste, o esporte que me deu esperanças para as tomar repentinamente.
Eu paguei o preço por um movimentar de pés errôneo, do chão vi meus amores se despedirem de mim com lágrimas nos olhos e você, Taehyung, me dizia que tudo ficaria bem e nós iríamos treinar juntos dentro de poucas semanas.
Essas semanas se tornaram meses e, olhe eu aqui, 1 ano após um bater de asas no outro lado do mundo que se traduz facilmente na frase que disse a mim mesma com um humor ácido, o dia cinza e o mal estar que senti pela manhã eram um presságio que não notei, no fim Murphy não errou mesmo e sua lei se concretizou.
Balancei a cabeça para afastar as lembranças do fatídico dia em que meu ponto final se dava, antes de eu decidir estender a ilusão por mais algum tempo.
Interrompo a insinuação da possibilidade de não patinar com você com um aperto em sua mão, quero deixar claro que apesar da ferida profunda sinto a cicatrização da marca do primeiro amor perdido, o resquício volumoso do amor que tem ter sido jorrado até que acabe de vez.
— Você me viu?
— Vi. — Sua voz desliza até mim como um sussurro pesado, quase não posso aguentar — Enxerguei você todos os dias em que se escondeu.
— Então você me notou a cada dia que estive aqui. Em todos eles quis ser apenas um fantasma apreciando o espetáculo, a dança que eu já não participo.
Minhas lágrimas irão estragar tudo se eu não me controlar, tropeçarei se isso for longe demais e então cogitar a possibilidade me faz tremer e temer me machucar. O gelo que nos faz dançar é o mesmo que me trouxe a primeira morte, então controlo minha respiração porque eu já não tenho mais nada para ele roubar, certo?
— Estive esperando que você respondesse as mensagens. — fizemos uma curva, sem erros, perfeita — Mas nunca vieram e até cogitei que tinha feito algo errado.
— Ninguém fez, — Eu mesma o fiz.
— Sentimos sua falta, a pista e eu.
— Sinto falta de vocês, por isso venho — Sua mão que segurava minha mão esquerda deslocou-se graciosamente por minha cintura — Vinha. Essa é minha última vez.
— Você foi forte todo esse tempo, espero que saiba.
— Minha terapeuta me fez olhar por esse lado também. — Minha voz soa abafada diante da sua — Então estou tentando fazer essa crença germinar em mim.
— Espero que ela germine e crie raiz. — Meu braço está sendo estendido por sua mão, acima da minha cabeça, enquanto nos aproximamos do centro. — Você foi a melhor parceira que tive, todo pós-treino eu me sentia um cara de sorte só em ver teu sorriso.
— Eu fico feliz — e então você me gira vagarosamente, com todo cuidado para que nada me aconteça — Mas como eu disse, você e Sarah têm química.
— Temos, não temos? — seu sorriso chega baixinho quando minhas costas tocam em seu peito.
— Há algo errado entre vocês?
— Sarah me pediu um tempo — um suspiro derrotado e o mesmo coração que ainda sonhava acordado com uma oportunidade se entristece — Estou respeitando...
— Mas você a ama...
Dizer isso quase me faz esquecer que estou sobre o gelo, que devo tomar cuidado para não sofrer outro acidente, um que me tire mais do que a chance de patinar profissionalmente, mas a de nunca mais ficar de pé sobre os patins.
— Amo.
Estou virada para você quando sorrio triste, eu sei que notou. Óbvio que veria e por isso não respondi suas mensagens antigas, por isso não retornei as ligações e justamente por isso me escondia e torcia para que não fosse notada. Mesmo que suspirasse pelo dia em que tudo não passaria de um pesadelo, eu acordaria e estaríamos com sorrisos bobos depois do treino.
Desejava que nosso encontro, aquele marcado para um sábado que seria ensolarado e nos faria tomar inúmeros sorvetes na Kim's, a filial da sorveteria antiga que você adora e sempre lembra a origem humilde em uma cidadezinha que não lembro o nome, mas que sua estilista favorita frequentava com amigos na juventude.
