Capítulo 20 (não revisado)
O casamento era ao ar livre no platô da piscina. Os convidados eram basicamente o pessoal da federal, os novos amigos do BOPE e o pessoal da loja, todos com as famílias o que apesar de não ser uma multidão era um grupo razoável. Tata providenciou o básico, mas Ricardo exigiu que ela contratasse uma empresa especializada para não se desgastar. Um arco de flores ficava à frente da mesa do juiz e o casal ficaria em baixo e para chegar la passariam por um longo tapete vermelho. Os convidados foram chegando e tomando os seus lugares. Ricardo sentia-se nervoso, mas Mariana estava ainda pior. Às onze horas, um helicóptero pousou e o ministro da justiça desceu, acompanhado por Otávio. Mal saíram, o aparelho decolou e desapareceu ao longe, enquanto os recém-chegados iam para as suas respectivas posições.
Um teclado começou a tocar e Ishiro levou o seu pupilo para a frente do desembargador. Entre dentes, disse-lhe:
– Você é capaz de enfrentar duzias de criminosos armados com apenas uma espada sem nem mesmo se abalar e tá tremendo todo para se casar? – riu e acenou para os fotógrafos. – Controle-se, homem.
– Não sacaneia, tchê – respondeu Ricardo, baixinho.
Quando chegaram ao "altar", viraram-se e aguardaram mariana chegar. Não muito tempo depois ela surgiu, arrancando suspiros de paixão do noivo e espanto dos convidados, tamanha era sua beleza. Recuperou grande parte do peso, ficando com o corpo de sempre e o vestido branco, apertado na cintura e com um decote discreto mas tentador, deixava-a irresistível aos olhos do noivo. Tudo combinava: as luvas brancas, a rosa e o véu. Na mão direita, usava o anel de noivado e o buquê da noiva. Ao seu lado, vestindo um terno, estava o pequenino que, muito sério, cumpria o papel de representar o pai.
Ao chegarem abaixo do arco o menino entregou a mãe para o seu pai e afastou-se ficando ao lado do Ishiro e da Tatiana. Os padrinhos de cada casal ficavam ao lado, mais atrás, e o desembargador começou a falar:
– Senhores, é uma verdadeira honra para mim unir este homem e esta mulher em matrimônio. Todos vocês sabem o terror a que foram submetidos, separados de forma trágica e cruel. Mas a perseverança e o amor venceram. Assim, estas duas almas unir-se-ão em matrimônio após muita luta e dificuldades. Se alguém aqui presente tiver alguma razão para que isso não aconteça, e tem que ser uma excelente razão, pode falar agora ou fique calado para sempre.
Um homem levantou-se de uma cadeira. Era um homem velho, alquebrado pela dor. Ricardo mais sentiu do que ouviu e virou-se.
– Eu tenho muito mais do que uma simples razão para eles não se casarem – começou, por fim. – Esse homem destruiu a vida do meu filho. Mutilou-o e roubou-lhe a esposa.
Ricardo respondeu:
– Juiz Guimarães, bem sabe que essa não é a verdade. O senhor conhece-me desde os dezesseis anos e viu que eu noivei com ela há três anos. Eu é que fui a vítima.
O homem ergueu um revólver e apontou para Ricardo, que andou ligeiramente para o lado, de forma a que ninguém fosse atingido. Por ironia do destino, o lugar tinha uma centena de federais, quatorze BOPEs e nenhum deles carregava uma arma sequer. Ricardo manteve o sangue frio e todo o nervosismo do casamente desapareceu como que por encanto. Por trás do juiz, Santana avançou sorrateiro.
– Não, Antunes, não faça isso. Já houve mortes demais – pediu, erguendo o braço. – Juiz, o senhor não quer fazer isso...
Ele, porém, não ouvia mais nada. Um estampido repentino assustou os presentes, mas Ricardo já não estava no mesmo lugar. Girou o corpo de lado e a bala passou, falhando o alvo enquanto avançava um passo. Inevitavelmente, começaram os murmúrios e, apesar do medo, ninguém queria perder o espetáculo.
– Por favor, juiz Guimarães, eu apenas me defendi. Seu filho é que desgraçou toda a minha vida e somente recuperei o que já tinha de direito. – Novo tiro foi disparado. O homem era um exímio atirador, pois não teria errado um único tiro, todos no coração. Ricardo safou-se tranquilamente do disparo e continuou avançando até ao homem.
Quando o juiz Guimarães errou os quatro primeiros disparos, mirou na cabeça do Ricardo e falhou novamente, sobrando apenas uma bala no tambor. Desesperado, apontou a arma para a própria cabeça.
– Pelo amor de Deus, senhor Guimarães, não faça isso, chega de mortes. Esta casa já viu sangue demais.
Ninguém prestava atenção no pequeno Ricardo. Primeiro, ele agarrou-se às pernas do Ishiro, que sorria, calmo. Ao ver o pai desviar tranquilamente das balas, ele criou coragem para olhar, mas quando viu o velho apontar a arma à própria cabeça, deu um grito e correu na sua direção. Nem mesmo Ishiro o segurou pois não esperava aquilo. Chorando, o menino alcançou o homem.
