Sem Conexão
Foi apenas mais um dia comum, Akira estava em alguma lugar fazendo serviços externos e eu estava enfurnada dentro da casa dele fazendo todas as tarefas que envolviam escrita, correção e burocracia; ou seja, somente a parte chata enquanto o homem ia de fato conversar com os outros feiticeiros jujutsu.
A residência de Akira era simples, dois quartos, um banheiro, e uma sala grande que emendava na cozinha. Nesse espaço compartilhado havia uma mesa de canto que era o que ele chamava de escritório e onde consequentemente passava a maior parte dos meus dias.
Enquanto refletia sobre minha estadia na Grécia, olhava a cortina de tecido leve e branco dançar com o vento, a brisa era quente e salgada, parecia acariciar minha pele com esmero trazendo fim do dia. Pela porta que dava acesso à pequena sacada conseguia ver o mar cor turquesa refletindo os raios de sol preguiçosos embalados pelas ondas. O cenário era pitoresco, uma tela desenha pelo melhor dos pintores, ainda pela porta conseguia enxergar os telhados coloridos e as casas de paredes claras que desciam a rua.
A porta rangeu anunciando uma nova companhia.
-Voltou cedo hoje - comentei para Akira que passava pela entrada com sacolas na mão.
-Trabalhei muito, vou me dar folga pelo resto do dia - comentou - Trouxe jantar, estou com preguiça demais para lavar louça depois.
Dei risada, sempre foi nosso pequeno trato. Eu cozinhava ele lavava a louça, até porque o homem não era um dos melhores cozinheiros, embora estivesse melhorando.
-Não estou reclamando - estiquei meus braços para cima num alongamento mais do que merecido antes de me levantar de vez - Trouxe a minha encomenda?
-Sim, mas porque você quer encher a minha casa de flores? - ele apontou para uma sacola de tom verde oliva posta sobre a mesa, dentro tinha um bonito vaso de barro vermelho com violetas brancas.
-Porque é entediante ficar aqui olhando para sua decoração ruim - tirei da sacola tocando de leve as pétalas aveludadas, algumas com leves pontinhos e um centro amarelo vivo - Já não se sente mais feliz só de olhar pra elas?
O homem fez uma careta e balançou a cabeça - Se você diz - Akira apoiou as duas mãos no balcão antes de me encarar - Como passou o dia? Teve mais algum mal estar?
Já fazia algum tempo que me sentia cansada, com uma sensação incômoda no peito e um organismo um tanto quanto rebelde. A princípio achamos que era alguma comida a qual perdi o costume de comer, já que nas primeiras semanas me aproveitei da culinária rica do local, mas os enjoos permaneceram por dias.
Andei até o armário pegando um prato pequeno para servir de apoio temporário para a flor, e respirei fundo antes de responder - Não passei bem de manhã mas parece ter melhorado depois do almoço.
-Certo, vamos ficar de olho. - ele passou por mim, beijou o topo da minha cabeça e seguiu para o quarto - Vou tomar banho, podemos comer logo depois. Estou morto de fome.
-E quando você não está?
Akira ergueu um dedo não muito educado pra mim em forma de resposta e sumiu, depois de achar o prato que queria coloquei embaixo do vaso. A terra parecia um pouco seca, então pegando um copo qualquer e enchendo de água resolvi regar, ou algo próximo disso, a pequena planta.
Entretanto no meio do caminho algo estranho me arrebatou, o copo caiu no chão se partindo em dezenas cacos e quando percebi eu mesma estava apoiada contra a bancada buscando por ar. A visão turva e o corpo não parecia responder aos meus comandos, senti minhas pernas fraquejarem e caí no chão batendo a mão no vaso de violetas que ficou completamente destruído ao meu lado.
Caí sob alguns dos cacos de vidro, esses cortaram minha pele tingindo a água derrubada com um tom avermelhado. Minha sensação era de estar dopada, consciente, porém sem qualquer controle do que acontecia dentro de mim e meu coração batia tão rápido, mas tão rápido que em certo momento ele pareceu ficar lento e mais lento até que parou.
