Capítulo 21 (não revisado)


O julgamento do Marcelo iniciou-se cedo, às dez horas da manhã, e a polêmica envolvendo o maior escândalo de corrupção da época era enorme. Como Otávio dissera, o juiz intimou várias pessoas para testemunharem, além das vítimas.

A escolha dos jurados foi complicada. Pelo fato de uma das acusações ser de estupro e agressão, a defesa fez de tudo para eliminar as mulheres. Para azar deles, não conseguiram livrar-se de todas e dois jurados eram mulheres, muito mais rígidas nesse tipo de julgamento. A acusação eliminou dois religiosos e contentou-se com os demais. A tendência dos religiosos era ser condescendente. No final, sentaram-se no juri sete pessoas que definiriam o futuro do ex-deputado. Marcelo estava no seu devido lugar, o banco dos réus, ao lado do advogado que era famoso por defender esse tipo de gente. Segundo Jorge, ele ia tentar reverter a culpa para o Ricardo e a Mariana, distraindo os jurados do objetivo real. Ao ver a Mariana no banco das testemunhas, os olhos do Marcelo encheram-se de água. Ela parecia feliz, com a barriga grande ao lado do seu marido e filho. Uma parte dele, dizia que ele foi um total imbecil, mas a outra, obscura, persistia. O juiz olha para ele e disparou a tradicional abertura:

– Marcelo Guimarães, é acusado pelo povo do Rio de Janeiro de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, homicídio de Camila Queiroz, Cíntia Oliveira, Germano Mascarenhas, Severino Furtado, Sílvia Machado, Tamara Paes, Cinara de Jesus, por quatro tentativas de homicídio do delegado Ricardo Godói, duas tentativas de homicídio de Madalena Duarte, tentativa de homicídio de Mariana Silva Godói, falsificação de documentos oficiais, entre eles, um exame de DNA e um mandato de busca e apreensão, duas tentativas de estupro de Mariana Silva Godói, prisão domiciliar de Mariana Silva Godói e do filho, utilizar de perjúrio para forçar um casamento com Mariana Silva Godói, aproveitando-se da perda de memória sofrida pelo atentado que quase levou à morte da vítima e do noivo, sequestro de Mariana Silva Godói e do filho Ricardo André Silva Godói, mover uma ação de incapacidade contra Mariana Silva Godói para poder usufruir dos bens dela e agressão contra Mariana Silva Godói, uma lista bastante extensa, diga-se de passagem. Eu, desde que sou um magistrado, jamais presenciei isto. O senhor tem algo a declarar em sua defesa?

O tribunal estava repleto de pessoas, muitos repórteres e parentes das vítimas, bem como estudantes de direito e alguns cidadãos que conseguiram entrar, mas o silêncio era esmagador. Marcelo, nada falou, apenas olhou para o Juiz e depois para a Mariana.

– Inocente, meritíssimo – disse o advogado, levantando-se e falando pelo cliente.

– Promotor, a palavra é sua – ordenou o Juiz.

Jorge iniciou o seu discurso de abertura, eloquente e inflamado. Falou por pouco tempo, mas com coesão, onde afirmava possuir todas as provas necessárias para a condenação do réu. Após, finalizou com uma pergunta.

– Senhor Guimarães, nega todas as acusações, mesmo havendo provas concretas? – Não houve resposta.

– Defensor – comandou o magistrado –, a palavra é sua.

O advogado, um sujeito alto e magro, vestido com muito bom gosto, levantou-se e dirigiu-se à tribuna. Inicia o seu discurso onde pretendia provar que tudo isto não passava de uma terrível armação feita pela esposa e o amanto, o delegado Godói. Aproveitou para dizer que os deputados e o senador mortos também foram obras dele para que estes não pudessem inocentar o réu. Falou até acabar o seu tempo, quando foi interrompido pelo juiz.

– Algum membro do juri deseja fazer uma pergunta? – perguntou, autoritário. – Esta deve ser dirigida a mim.

Nenhum deles perguntou.

– Muito bem, senhores jurados. O processo apresentado pelo ministério público é extenso e cheio de acusações. Todas elas, são embasadas por provas, muitas em vídeo de câmeras de segurança e outras obtidas pela inteligência da polícia federal, através de e-mails interceptados e devidamente autorizados pela justiça. O dossier pretende mostrar todas as atividades criminosas do réu, bem como a lista de uma grande quantidade de políticos, policiais e até juízes que se corromperam perante a rede que o réu presidiu. Devido à extensão das acusações e ao volume das provas, eu mandei preparar um resumo do que a promotoria apurou. – Uma televisão de cinquenta polegadas foi preparada, conectada a um computador e manuseada por um agente federal da inteligência.

– "Todos os homens têm um preço, vereador, qual é o seu para parar de nos incomodar com os seus discursos? – dizia um dos quatro políticos que Ricardo matou. – Fale e acabemos com isto.

– O que faz vocês pensarem que eu tenho um preço?

– Ora, não seja inocente, vereador, todos têm um preço.

– Muito bem, eu tenho um preço. Há uma mulher que eu desejo para mim, mais que qualquer coisa no mundo. Se vocês me propiciarem esse desejo, estou disposto a negociar.

– E quem seria a dama?...

– ...Não me importa. Ele não é um problema para vocês? Matem-no, posso ajudar nisso. Eu quero a Mariana, só isso..."

Vários trechos foram apresentados, inclusive a guerra promovida na Avenida das Américas, onde o senador tentou derrubar o helicóptero da TV e, depois, matar Ricardo.

– Como podem ver, as provas da promotoria são fortes e muito bem embasadas. A defesa, alega que tudo é uma armação do governo e que o delegado Ricardo Godói agiu deliberadamente para destruir a vida do seu cliente. Não apresenta qualquer prova ou álibi. A partir de agora, ouviremos as vítimas e as testemunhas que eu escalei. Depois, as da promotoria e, finalmente, as da defesa e o réu. Chamo agora o menor Ricardo André Silva Godói. Este deve vir acompanhado por um responsável e pela assistente social.