Permaneci muitos meses longe de seu toque e da patinação, então espero que entenda meu nervosismo a cada curva feita na velocidade perfeita para aproveitar cada segundo como se fosse a vida inteira.
Estou prestes a fechar os olhos para tentar colocar todos os meus sentidos em ordem, aguçar cada um deles a ponto do momento permanecer eternamente tatuado em minha alma. Um decalque para rememorar como foi sentir os vestígios do primeiro amor batendo em meu peito, quando seus braços me seguraram alto num giro lento e cuidadoso. Tão delicado quanto descer e aterrissar a salvo, será uma gravura de como foi dançar sobre o gelo com o amor que poderia ter sido, quase foi, mas estava destinado ao trágico platonismo.
Um idealismo quase se tornando real que, em meus poucos anos somado ao nosso ritmo sem pressa, foi pego de surpresa no meio de uma pirueta, interrompendo nossos planos de um sábado à noite romântico.
Quando em um movimento que ainda conheço bem — porque as lembranças de uma patinadora sempre guardaram seus movimentos como um relicário de sentimentos, conheço meu corpo e você ainda lembra como ele funciona —, nossas mãos estão juntas, na altura dos seus ombros, quando você me olha como se eu fosse uma bailarina de uma caixinha de músicas, meu coração se parte mais uma vez.
Meus olhos perguntam se você também ensaiou nosso primeiro beijo após semanas encostando mãos e ombros, após bochechas em brasas e elogios que me faziam perder o rumo da cafeteria, todo pós-ensaio. Você imaginou como seria tocar em meus lábios? Eu tremia a cada possibilidade de terminar a noite sendo mais que sua parceira, você não?
Seu sorriso está triste, meu bem, e isso é cortante demais nessa despedida dolorosa.
Estamos girando sem sair do eixo, e seu olhar me grita que sim, você ansiou por um porvir que não chegou, mas que por vislumbres — num passado onde nossos corações dançavam em piruetas que pareciam não ter fim — éramos nossa própria dança inocente. Nenhuma previsão de contusão ou fratura de ossos, nada de paramédicos e choros de dor e medo. Os meus sonhos estavam intactos, dando seus primeiros passos e finalmente eu estava pronta para lhe roubar um beijo se você tivesse desistido de tentar enquanto eu me distraía com algo, um passado que jamais baterá à nossa porta, agora seu coração já não me pertence.
— Eu senti a sua falta. — Você me calou, não consigo responder e então suspirou — E sinto muito pelo que aconteceu. Pelo seu tornozelo e por não ter a segurado...
— Eu também sinto muito que meus planos se alteraram. — Meus olhos estavam enchendo e de repente desejo não estar aqui, no ponto de partida e de interrupção. — Mas você não poderia ter feito nada, aconteceu. Só queria que tivesse dado certo, mas estou em uma nova rota.
Eu quis dizer a patinação artística como minha principal profissão, quis dizer os sentimentos que borbulhavam entre nós dois.
— Confesso que não consegui entender o motivo de você ter se afastado, porque eu queria estar perto.
— Você sempre foi gentil, representou uma parte bonita da minha vida e depois que precisei abrir mão... — Respiro fundo, meu coração se comprime quando você toca em minha bochecha.
Estou chorando e é você quem enxuga as minhas lágrimas.
— Foi só muito difícil ver meus planos frustrados, então preferi observar de longe. Cortei os contatos íntimos, porque se eu mantivesse minhas amizades daqui, indo ao café depois do ensaio, ouvindo vocês reclamando sobre o quanto o treinador pediu para refazer o mesmo passo da coreografia, essas pequenas coisas fariam minha admiração se tornar mágoa.
Quando meu choro se intensifica e já não consigo observar cada estrela estampada em seu rosto apolíneo, seus braços me envolveram e sinto que posso desmontar bem aqui.
— Mas a saudade de ver como era divertido treinar com vocês me fez visitar algumas vezes.
— Então você se escondeu de todos nós nesses meses — a sua voz está baixa e embargada, me pergunto se também está chorando — Todo aquele tempo que passamos juntos, eu fui apaixonado por você.