E voltou.
Nesse momento todos os meus sentidos retornaram de uma vez e tudo que pude ver foi o rosto contorcido de um Akira preocupado chamando meu nome. Pisquei algumas vezes sentindo um enjoo sem igual e uma vertigem violenta, com o braço me apoiando o homem me virou e em seguida me levantou colocando no sofá da sala.
-Não parece ter cacos de vidro presos mas não se mexa - e em seguida ele puxou o celular falando com alguém que eu não reconheci, mas o que realmente recebeu minha atenção foi o vaso atrás dele. As violetas brancas estavam tranquilas em cima do balcão presenciando tudo aquilo pacificamente.
Geralmente essas flores são associadas a simplicidade e lealdade, mas quando têm pétalas brancas acaba ganhando outro significado, o de promessa.
Me sentei num salto e antes que pudesse perceber tinha saído da maca, ou o que quer que fosse o lugar em que estava deitada; corrido em direção a pia despejando tudo que tinha no meu estômago para fora, o que não era muita coisa. Meus braços tremiam enquanto sustentavam o peso do meu corpo contra o lavatório de metal da sala de autópsia.
-Fala sério é eu tirar os olhos de você por um segundo que acorda - uma mão gentil desenhou círculos nas minhas costas. - Está tudo bem, deixe sair.
Vomitei até que as lágrimas caíssem dos meus olhos, só então tendo tempo para perceber que meu corpo inteiro estava dolorido e quente. Abri a torneira enchendo a boca de água na tentativa de me livrar do gosto amargo de bile.
O jaleco branco denunciou quem era - Consegue andar? - Shoko perguntou e eu balancei a cabeça em negação não conseguindo encontrar voz para responder.
Apoiando meu braço sobre os ombros a mulher me ajudou a caminhar até o sofá na sala, depois de me dar um copo d'água consegui falar de novo.
-Eu morri? - perguntei olhando em volta - Porque estou na sala onde você faz dissecação?
Por incrível que pareça Shoko deu risada e se sentou do meu lado - Não, só não tinha outro lugar para te esconder. - minha amiga suspirou e apoiou a cabeça no encosto almofadado olhando para o teto.
-Todos nós sentimos uma perturbação, como se algo realmente grande estivesse acontecendo - disse com a voz mais calma - Quando Satoru apareceu com você nos braços e parecendo que saiu de uma guerra entendemos o que aconteceu.
Abaixei a cabeça para encarar o copo agora vazio, um reflexo de como eu me sentia.
-Diretor Yaga achou melhor esconder por enquanto, desculpe o sofá era pequeno pra te deitar. Daisuke-sensei precisava te examinar por completo.
-Daisuke-san? - questionei virando o rosto - Ele está aqui?
-Sim, está no escritório... - Shoko deixou a voz morrer como se escolhesse não a continuar aquela frase e mudando de assunto em seguida - Ninguém sabia o que tinha acontecido com você exceto eu e ele, tivemos que confirmar se não teria mais nenhum agravante.
-E qual o veredicto?
Minha amiga cruzou os braços na frente do corpo antes de me explicar - De acordo com o sensei, o "passado" atua como uma linha de tensão. Ele se junta no seu corpo, quanto mais se acumular mais prejudica sua saúde, mas como você liberou esse estresse na ilha parece ter aliviado. - e continuou - Claro que você ainda ficou mal, mas nada que não fosse resolvido com a minha técnica de reversão.
Ergui minhas mãos checando se as linhas da Dádiva das Moiras ainda estavam presentes, as quatro linhas pareciam tranquilas, kairós e chrono se mexiam quase que sincronizados como se estivessem numa dança. Trama continuava sendo a mais vibrante delas com sua cor púrpura, já a linha da promessa parecia fraca e opaca, lutando até mesmo para se fazer visível.
Mas do que ninguém sabia que não tinha como retirar as palavras ditas e as ações feitas, me bastava encarar a consequência de cada uma das minhas escolhas.