Ricardo levantou-se e levou o filho até ao juiz. Junto, uma mulher de meia idade e aspecto bonachão acompanhava-os. Ele sentou-se na cadeira com o filho no colo, que olhou curioso para o juiz.

– Oi, Ricardinho, sabe quem eu sou?

– O senhor vai decidir se ele vai ou não ser preso – apontoou o deputado. – Meu pai disse que eu tenho que chamar o senhor de meri... meri... xi, esqueci.

O juiz sorriu para o pequeno.

– Pode me chamar como quiser, filho, conte para mim o que sabe sobre ele.

O pequeno olhou para o ex-pai.

– Ele é mau, eu não gosto dele. Bateu na minha mamãe e tentou fazer coisas ruins com ela. Eu lembro que ela chorava todas as noites quando vivíamos com ele.

– Ele sempre foi assim?

– Não. Ele até que foi legal umas vezes, mas nunca foi como o meu pai verdadeiro.

– O que quer dizer com isso?

– Meu pai é legal comigo. Brincamos juntos, passeamos, ele me dá carinho, presentes. Às vezes, zanga comigo, quando faço uma besteira, mas não é mau. Ele é o meu papai de verdade. Antes, eu não tinha nada disso. Ele não costumava falar comigo. Nunca ganhei um presente dele – apontou o réu – só a minha mãe me dava brinquedos.

– Ele batia em você?

– Não, ele nunca bateu em mim. Ninguém bateu em mim. Se baterem, o meu papai não vai deixar.

– Mas você disse que ele machucava a sua mãe?

– Sim. Ele é mau. Prendeu a gente no quarto e depois bateu na minha mãe. Mas o meu pai veio e salvou a gente. Ele tentou matar a mamãe com uma pistola, mas o meu pai cortou as mãos dele. Eu vi.

– Promotor, a testemunha é sua, mas lembre-se que é apenas um bebê.

– Sim, excelência. Ricardinho, o Marcelo dizia que era seu pai, mas nunca deu carinho para você?

– Nunca deu, tio, nunca.

– E para a sua mãe?

– Também nunca vi ele dar carinho para a minha mãe. Ele sempre era sério e bravo.

– Sem mais perguntas, meritíssimo.

– A defesa pode perguntar.

– Ele alguma vez maltratou você, criança?

– Não.

– Sem mais perguntas.

– A testemunha está liberada. – Ricardo e assistente social saíram e o juiz continuou. – Chamo agora a senhora Mariana Silva Godói.

Mariana levantou-se e Ricardo imediatamente ajudou-a. Ela sentou-se e procedeu ao juramento.

– Senhora Godói. Tendo em vista o seu estado adiantado de gravidez, sente-se bem para testemunhar? Está confortável? Deseja que o seu marido fique ao seu lado?

– Obrigada pela preocupação, meritíssimo, mas estou muito bem, obrigada. A única coisa que me deixa doente é olhar para a cara daquele traste.

– Muito bem, mas refira-se ao réu pelo nome ou pela palavra réu, por favor.

– Sim, meritíssimo. Desculpe, mas é que o senhor não tem ideia do que passei nas mãos dele.

– É por isso que a senhora está aqui. Quero que relate o que aconteceu consigo, de preferência cronologicamente.

– Acordei em um hospital há cerca de três anos. Ao meu lado estava esse tr... o réu. Não me lembrava de nada, nem do meu nome. Para me deixar ainda mais desorientada, estava grávida de quatro meses. O réu, foi gentil. Disse quem eu era, mas a gentileza dele, encobria interesses pessoais. Ele disse que eu era sua noiva e que estava grávida do filho dele. Eu, inocentemente, acreditei nessa mentira descarada...

– Protesto, meritíssimo – contestou o advogado –, a testemunha está manipulando os fatos e especulando.

– Meritíssimo – interrompeu o promotor –, há inúmeras provas dessa mentira descarada. Na relação de provas, folha cento e quatro, o senhor verá uma fotografia datada onde a testemunha recebeu pedido de casamento do seu atual marido, o delegado Ricardo Godói, que põe no dedo ela o anel de noivado, o mesmo que o réu usou para enganar a testemunha, isso sete meses antes dela acordar naquele hospital. Na folha cento e oitenta, o senhor encontrará a carta que a Camila Queiroz escreveu e que conta claramente os atos do réu. Essa mesma pessoa foi assassinada nesse dia. Um laudo da polícia federal atestou a autenticidade dessa carta póstuma. Conforme as provas da folha cento e noventa, o senhor vai encontrar um e-mail retirado do computador do réu que o identifica como mandante desse crime. Então, a testemunha está relatando os fatos da forma correta, sem especulações, principalmente porque já recuperou a memória há muito tempo. – Jorge entregou as folhas ao juiz, que mandou o meirinho apresentar aos jurados.

– Protesto negado, continue, por favor.

Mariana continuou contando sobre a sua vida após a saída do hospital, até que se deparou com o Ricardo no shopping.

– Ao olhar para ele – continuou – fiquei muito consternada, pois eu descobri que estava apaixonada. Ele era tudo o que sempre esperei de um homem. Para meu espanto, Marcelo ao ver o Ricardo tomou um susto e, depois, abraçou-o. A seguir, pediu que eu ficasse na loja e esperasse, pois ele tinha que explicar umas coisas para o André. Eu acabara de me deparar com o meu verdadeiro noivo. Aquilo que a minha memória não se lembrava, o meu coração sabia...

– Protesto... – interrompeu o advogado.

– Negado.

– Eles saíram para conversar, onde o réu lhe contou os fatos e mentiu-lhe dizendo que eu tinha a saúde muito frágil, que não seria conveniente saber a verdade. Pelo meu bem, ele aceitou, mas não engoliu a história.

– Protesto meritíssimo. A testemunha faz suposições.

– Mantido. A testemunha deve relatar o que se passou consigo.

Ela continuou com o seu relato em meio a vários protestos da defesa, que começaram a irritar o juiz...