– Não, vovô, não faça isso. Você é o meu vovô, o único que tenho. Ele pode não ser o meu pai. Era mau, batia na mamãe e machucava ela, mas o senhor será sempre o meu avô. Não, por favor, vovô. – O menino agarrou-se na sua perna, chorando. – Não faça isso. Eu não tenho outros avós.
A mão do velho começou a tremer e os olhos carregaram-se de lágrimas, enquanto Ricardo estendeu a mão e ele entregou o revólver. Chorando, o juiz pegou o neto ao colo, apertando-o contra si enquanto os presentes aplaudiam o menino.
– Desculpe, eu não sei onde estava com a cabeça – disse o magistrado. – Acho que foi desespero. Às vezes é difícil ser pai.
– Eu sei, senhor, mas acalme-se. – Ricardo deu-lhe um abraço gentil e ajudou-o a sentar. – Vamos esquecer isto. Saiba que pode vir aqui ver o Ricardinho quando desejar e ele poderá visiáa-lo sempre.
– Obrigado, mesmo não sendo realmente meu neto, é como se fosse. – Voltaram para a cerimônia, que continua normalmente, e o pequenino foi proclamado o herói do dia. No almoço, após o casamento, o incidente já estava esquecido, embora não para todos.
– Tal pai, tal filho – disse o desembargador, abraçando e beijando o garotinho –, você foi um herói, pequeno. Salvou uma vida.
– Não, tio, meu pai é que foi um herói. Ele não deixava o vô acertar nele.
– Sim, meu querido, seu pai também é um herói; mas, hoje, você é o grande herói. – O pequenino inchou de orgulho.
– Vou sentar com o meu vovô – comentou, levantando-se e pegando o prato. – Ele está muito sozinho e triste.
– Vá sim, meu pequeno – disse o pai, sorrindo.
– Que corajoso – afirmou o ministro para Ricardo –, mas ver você desviar-se das balas foi de arrepiar. Chega a ser macabro! Como consegue?
– É simples, tem que desviar antes dele atirar.
– Mas, aí, ele pode corrigir a mira!
– Essa é a parte mais difícil do negócio. Tem que desviar quando já é tarde demais para a correção, ou seja, quando ele está puxando o gatilho.
– Meu rapaz – disse o coronel aproximando-se deles –, bonita cerimônia, excelência. Rapaz você me deu um espetáculo impressionante. Desviar de balas! Tem a certeza que não quer ir para o BOPE?
– Tenho. Você já tem o seu campeão. Ele tem aprendido comigo e agora meu mestre vai treiná-lo. Se ele achar o Antunes digno, ensina-lo-á a fazer isso.
– Deve estar feliz da vida.
– Se está, parece uma criança que ganhou um brinquedo novo.
– Deve estar muito orgulhoso do seu filho. Ele foi muito corajoso, e pensar que ainda nem tem quatro anos!
– Estou sim, senhor, pena que me roubaram os primeiros momentos.
As garotas juntaram-se para ver quem ganhava o buquê da noiva e a sorridente Mariana jogou-o. As flores caíram exatamente em cima da Lena, que as segurou, muito vermelha. Todo o dia seguiu descontraído, alegre e bonito. Certa hora, o pequenino correu para a delegada.
– Tia Lena, é verdade que quem ganha as flores da mamãe é a próxima a casar?
– Dizem que sim, meu amor, por quê?
– Ora, é porque você é a próxima. Não esqueça: uma filha. Ele sorri e sai para brincar.
– "Talvez ela venha a ter o que eu não consegui: o amor incondicional do Ricardo André Godói" – pensou, alegre. Estava bem fisgada pelo Jorge e o sentimento pelo Ricardo foi colocado em um novo plano, tanto que foram os padrinhos da noiva. No fim do dia, ficou com Ricardinho por quatro dias, como já estava combinado, para o casal fazer uma mini lua de mel. Despediram-se dos amigos e do filho, indo com estilo, de Ferrari. Na linha vermelha, Ricardo decidiu fazer um pequeno desvio e estacionou no hospital para visitar Marcelo. Como sempre, dois guardas da federal estavam lá.
– Ei, McGiver, saiu o casório? Pena que era nosso plantão. Você está muito bonita, Mariana, parabéns aos noivos. Vieram torturá-lo?
– Mas claro. Farei esta tortura pelo tempo que ele me fez. Três anos e meio, mais ou menos.
– Vão lá que ele merece. Quando estiverem fora, mandem umas fotos por e-mail que eu terei o maior prazer em manter o traste informado.
– Puxa vida, valeu mesmo. Era tudo o que eu precisava. Obrigado. – Entraram no quarto dele que, ao olhá-los, sentiu o coração acelerar. Ela estava linda como nunca, vestida de noiva e toda de branco.