Meu coração se expande ao ouvir finalmente traduzido em sua própria língua o que os seus sinais já me adiantaram, a afirmação do que em meu íntimo já sabia também me esbofeteia com mais uma pedrada do destino, não seremos nesta vida.
— Esses momentos sempre serão minhas lembranças mais bonitas — sussurrei o segredo que guardei para o momento que poderia ter acontecido. — Fico feliz por você ter seguido em frente, mesmo com o fantasma do que poderíamos ter sido.
Aos poucos me sinto genuinamente feliz em ver que o coração dele está seguro, amar alguém é entender que estar ao meu lado não é a única opção para ele ser feliz. Há outros lares para ele pousar, no meu ele apenas sobrevoou por cima e, por um momento se aproximou, um beija-flor prestes a beijar o centro de uma flor até que uma incógnita o afastasse.
— Também fui apaixonada por você, me desculpe por ter escolhido o silêncio.
Você pegou em minha mão, me tirou do meio da pista diretamente para o canto, onde eu poderia me apoiar no batente e o agradeci em um sorriso que vacilou quando pegou em minhas mãos novamente e as juntou, continuei nos observando como ficavam bonitas juntas.
— Você está mesmo se despedindo depois de todo esse tempo me evitando?
— Eu o evitei por muito tempo, mas... — Finalmente o olhei nos olhos novamente — Você sabia que eu estava aqui todo esse tempo, ainda assim me fez acreditar que estava conseguindo passar despercebida. Por quê?
— Porque tive medo de tocar em algo que poderia não ter cicatrizado em você, porque me senti culpado pelo acidente, porque a amei a ponto de acatar com seus limites impostos em mim, pela ausência do seu falar e das suas ações.
Amou?
Meu corpo retesou, minha carne se tornou pedra para só depois que suas duas mãos quentes amparassem meu rosto, o impedindo de seguir sua rota em busca de estar escondido do seu julgamento. Somente após o toque capaz de colorir todo o sépia minhas pernas poderiam se transfigurar em algo gelatinoso, tremiam e esqueci como ficar de pé sobre o gelo, desaprendi o que eram convicções e o que eram dúvidas, já não sabia me equilibrar em cima de uma lâmina.
Mas você me segurou, então não tombei porque me abraçou e me apertou junto ao seu peito mais uma vez aqui.
Em minhas noites vazias de qualquer sono buscava todas as reminiscências do que era patinar, de como era a sensação de deslizar como um cisne, de como é dançar sobre a água sólida.
Inserida numa fábula onde rodopiar também é mergulhar e saltar é submergir no alçar de um voo, a pele arrepia a cada espera agonizante para ouvir a sina, vencedora ou perdedora, pódio ou prêmio de consolação.
Você esteve lá sorrindo e chorando simultaneamente, gritando às vitórias e silenciado frente à decepção que somente uma pequena falha tem o poder de estourar em um amplificador de emoções catastrófico, abraçando-me tão forte que achei ser possível me fundir à sua carne.
Me fundir a você foi a idealização mais assustadora e dolorosa que me permite desenhar, uma troca de alianças e noites cheias de amor que deveriam ser nosso presente e futuro, sonhar com o que poderíamos ter sido foi meu autoflagelo.
Ter você e ser você, ser sua parceira ou competir contra você. A minha benção seria ter conseguido concretizar o que as reminiscências do nosso contexto de sonho interrompido rebobinava, sempre incluindo uma cena a mais, sempre adicionando mais um toque fantasioso.
— Me perdoe por ter dado um passo errado, você teria sido vencedor se não precisasse ter competido com outra parceira. — Depois de tanto tempo finalmente o abraço.
— O que poderia ter sido não muda as nossas vidas, os passos que estamos dando já estão encarregados de nos levarem para uma novidade, para um salto e pouso suave. — Ele falava sem ao menos notar o ar de admiração que nos rodeava enquanto abraçados — A parte bonita é que não há juiz, e também não precisamos de aplausos para estar aqui. Onde escolhemos estar.