– Protesto. Não há como saber se eram ou não corruptos...

– De fato há, meritíssimo – interrompeu o promotor. – A ficha de todos eles foi levantada e descobrimos quantias elevadas depositadas nas contas deles. O depositante é o réu. Folhas cento e vinte. – Entregou as provas.

– Meritíssimo. André precisou de me entregar, a mim e ao meu filho, para que não fossemos feridos ou mortos durante o confronto que se seguiria. Logo depois, o réu mandou que os PMs, matassem o meu marido e a Lena. Somente um policial corrupto, faria isso, não concorda?

– Negado. Advogado, está se excedendo nos seus protestos. Tome cuidado no meu tribunal. Não admito teatrinhos. Continue, senhora Godói.

Voltou aos fatos, falando sobre o sequestro e a tentativa de estupro feita à frente do filho, quando foi salva pelo marido que quase matou o réu de pancada. Finalmente parou de falar.

– Promotor, a palavra é sua.

– Mariana, confirma então perante o júri que o réu mandou, deliberadamente, matar o seu marido e a delegada Madalena, sequestrou a senhora e o seu filho e, por duas vezes, tentou violentá-la, além de agressão física?

– Sim, isso e tudo o resto que eu falei. A segunda tentativa de estupro foi em frente ao meu filho que tinha menos de quatro anos. O réu é um monstro.

– Assim como que ele todo arrebentado e com uma hemorragia enorme tentou matá-la?

– Sim, ele uma vez disse que se não me pudesse ter, ninguém teria.

– Sem mais perguntas, meritíssimo.

– Advogado, sua vez. Recomendo fortemente que seja moderado, do contrário, teremos problemas.

– Dona Mariana – começou ele. – Está ciente que perjúrio é crime passível de prisão?

– Perfeitamente, não sou nenhuma ignorante.

– Nesses encontros com o delegado, você não traiu o seu marido?

– Não, não fui para a cama com ele, se é isso que quer saber. Ele é demasiado íntegro e queria que eu recuperasse a memória. Não foi por falta de vontade da minha parte, pode ter a certeza, pois não dá para comparar esse canalha com o André, e tem mais, esse monstro não é meu marido.

– Senhora Godói, não vou aceitar esse palavreado no meu tribunal.

– Desculpe, excelência. Mas ser obrigada a me recordar disto deu-me um tremendo nojo.

– Então não traiu o seu marido.

– Já lhe disse que ele não é meu marido. Por duas vezes beijei o André, mas ele não me deixou ir adiante, se é isso que quer saber. Já o réu vivia me traindo, então, mesmo que eu o traísse, que se danasse.

– Mas foi para a cama com o delegado depois que o capitão Santana a levou para a casa dele, desobedecendo uma ordem de restrição e estando casada com o meu cliente.

– Protesto, meritíssimo – interrompeu o promotor. – Em primeiro lugar, ela foi salva de uma tentativa de estupro, salva pelo mesmo policial que a devia proteger do marido. Em segundo lugar, todas as ações de restrição, incapacidade, casamento e por aí afora, foram anuladas pelo ministro da justiça em pessoa, tendo em vista as provas fornecidas. Em terceiro e último lugar, a vida sexual da testemunha não está em julgamento. Todas as provas referidas aqui estão nas folhas cinquenta em diante.

– Mantido. Advogado, esta é a segunda vez que lhe chamo a atenção. O senhor parece que quer passar a noite detido.

– Sem mais perguntas. – Um membro do juri levanta o braço, uma senhora de meia idade.

– O jurado pode fazer a pergunta dirigida a mim – disse o juiz.

– Meritíssimo, como a testemunha só sofreu violência sexual no quinto dia de cativeiro? Isso parece incoerente! – O advogado ficou furioso por deixar escapar essa.

– Responda à pergunta.

– A resposta é muito simples: no primeiro dia que entrei naquele quarto, sabia o que me esperava. A primeira coisa que pedi para ele, foi um pacote de absorventes. Ele ficou muito zangado, pois odeia manter relações quando estou no meu período. Então, disse-me que procurasse no sanitário, pois como ele trazia garotas para lá, deveria haver algum. Realmente havia uma caixa de absorventes internos. Peguei em um e, com um alicate de cortar unhas que também lá havia, cortei a palma do pé e molhei-o com sangue. Depois coloquei o absorvente. Assim, eu tinha uma boa prova caso ele fosse investigar. Funcionou por cinco dias. Não tenho culpa se ele é burro demais. – O auditório ri e bateu palmas.

– Ordem no tribunal, ordem. – Mas o próprio juiz ri-se por dentro. – "Essa mulher é sensacional" – pensou.

– Não tenho mais perguntas meritíssimo.

– A testemunha pode retirar-se. Vamos fazer um recesso para o almoço.

Ricardo e a família almoçaram junto com o promotor e a Lena, assim como as demais testemunhas.

– Mariana – Jorge deu uma risada –, você foi extremamente perspicaz com a história dos absorventes.

– Precisava de improvisar. – Ela riu em resposta.

– Quem você acha que será chamado a seguir, Jorge? – perguntou André.

– Primeiro são as vítimas e as testemunhas do juiz, nessa ordem, logo pode ser você, a Lena ou os familiares das vitimas e a Anita. Depois, o ministro Gurtierrez, meu pai e o Santana. Eu acho que será você ou a Lena. Está quase na hora, temos que voltar.

Na sala de audiência todos aguardavam o retorno do juiz.

– Todos de pé – disse o meirinho. O juiz entrou e sentou-se.

– Chamo a delegada federal, Madalena Duarte. – Lena levantou-se, soltando algo parecido com um rosnado baixo e sentou-se no banco das testemunhas, ao lado do juiz.

– Jura dizer a verdade?

– Juro.

– Relate a sua versão da história.

A Lena inicia a descrição, começando com o atentado e evoluindo a história até que falou sobre o primeiro atentado onde Ricardo matou os dez bandidos na sua casa.

– Não havia outro jeito de resolver isso? – interrompeu o juiz.