Não conseguindo conter uma careta de dor, me levantei. Shoko me ajudou novamente enquanto andamos com passos lentos em direção ao escritório dela, onde eu imaginava que Daisuke-san, Yaga-san e Satoru estavam. Dito e feito, os dois mais velhos estavam sentados nas poltronas enquanto o outro estava de pé contra a parede mais afastada.
Mantive os olhos no chão procurando não tropeçar enquanto os olhares caíam sobre mim. O diretor sendo o primeiro a falar.
-Shoko e Daisuke me colocaram a par da sua condição, e Gojo... Sobre o que fizeram. - sua voz era séria e com um tom de repreensão, talvez algo até mais triste que não consegui identificar - Tem mais alguma coisa que está escondendo de mim?
Engoli seco, ainda mantendo a cabeça baixa esfregando minhas mãos frias uma contra a outra.
Um suspiro alto e frustrado saiu de sua boa - Tem ideia do perigo em que você se colocou? Que colocou vocês dois? E não só isso, o risco de expor tudo aquilo que nós lutamos para proteger?
As palavras eram severas e só aumentavam ainda mais a minha culpa.
-Yaga-san... - Daisuke tentou interromper mas o diretor continuou.
-Depois de tanto tempo, depois de tudo que fizemos por você. Ainda não confia em nós?
Todo esse tempo quis fazer as coisas certas, ou pelo menos as que eu julguei como serem certas, sem levar em consideração aqueles que estavam à minha volta. Sem pensar que poderiam me ajudar e entender a minha dor, que estariam dispostos a tentar encontrar uma solução melhor que as minhas.
Ainda sentada, apoiei o rosto nas mãos e chorei, até soluçar, até que minha alma antes perturbada se tornasse mais nítida. Até que os meus desejos verdadeiros sobrepujassem as nuvens de incertezas e desejos egoístas, chorei até restasse apenas eu. Em sua forma mais vulnerável, com medos, vontades e arrependimentos.
Senti uma mão pousar na minha cabeça e levantei os olhos ainda embaçados para encarar o diretor.
-Não medimos esforços para te salvar a primeira vez, não vai ser desta que vamos te abandonar [Nome]. Independente da sua técnica amaldiçoada, você é uma de nós.
Balancei a cabeça e aceitei o lenço que Daisuke-san me estendeu, o médico também parecia ter os olhos mais brilhantes como se estivesse a ponto de verter lágrimas.
-Mas ainda assim preciso deixar meu aviso como diretor - Yaga-san se levantou - Não pretendo repassar o ocorrido para o conselho, eles não tem que se meter em uma briga de casal... Contudo, preciso que me prometam que não farão mais isso, não sei se aguentamos uma segunda.
Um riso sarcástico deixou a minha boca - Não só vocês.
-De fato - Daisuke-san comentou tomando o assunto - Contudo serviu como um avanço inesperado. Estava esperando você acordar para compartilhar minhas observações [Nome], imagino que Ieiri já tenha adiantado algo.
Shoko concordou e o homem pôs-se a falar novamente - Embora a resposta do seu corpo ao voltar no tempo tenha sido violenta, foi de alguma forma benéfica. Suponho que podemos testar algo como um tratamento enquanto não consegue controlar isso de forma consciente.
-Como assim? - perguntei.
-Não gostaria de fazer essa comparação, mas seria como um tratamento contra o câncer. Quando você libera o pulso do passado seu corpo se livra dessa tensão, ou no comparativo as células prejudiciais. Mas deixa vestígios físicos que podem ser tratados com a técnica de reversão ou medicina comum - ele ajeitou o jaleco - É uma medida a curto prazo, mas-
-Vamos tentar - interrompi.
Não precisava de mais palavras do que aquilo, e a minha determinação imediata também se fez evidente.
-Bom de qualquer forma ainda precisa se recuperar - Daisuke-san disse - Creio que não tenho mais nada do que ser útil aqui.