Seu seu nariz inspirando em meu cabelo enquanto pequenos tapas são desferidos em meus ombros, um consolo pela maré de revés que me engoliu e cuspiu na praia, deixando para para trás um amontoado de arrependimentos. Mas para além das minhas aflições, das bagagens que carrego, o mar deixou uma nova página pronta para retomar sua história, na vírgula ideal para ser tecida.
— Tenho uma evolução significativa depois de perder dolorosamente — depois de um curto silêncio voltou a falar quando eu já sentia incômodo no meu tornozelo direito. — A derrota pode quebrar meu coração, mas nada se compara com o meu levantar porque, modéstia à parte, aprendi como cair e o levantar é um ascender ainda melhor após queda.
— Sim, mas isso tudo pode ser cruel — soltei uma risadinha com humor, uma tentativa de deixar o clima mais leve.
— Gelo algum é páreo para as lâminas em seus pés, que congele um lago onde a neve não chega, você dançará sobre ele,
— Eu gostaria de não ter perdido tanto para isso acontecer. — A patinação, você. — Mas não posso dizer que os rumos me trouxeram a um lugar desolado, Tae, sei que o amor não está condicionado às variáveis que achei serem as únicas possíveis.
— Uma vida tem muitas ramificações, Liana — beijou a minha testa e posso afirmar que a tatuagem do seu amor jamais desbotará em mim.
— Seu coração pode ficar em paz, já dei alguns passos rumo aos próximos amores. — Dessa vez tenho coragem para segurar em seu rosto.
Acaricio a pele quente de sua bochecha, percebo que os pelos faciais despontam aos poucos, imergem num rosto de um homem apaixonado pela vida, completando a beleza que dá forma e é responsável por parcela de sua fama. Ele é lindo e suas imperfeições têm as medidas metricamente calculadas para deixarem de ser falhas, e tornarem-se o colírio ideal para corações.
— Se você a ama, a ame com todo o seu coração vá atrás dela, não a deixe escapar. — Sinto os fios das sobrancelhas, as bagunço com um sorriso que, eu sei, não parece ser o mais alegre. — Você já sabe que se o mesmo erro é cometido, o mesmo resultado será o fruto.
— Eu queria que não fosse uma despedida. — Seu sorriso está surgindo resoluto, mas é sincero assim como tudo em você.
— Nunca é uma despedida enquanto nossas memórias viverem. — Meu indicador aperta de leve a ponta do seu nariz e então escuto a sua doce e aconchegante gargalhada.
E esse som é tudo o que meu coração precisava para descansar, ainda há a dor que somente um coração criador de expectativas é capaz de suportar, ainda resta o gosto ácido do que não terei e do que nunca irei conhecer. perdi o que não toquei e em nosso abraço final, este apertado, ainda cogito um bater de asas e Murphy gargalhando no pós vida quando um último abraço apertado embalado por risos chorosos foi dado.
Você me acompanhou até o banco, desatamos os nós, ficamos em silêncio digerindo as últimas vezes com a fé no que ainda é improvável.
Nos veremos novamente? Amarei novamente?
O deixei em seu habitat, com as lágrimas inundando o meu rosto e o coração acelerado acenei frente a porta de saída vislumbrando o meu artista, o meu amor e todo o mar que não explorei.
Mas a vocês, meus grandes amores, lamentarei em noites solitárias enquanto todo esses sentimentos conflituosos ainda existem emaranhados e, em contrapartida o sorriso virá ao lembrar do que vivi depois que minhas lágrimas fizerem sua parte, remexerem no que estou curando e enfim serem minhas memórias de alegria e esperança.
Ao final eu sei, pisarei em um outra pista de patinação e em meu coração essa catarse sobre o que deveria ter sido, será meu tesouro intocável. Em minhas memórias sempre serei esportista, sempre terei amado, apesar de tudo, meu coração no fundo acredita.
Não é um completo adeus, é a khátarsis, a purificação de um amor perdido, mas deveria ter sido lindo.
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