– Talvez houvesse, mas ele desejava silêncio. Já chegavam os tiros dos bandidos. Afinal, foi uma ação de legítima defesa.

– Continue. – Ela voltou a relatar, falando sobre tudo em ordem cronológica até que foi interrompida pelo defensor quando falou sobre o réu.

– Protesto, a testemunha está divagando.

– Negado. – Continuou a contar tudo até chegar à parte em que foi baleada, parando de falar.

– Promotor.

– Você ouviu claramente a ordem de matar?

– Alto e claro, ele gritou.

– Sem mais perguntas.

– Advogado.

– Quem atirou primeiro?

– Ricardo atirou primeiro. Eram noventa homens e só o fator surpresa iria nos salvar.

– Dona Madalena, está ciente que não podia ter apontado uma arma para o meu cliente, sendo ele um deputado com imunidade?

– Em primeiro lugar, eu só vejo um criminoso inescrupuloso; em segundo lugar, ele não pode ofender uma delegada federal, que conota desacato à autoridade; em terceiro lugar, ninguém me chama de puta e fica vivo para contar a história, então ele pode se dar por satisfeito, pois se não fosse o fato do Ricardo estar ali, eu matava-o e alegava defesa da honra. E quero ver se ia dar em alguma coisa. Havia umas duas dúzias de testemunhas. Fui clara?

– Claríssima. Só mostra o quão violenta é.

– Protesto meritíssimo. A testemunha não está em julgamento.

– Mantido. Advogado, estou louco de vontade de lhe dar uma semana na cadeia e você parece cooperar para isso.

– Do que foi exatamente que o meu cliente a chamou?

– Eu afirmei que Ricardo não tinha feito nada daquilo e que nós trabalhamos juntos a semana toda. Então ele disse algo assim: "Cale a boca sua numeróloga peituda. Eu bem que imagino em que andaram trabalhando. Você deve ser ótima na horizontal."

– Isso não parece ser o mesmo que chamar alguém de puta.

– Pois para mim foi.

– Por acaso você e o delegado eram amantes?

– Mesmo que fôssemos, isso não é da sua conta. O tribunal não está aqui para julgar a minha vida sexual.

– Você não respondeu à minha pergunta. E de quem é esse filho que carrega?

– Respondi sim. Você é que é demasiado obtuso para entender a língua portuguesa. Meritíssimo, essa coisa está me ofendendo.

– Concordo. Meirinho, o advogado deverá passar a noite na cadeia por desacato e desrespeito no meu tribunal.

– Meritíssimo, eu não fiz nada disso, apenas uma simples pergunta.

– Dois dias na cadeia. Estou concordando com a testemunha que o senhor é mesmo muito obtuso. A vida sexual da testemunha é intimidade dela e não é para ser exposta. Se você tivesse prestado atenção, teria notado que ela disse: "Mesmo que fôssemos." Deseja mais alguma pergunta?

– Não meritíssimo. – O advogado estava perdido, pois o juiz era muito durão!

– Os jurados desejam inquirir a testemunha? Muito bem, pode se retirar. Chamo agora o delegado Ricardo André Godói.

Ricardo contou tudo com uma riqueza de detalhes que nenhum outro fez, falando desde o dia em que conheceu Mariana. Entrou nos detalhes importantes e, depois, como foi baleado. Falou sobre o salvamento, apenas não mencionando o nome do seu mestre e desenvolveu a história até ao ponto em que argumentou que, segundo as estatísticas da polícia, o crime na cidade reduziu quarenta por cento depois destas ações.

– Protesto, meritíssimo, estatísticas de redução do crime não justificam ações de vingadores.

– Mantido. Atenha-se ao seu relatório.

– Só para lembrar e constar nos autos, meritíssimo, as minhas ações foram todas de legítima defesa da minha vida ou de acompanhantes e jamais agi como um vingador. – Continuou a sua história até ao fim, falando por mais de duas horas. Também falou sobre os outros crimes que levantou. Quando se calou, o juiz olhou para ele.

– O senhor disse que doou uma quantia em dinheiro para as famílias das vítimas? E quanto foi isso?

– No total, doei algumas dezenas de milhões. Nada de especial.

– E onde arranjou tamanha fortuna?

– Herança, meritíssimo, o meu patrimônio é vasto pois sou o acionista majoritário das indústrias Godói e senti-me indiretamente responsável, porque eles foram assassinados, por causa da minha mulher.

– Promotor, a testemunha é sua.

– Delegado, pode dizer o que pensava enquanto enfrentava os criminosos?

– Nada, procurava manter-me vivo. Era necessária muita concentração para enfrentar um grupo de homens armados, do contrário, acabaria baleado.

– Então é justo afirmar que o senhor não os procurava matar.

– Olhe, eu não sou hipócrita. Não desejava matar ninguém. Sou inimigo da violência. Mas estes criminosos tentaram me matar e destruíram a minha vida. Desejei matá-los sim, antes dos confrontos. Mas a única forma de fazer isso legalmente, era na defesa da minha vida ou de terceiros e foi o que fiz. Montei a armadilha para que eles viessem me matar. Daí, para não morrer, matei-os todos em legítima defesa. Mas, na hora da luta, eu só me concentrava em permanecer vivo.

– Por que usou uma espada em vez de armas convencionais?

– O que determina uma arma como convencional? As espadas são usadas há milênios. O efeito que eu produzia sobre os criminosos usando uma espada era maior. Mas sempre usei ambos, além de shurikens. Tudo dependia da situação.

– O que é um shuriken?

– Uma estrela de aço, formada por lâminas. É perigosíssima e exige muita destreza. Quando arremessada, ela atinge o alvo provocando perfuração no mesmo.

– O senhor admite que ao pegar o réu perdeu o controle?

– Admito – respondeu. – Ver a minha mulher sendo espancada e violentada na frente do meu filho, fez com que eu deixasse de raciocinar. Tornei-me uma máquina de matar e agi como tal. Agradeço do fundo do coração ao capitão Santana por me ter impedido, embora eu ache que o réu preferia a morte à situação atual. Mas foi isso que eu jurei a mim mesmo: que era fazer os responsáveis pela minha desgraça, desejarem a morte muito antes dela acontecer.