-Te acompanho até a saída - o diretor disse, restando apenas Shoko, eu e Satoru na sala. Esse último não tinha dito uma palavra sequer e mal parecia ter se movimentado.
-Eu acho que vou... Acompanhar o sensei - minha amiga disse apontando para a saída - Por favor não destruam a minha sala.
Teria dado risada se o clima não tivesse caído absurdamente, não sabia como olhar para Satoru ou como iniciar uma conversa depois de tudo que falamos durante os momentos na ilha Gunkanjima... Mas cabe a um reconhecer o erro para seguir no caminho certo.
-Como... Você está?
A confiança em minha fala era inexistente, olhei para a figura brevemente. Os machucados já tinham desaparecido, assim como as roupas rasgadas e sujas. Satoru não estava com as faixas, mas sim com seus característicos óculos escuros, depois de se desencostar da parede ele passou a mão pelos cabelos olhando para o lado.
-Bem melhor que você.
Tombei a cabeça pro lado e reparei num rasgo em minha calça - Não precisa de muito para isso na verdade.
Silêncio, uma sensação estranha e sufocante. Éramos como dois estranhos forçados a se encontrar pela primeira vez, tudo que fomos um dia terminou durante a briga e ganhou um novo começo incerto ao fim dela. Tentei retomar de alguma forma não aguentando aquele sentimento inquieto que se revolvia em meu peito, mas parei quando percebi que falamos ao mesmo tempo.
-Pode falar. - disse por fim, deixando que continuasse.
Ele colocou a mão no pescoço aparentemente sem jeito, dando alguns passos em minha direção - Shoko disse que você precisa descansar, é melhor irmos.
Havia um "para casa" escondido naquela frase que ficou oculto, acho que o receio de saber se ainda existia um nós estava pesando para ambos os lados junto com o medo de se deparar com uma resposta indesejada.
-Sim, é melhor. - fiz menção de me levantar e Satoru se aproximou estendendo a mão com um pouco de apreensão. Coloquei a mão sobre a dele sentindo a imediata diferença de temperaturas, sua mão se fechou na minha com delicadeza como se fosse quebrar a qualquer instante.
Fechei os olhos sentindo o ar se bater e quando abri já estava no centro do quarto que compartilhamos de volta a casa dele, e tão rápido quanto chegamos ele também me soltou.
-Vou buscar algo para comer - Satoru tinha as costas viradas para mim enquanto colocava as mãos nos bolsos. E assim sumiu pela porta optando pelo método tradicional ao invés do teletransporte.
Fiquei encarando a porta fechada antes de engolir seco e andar com passos lentos até o banheiro, me despindo das roupas imundas e deixando que a água quente levasse todos os vestígios da noite anterior embora. Esfreguei a pele com força até me sentir verdadeiramente limpa e não como um verme asqueroso.
Sequei meus cabelos, me enrolei na toalha e peguei uma roupa confortável no armário sem sequer ver o que era. O cansaço acumulado era tanto que mal tinha vontade de percorrer o pequeno trajeto até a cama, nem tive coragem para fechar a cortina por onde o sol da tarde iluminava o cômodo.
Assim que encostei no travesseiro pareci afundar junto dele, completamente exausta em todos os sentidos da palavra, levando apenas segundos para que sentisse o sono se apresentar a mim como um bom amigo.
*Desculpa Phillip, mas o sono chegou primeiro.
Torci para que a outra ponta do fio recebesse o recado antes de eu apagar por completo, Hipnos pesou sua mão sobre mim me levando pouco a pouco para a inconsciência mas até meu último resquício de pensamento não tive uma resposta.
N/a: Explicações de tempo, [Nome] e Gojo ficaram uma noite inteira no X1 amanheceu e ela dormiu até a tarde desse mesmo dia, então ela está aqui em algo da tarde para a noite.
E a situação segue tensa meus amores. Climão.
Capítulo GRANDE também.
Vejo vocês semana que vem.
Até mais! Xx
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top