– O que faria se ele fosse absolvido?

– Nada posso fazer a não ser perder completamente a crença no nosso sistema judicial. Mas uma coisa eu garanto, arrumava uma ordem de restrição contra ele e, se ele a violasse, matava-o sem dó nem piedade. O mal que ele provocou é imperdoável. Felizmente o meu filho é saudável e estável, pois uma criança normal poderia ter necessitado de tratamento psicológico.

– Sem mais perguntas Meritíssimo.

– Advogado. Lembre-se de manter a coerência.

O advogado levanta-se, sequioso de arrasar Ricardo. O julgamento até ao momento não ia nada bem para ele. Estava habituado a coisas fáceis, juízes comprados.

– Quantas pessoas o senhor assassinou, delegado?

– Não me lembro de ter assassinado alguém.

– Não?

– Realmente não. Eu matei em legítima defesa. Assassinato é um substantivo masculino, cuja definição consiste no ato de matar à traição, o mesmo que homicídio.

– Ah sim, então quantas pessoas o senhor matou em legítima defesa?

– Mais de duzentas.

– E o senhor consegue dormir tendo na sua consciência a morte de duzentos seres humanos?

– Por que não? Eles desejavam me proporcionar o sono eterno! Se eu não os matasse era morto. Simples assim. Não me pareciam seres humanos e sim demônios.

– Como o senhor obteve as provas contra o meu cliente?

– E-mails interceptados. Depois, invadi os computadores dele.

– Nesse caso, o senhor fez uma investigação ilegal.

– De forma alguma, pois eu tinha autorização judicial.

– Então o senhor e a sua amiguinha fizeram isso. Invadiram sistemas e quebraram códigos. Diga uma coisa, você dormia com ela?

– Escute aqui seu advogadinho de merda, ou você se comporta com o devido respeito ou eu faço uma devassa na sua vida e meto-o na cadeia assim como meti mais de duzentas pessoas tão corruptas quanto você!

– Advogado, uma semana de cadeia. A testemunha deve ter mais cuidado com o linguajar. Desrespeito no tribunal, dá cadeia.

– Desculpe, meritíssimo, mas esse defensor esquece-se que eu sou uma das vítimas e não o réu.

– Eu já disse que a vida sexual das testemunhas não está em julgamento.

– Mas o senhor cobiçava a esposa do meu cliente.

– MINHA ESPOSA. Roubada à força da bala. Você é tão inútil como advogado que dá até pena do réu. Eu sou bacharel em direito, seu ignorante. Pela lei, um casal que viva há mais de três meses em união estável e a mulher fique grávida, a união é declarada como legítima. Ela tem até direito à metade dos meus bens. Nós vivemos quatro meses juntos. Então tome cuidado com a língua, pois ela era e é a minha esposa legal, entendeu?

– Porque emasculou o meu cliente?

– Eu não emasculei o seu cliente.

– Há não? E o que fez?

– Você devia estudar português. Emascular significa extirpar completamente os órgãos sexuais de um homem, ou seja: pênis, testículos e escroto. Eu fiz foi o que se chama, no popular, de capar o sujeito. Ou seja, passei a faca no pênis dele. Também se pode chamar de castrar.

– E para quê?

– Posso-lhe garantir que não foi para fazer churrasco. Era muito pequeno, uma salsichinha. Mais a mais, para onde ele vai, não precisará disso mesmo! – O tribunal deu uma gargalhada.

– ORDEM NO TRIBUNAL – gritou o juiz.

– O senhor privou o meu cliente de ter filhos.

– De jeito nenhum. Ele é perfeitamente capaz de ter filhos. Basta achar uma mulher que queira se deitar com ele e que aceite a coisa pequena que sobrou. Depois, ela só precisa de enfiar o dedo no ânus dele e fazer cócegas na próstata. Se ambos forem saudáveis ela vai engravidar na certa.

Nova gargalhada geral e o Juiz teve de fazer muita força para se manter sério.

– Ordem. Ordem – bateu com o martelo.

– Uma vez que não era para churrasco, por que fez isso?

– Já foi dito mais de uma vez e por mais de uma testemunha, que esse diabo estava violentando a minha esposa na frente do nosso filho. Enlouqueci, pronto. Você não ficaria doidão, ou é corno?– Nova onda de gargalhadas.

– Ordem. Delegado, estou-lhe dando a segunda advertência. Advogado, faça o favor de ser mais coerente com suas perguntas.

– Depois que o senhor, "capou" o meu cliente e o surrou quase até à morte, foi interrompido pelo capitão. O que aconteceu com o pênis?

– Não tenho a menor ideia. Devia ter ficado em cima da cama, mas lá só havia sangue.

– Por que não ajudou a procurar?

– Ele já teve muita sorte de eu não o ter morto. Depois que estanquei as hemorragias junto com o capitão, fui cuidar da minha esposa e do meu filho. Por mim, esse inútil que fosse para o inferno que é o que merecia. A minha família vinha em primeiro lugar.

– Mas então o que aconteceu com o pênis dele? Para mim, o senhor deu um sumiço nele.

– O senhor faça nova acusação dessas e eu faço-o engolir os dentes aqui mesmo. Não vou admitir calúnias desse tipo.

– Ordem. Advogado, continuando assim, vai acabar em perpétua. Caluniar também dá reclusão. Delegado, faça o favor de manter a compostura.

– O senhor tem que saber o que aconteceu com o pênis do meu cliente. – Ricardinho, que não entendia quase nada do que falavam, teve um lampejo do assunto. Então, com os olhos brilhantes, gritou.

– Eu sei, eu sei.

– Assistente social, traga-me a criança.

Ela leva o pequenino para o juiz e este senta-se no colo do pai.

– Conte o que aconteceu, filho.

– Ele – apontou Marcelo – batia na minha mãe e queria fazer coisas com ela. Mas aquilo não é esse tal de pênis. Era o pintinho dele, só que era um pintão enorme. Eu vi que ele queria machucar a minha mãe. Então, quando o meu pai cortou fora e começou a bater nele, eu fui lá, peguei ele que já tava bem menor, e joguei fora pela janela. Assim ele nunca mais ia poder fazer isso com a minha mãe. Fiquei olhando e tinha um cachorrão preto, enorme, que acordou, cheirou aquilo e comeu. – Ninguém segurou a casa, tamanhas eram gargalhadas. A maioria levantou-se e bateu palmas para o garoto.

O juiz leva quase cinco minutos para impôr a ordem, mas, mesmo ele, tinha dificuldade em ficar sério.

– É, filho, você não pode ser responsabilizado e agiu no interesse do bem estar da sua mãe. Foi preciso muita coragem para fazer isso na sua idade, apesar de errado. Pode voltar para a sua mãe.

Ele foi para junto da mãe que o abraçou carinhosa. – Você é o meu herói, filho, você e seu pai.

– Agora que o assunto do pênis está esclarecido, tem mais alguma pergunta ou pretende processar a criança por defender a integridade da mãe a qualquer custo?

– O que você ganhou arquitetando este plano todo para destruir o meu cliente?

– Protesto, meritíssimo – disse o promotor. – Solicito que seja apresentada a prova número um.

– Mantido. Passem o vídeo da prova. – Todos viram na íntegra a reunião gravada pelo próprio Marcelo. "Sim. Só isso. Eu quero aquela mulher para mim...O noivo?...Pensei que ele fosse um pé no vosso saco. Acabem com ele que ajudarei. Morto é bem melhor..."

– Como pode ver – disse Ricardo. – Eu ganhei tudo e ele perdeu. Você é o próximo e o seu dossier já está no MP.

– Sem mais perguntas – disse o advogado, lívido.

Um membro do juri ergue o braço.

– Meritíssimo, a testemunha não poderia ter evitado tantas mortes?

– Responda por favor.

– Poderia, mas não teria o efeito necessário. Primeiro, eu estava cheio de mágoa pelo que me fizeram. Desejava realmente dar o troco. Mas a única forma de expôr os chefes era minando a confiança deles. Ver um único homem dar cabo de vinte e cinco criminosos com uma espada deixou os deputados totalmente despreparados para a próxima ação. Foi um mal necessário para desmantelar a quadrilha. Eu só não esperava a última ação do réu. Essa pegou-me desprevenido e quase custou a vida da minha colega e amiga mais querida. Resumindo, eu tinha pressa em resolver isto. Precisava da minha mulher ao meu lado. Não podia utilizar a máquina legal, excessivamente morosa. Então, comecei por expôr toda as as safadezas e tentaram me matar, coisa que não podia permitir.

– Muito bem. Mais alguma pergunta? – perguntou o magistrado. Quando ninguém se manifestou, disse. – Vamos fazer um recesso até amanhã às dez horas da manhã. Os jurados sabem que não podem tocar no assunto. Oficial, este homem ficará sob custódia do Estado – apontou o defensor.

No dia seguinte, o julgamento recomeçou e Anita, foi a próxima testemunha escolhida pelo juiz e ela relatou toda história da Mariana Modas até ao presente momento.

– Promotor.

– Depois do atentado, você só voltou a ver Mariana com o delegado Godói?

– Sim. Ele levou Mariana para a loja e ela quase chorou ao ver o que fizeram. Então mandou fechar e me contratou como gerente. Eu descobri que a loja estava seriamente descapitalizada. Só não quebrou porque o delegado ajudou injetando capital. Nessa época, Mariana já se tinha recuperado integralmente.

– Sem mais perguntas.

– Advogado.

– Como sabe que a loja estava descapitalizada?

– Vendo o balancete, constatando o saldo da conta. A loja sempre comprava a mercadoria à vista, mas não tinha capital para adquirir os novos lançamentos, quando assumi.

– Ora, isso pode significar que não tem a devida competência.

– Primeiro, ela estava assim, quando entrei, ou seja, antes de eu assumir. Segundo, se eu não tivesse competência, advogado, não teria conseguido septuplicar o capital de giro em menos de seis meses. Eu transformei os doze milhões de reais que o delegado Godói emprestou para a loja em noventa milhões. Saiba que sou formada em administração de empresas com pós-graduação em marketing e fiz isso tudo sozinha, pois Mariana estava em lua de mel. Eu até abri mais duas filiais e estamos pensando em expandir para o mercado de São Paulo e Rio Grande do Sul. Então, não me venha chamar de incompetente, pois o único incompetente aqui é o senhor, incapaz de argumentar de forma coerente.

A plateia bateu palmas e o juiz gritou:

– ORDEM. Ordem, ou mando evacuar a sala.

– Meritíssimo, a testemunha está me agredindo.

– É mesmo? – ironizou o Juiz. – A mim pareceu exatamente o contrário. Explique como uma pessoa que transforma doze milhões em noventa pode ser incompetente?

– Sem mais perguntas. – O advogado estava derrotado.

– Obrigada, Anita – disse Mariana ao seu ouvido. – Jamais me esquecerei.

– Eu não disse que foi pelos seus contatos na França – respondeu a moça. – Trapacei um pouco.

– De jeito nenhum. – Mariana sorriu. – você multiplicou o capital da empresa. Está pensando em abrir a filial em São Paulo?

– Já abri. Era para ser uma surpresa. E abri uma no Shopping Iguatemi de Porto Alegre. Tiveram uma grande aceitação e estão dando lucro desde o segundo mês.

– Depois conversaremos. Obrigada de novo.

O pai da Camila foi o próximo a ser chamado e quando falou sobre a carta, foi como uma bomba. Infelizmente, ele e os demais parentes das vítimas não tinham muita expressão.

O juiz passou a chamar as testemunhas que ele selecionou.

– Chamo o capitão Antunes Santana.

Após o juramento, recontou toda a história desde que foi fazer guarda na casa do deputado e os detalhes eram ricos. Explicou como procederam ao salvamento da Lena, perdendo um tempo precioso. Depois, a correria contra o tempo e, então, a localização da casa e os detalhes da invasão. Também contou como tentou impedir o Ricardo de matar o Marcelo.

– Por que tentou impedir? – perguntou o juiz.

– Meritíssimo, eu estava de fora. Entendo tudo o que ele fez e, se fosse a minha esposa, teria feito o mesmo. Mas, como representante da lei, era obrigado a chamá-lo à razão. Eu não sou pário para ele em força e agilidade. Tentei contê-lo, mas não consegui. Ele estava fora de si. Poderia dizer que era insanidade temporária. Somente argumentando que escaparia da justiça consegui fazer que parasse.

– Promotor.

– Sem perguntas, meritíssimo. O senhor fez a pergunta que eu pretendia.

– Advogado.

– Por que tem tanta certeza que ele sofria de insanidade temporária? É algum especialista?

– Primeiro, sou formado em direito e também sou estudante de psicologia, no segundo ano. Isso me dá uma certa capacidade de entender os fatos. Em segundo lugar, eu teria ficado louco de raiva se visse a minha mulher sendo violentada em frente ao meu filho. O senhor não?

– Mas, mesmo assim, você tentou salvar o meu cliente.

– Sim. Eu queria ele sentado bem ali onde está agora. Para isso, o réu teria de ficar vivo e Ricardo também queria isso. Disse desde sempre que ele seria o último da lista e que ia fazer questão de o ver trancado por muitos anos. Mais uma prova da insanidade temporária.

– Ele ajudou a recolher as mãos do meu cliente?

– Não, mas ajudou-me a estancar as hemorragias.

– Ah, então o senhor é médico também?

– Sou paramédico e orientei Ricardo a me ajudar.

– Não se esqueceram de uma parte do corpo dele?

– Não me esqueci, apenas não encontrei.

– O delegado Godói ajudou a procurar?

– Não. Ele preocupava-se em ajudar a esposa e o filho, que estava aterrorizado. Afinal, era uma questão de prioridades. Para o delegado Godói, a esposa e o filho eram prioritários e precisavam de atenção, especialmente a esposa que nem roupas tinha.

– Sem mais perguntas.

O chefe da inteligência foi chamado e contou tudo o que aconteceu nesse período, confirmando que conheceu a Mariana como a noiva do Ricardo muito antes do acidente.

– Chamo agora o desembargador Henrique Gutierrez.

Quando o ministro sentou e procedeu ao juramento, o juiz perguntou.

– Excelência, quando começou a atentar para este caso?

– Quando um senador da República aparece em público de metralhadora na mão, atirando em helicópteros da televisão e depois em uma pessoa, há algo de muito errado. O presidente chamou-me e pediu que eu averiguasse tudo. Em contato com a polícia federal, descobri quem era o jovem e comecei a me inteirar da vida dele. Não foi difícil, pois fui muito amigo dos seus pais. Soube pelo chefe da Inteligência o que tinha acontecido e decidi ir ver pessoalmente. Quando o delegado Ferreira me apresentou, junto com o MP, a lista de corruptos e mais as provas que embasavam tudo, anulei todas as ações judiciais do réu. Era sempre o mesmo juiz que assinava e este encabeçava o topo da lista dos corruptos. Também conversei com a câmera de deputados e, secretamente, uma reunião cassou-os todos, mantendo tudo em segredo. Armamos a maior operação policial de caça à corrupção jamais feita no país. Faltava apenas pegar o principal suspeito: o réu. Toda esta operação de limpeza somente foi possível graças à ação do delegado Godói.

– Qual o envolvimento do réu nessa história.

– De acordo com as provas apresentadas, o réu tornou-se em pouco tempo o elemento chave de toda essa quadrilha.

– Promotor, a testemunha é sua.

– Excelência. O senhor deve ter presenciado a senhora Godói em reuniões, no tempo em que ela supostamente era casada com o réu, correto?

– Sim, com certeza. Ela era admirada como a mulher mais bela do país. Ninguém jamais se esquecia dela.

– Como era a sua aparência?

– Embora disfarçasse muito bem, possuía uma profunda tristeza. Jamais a vi rir em uma das inúmeras festas que presenciei. Sorria, mas de forma estudada.

– E agora?

– Agora, irradia felicidade, basta olhar para os seus olhos. – Involuntariamente, todos olharam para Mariana, que sorriu.

– Então a sua conclusão é que a presença do réu era prejudicial à testemunha?

– Protesto.

– Negado. Responda, por favor, excelência.

– Não só a presença do réu é nefasta à senhora Godói, como a presença do seu marido é totalmente benéfica.

– Sem mais perguntas.

– Advogado. Lembre-se que já está condenado a uma semana. Tome muito cuidado com a sua boca.

– Excelência, como pode concluir que a presença do meu cliente é, como o senhor diz, nefasta à esposa dele.

– Para começar, advogado, a esposa não é do réu e sim do delegado Godói e eu mesmo fiz o casamento. Em segundo lugar, constatei isso por observação direta. Sou um desembargador e estou habituado a julgar. Isso exige muito poder de observação.

– Mas o senhor não tem nenhuma prova científica.

– Nem vejo necessidade disso.

– Foi o senhor que os casou, não é verdade?

– Fui sim, já disse antes e esse casamento é a maior prova da felicidade de ambos.

– Não seria pela imensa fortuna do delegado não? Adultério, anulação...

– O senhor passou dos limites advogado, um mês de reclusão por desacato e calúnia – gritou o juiz.

– Não se esqueça, advogado – disse Gutierrez –, que a senhora Godói possui um patrimônio razoável apesar de depauperado pelo réu. Além disso, ela já sabia da condição do noivo. Finalmente, a mim parece que o senhor está fazendo muita demagogia. Venho notando que os seus julgamentos anteriores eram fáceis demais. Notei também que os juízes que o senhor apanhava eram todos da turma que foi presa por corrupção. Esqueceu-se de como advogar?

– Sem mais perguntas.

O julgamento decorreu com mais testemunhas e depois a defesa, sem grande efeito. Já no terceiro dia, foi a vez do Marcelo falar, mas ele permaneceu calado, sem tirar o olhar da Mariana. Como não respondeu nada, o juiz mandou o promotor iniciar o discurso de encerramento.

Este, fez o seu monólogo para o juri. Tinha direito a duas horas, mas não foi tão longe, acabando em uma. Já o advogado, que falou muito em conspiração e em mentiras para difamar o cliente, falou sem parar até que o juiz o interrompeu. O juri entrou na sala secreta, acompanhado do magistrado, advogado e promotor. Demoraram meia hora.

Quando retornam, o juiz lê o veredito.

– Que o réu se levante. Na acusação de assassinato da Camila Queiroz, o réu foi declarado culpado...

― ☼ ―

– Acabou – disse Ricardo, no carro. – Condenado por unanimidade e mais de quatrocentos anos de pena. Acabou, Jade. Estamos livres.

– Papai.

– Sim, meu amor?

– Quero visitar o vovô, ele deve estar muito triste.

Ricardo ficou em silêncio por um tempo e repentinamente mudou a direção do veículo para o Leblon.

– Você tem razão, meu amor. Vamos.

Na frente do prédio do juiz aposentado, uma verdadeira tropa de repórteres estava ao portão. Os porteiros, com dificuldade, mantinham-no fechado. Quando viram Ricardo, correram a assediá-lo.

– Delegado, uma palavra.

– Senhores, acabou, a justiça foi feita, vão-se embora. Os pais do réu não são culpados do crime do filho e já sofrem demais. Por favor, vão.

– Delegado, o que faz aqui?

– Eu vou dizer o seguinte: esta criança, vítima dos fatos, ama estas pessoas como se fossem os seus avós. Ele quer vê-los e dar acalanto, coisa que vocês, sem coração não são capazes de ver. Deixem um pouco de paz para eles.

– Mas delegado...

– Parem com isso – gritou o bebê. – O meu vô tá sofrendo muito. Por que vocês estão fazendo isso, tchê? Vão embora. O meu vô não merece isso!

Um dos repórteres mandou o câmera desligar. Pouco a pouco, os outros retiraram-se. Ricardo virou-se para o porteiro.

– Por favor. Anuncie para o juiz que o neto dele deseja vê-lo.

― ☼ ―

Quando chegaram a casa, o pequeno correu para o seu quarto de brinquedos. Já estava um pouco tarde, mas os pais deixaram-no. Na sala íntima, assistiam o jornal e casualmente apareceu a cena deles e do filho no Leblon.

– Amor, esse repórter não era o câmera que filmou as suas ações? – perguntou Mariana.

– Sim. Deve ter sido promovido. Engraçado, mas não o vi lá. Vamos ver o que vai dizer.

– "Foi preciso uma criança de dois anos para me mostrar a crueldade do que eu estava fazendo. Ao juiz Guimarães e à sua esposa, peço as mais sinceras desculpas, do fundo do meu coração. Nenhuma reportagem deveria ser feita às custas do sofrimento alheio. Provavelmente eu vou ter que procurar um emprego novo amanhã, mas tenho orgulho de ter conhecido este pequeno herói de dois anos que me abriu os olhos. Ricardinho, onde você estiver, obrigado. Novamente, as minhas desculpas ao casal Guimarães e a todos os telespectadores que me veem aqui ao vivo."

Ricardo pegou o telefone e ligou para uma pessoa. Fala por algum tempo. Depois desligou e voltou.

– O que você fez, amor?

– Liguei para a emissora. Disse que se quisessem demitir o repórter, ele seria muito bem-vindo nas Indústrias Godói como relações públicas.

– O que eles disserem?

– De jeito nenhum. Os telefones da emissora estão congestionados com elogios ao repórter e que os picos de audiência foram astronômicos. Então eu disse que triplicava o salário dele.

– E?

– Eles cobriram. – O telefone tocou e o André pôs no viva voz.

– Delegado, sou eu, Antunes, o seu repórter preferido.

– Fale, meu amigo.

– Obrigado.

– Pelo quê?

– Porque eu sei que o meu salário não seria triplicado depois do que eu disse ao vivo, a não ser por uma intervenção divina. Já estava até com os classificados na mão.

– Você é bom e íntegro. Eu gosto de você. Foi muito legal comigo e depois com os Guimarães.

– É, mas só depois que o seu filho abriu os meus olhos.

– Mesmo assim, obrigado por isso. Eles são maravilhosos e sofrem muito.

– Delegado, o que disse para eles?

– Que oferecia um emprego de relações-públicas para você nas Indústrias Godói, pelo triplo do seu salário atual.

– Eu aceito pelo salário atual. Não posso aceitar menos, porque tenho que viver.

– Por que deseja isso?

– Porque não quero mais fazer o que fiz. Nem quero mais presenciar as mortes que assisti. Eles querem que eu assuma como repórter criminalista.

– Combinado – disse. – amanhã alguém do RH ligará para você. Manterei o triplo do seu salário atual.

– Mas o senhor nem sabe qual é o meu salário!

– Confio em si. Se você não publicou o que eu queria antes da hora, é porque merece respeito.

– Obrigado, não o desapontarei.

– Assim espero.

– Posso fazer uma pergunta?

– Claro.

– Gostaria de escrever um livro a respeito desta história. O senhor permite?

– Desde que seja verídico e você me diga o título.

– Justiça Poética.

Ricardo deu uma risada enorme.

– Pode escrever, meu amigo, mas, antes de publicar, peço que me permita revisar e ajudar em partes obscuras. Depois, mande um exemplar autografado para o ex-deputado.

– Combinado.

– Você não presta, amor – disse Mariana, beijando-o – isso vai ser cruel, muito cruel.

– Foi isso que ele fez comigo, amor, crueldade ao extremo.

― FIM ―


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