– Olá – cumprimentou Mariana. – Viemos comunicar nosso casamento, já que você não podia comparecer. Ah sim, mais uma coisa. Estou esperando um bebê e não é seu. Que legal, né?
– É, Marcelo, vou ser papai de novo e desta vez vou poder acompanhar tudo. Como você pôde ser tão cruel ao fazer o que me fez? Bem, agora vamos para Ilha Grande passar quatro lindos dias. Depois, embarcamos para Lisboa mas manteremos você a par de tudo. Adeus, Marcelo, e divirta-se na prisão. Estarei presente no seu julgamento pois as nossas férias serão de apenas seis meses. Preciso de lavar a alma do sangue que derramei por sua culpa e daqueles quatro imbecis. Vou mandar entregarem um lubrificante para o seu rabinho, já que vai precisar.
– Adeus, Marcelo, nunca mais quero olhar para a sua cara. Infelizmente terei de testemunhar no julgamento; mas, depois, jamais olharei na sua cara novamente. Gostou da minha calcinha? Aproveite que é só o que terá para o resto da vida. – Os dois sairam e pegam o e-mail do policial.
– Quero que ele deseje a morte. Jamais terá o meu perdão. O cara mandou que me matassem só para ficar com a minha mulher. Você imagina o seu melhor amigo fazer isso?
– McGiver, não imagino não e conte comigo. Basta mandar as fotos. O meu celular tem uma bela tela, bem grande para ele ver todas as fotos. Divirtam-se na lua de mel e parabéns.
Voltaram para o carro e pegaram a estrada. Em Nangaratiba, estacionaram na casa de um amigo, ex-federal que se aposentou e vivia ali. Ele levou-os de barco para a ilha e chegam à Vila de Abraão já de noite, mas conseguiram hospedar-se pois estava tudo acertado. Por quatro dias, passeiam e curtem-se, apenas os dois. Diariamente Ricardo tirava várias fotos, ora juntos, ora separados e mandava algumas para o colega do hospital que se encarregava da tortura diária, pois André era implacável. Quando terminou a lua de mel, voltaram e passam na Lena para pegar o bebê, agradecendo pela ajuda.
– Não precisam agradecer, pois é um doce de criança – disse, alegre. – Só que tá com uma pressa danada de arrumar uma namorada. Quando partem?
– Em dois dias.
– Estaremos no aeroporto para nos despedirmos. – O filho voltou com os pais, feliz da vida. Jantaram em casa e Mariana passou mal, começando a vomitar. Tatiana, bonachona, olhou para a patroa e disse, sorrindo:
– Macacos me mordam se não temos uma bela encomenda nessa barriguinha ou eu não me chamo Tatiana.
– O que a Tata tá dizendo, papai?
– Que você vai ganhar um irmãozinho, ou irmã.
– JURA? – O garoto explodiu de alegria – Eu sempre quis uma irmãzinha!
― ☼ ―
No dia marcado, os quatro foram para o aeroporto Tom Jobim, o Galeão. O casal planejou uma rota começando pela Europa e retornando ao Brasil por Porto Alegre, onde iriam visitar os tios do Ricardo e ficar alguns dias. No aeroporto, Lena, Jorge e alguns amigos foram despedir-se. A babá também tinha a presença da mãe que chorava com saudades antecipadas.
– Lá se vão eles – disse Lena, abraçada ao namorado. – Ninguém diria que há dois meses ele chegou ao Rio, sedento de sangue e cheio de mágoa.
– É. Afinal, o destino não lhe foi tão cruel. Poderia ter sido muito pior.
– Acho que ele sabe disso – comenta ela.
– Mas que limpeza que fez. Se continuasse por mais um mês, acho que acabaria com o crime organizado na cidade. – Ele deu uma risada.
Lena beijou-o e disse:
– Vamos, veja se a mãe da babá não quer uma carona, que ela não para de chorar. Você vai trabalhar até tarde, hoje?
– Não. Graças a você e ao seu amiguinho ali, estou com pouco trabalho, sem falar que vocês compilaram um dossier tão completo que o meu processo já está pronto.
– Ótimo, porque eu tô carente de um jantar, um passeio...
Não disse mais nada, mas os olhos de ambos diziam tudo. De mãos dadas, seguiram para o carro. Deixaram a mãe da Ana na Estação Central e ele largou Lena na inteligência. Quando ela entrou na sua sala, um lindo arranjo de flores aguarda-a. No cartão, uma pequena frase. – "Não trabalhe até tarde que quero sair com você hoje. Amo você, Lena." – Ela sorri, contente. Tirou os pontos e estava bem novamente. Agora era a sua vez de ser feliz e a coisa prometia. Infelizmente, o médico proibiu o sexo por mais dois meses.
– Oi, chefe – disse uma voz, interrompendo seus devaneios.
– Manoel! – exclamou a garota. – O que faz aqui?
– Sou seu novo assistente – explicou sorrindo. – Contrato temporário a pedido do super-homem.
– Super-homem!
– Sim, aquele maluco que todo mundo chama de McGiver e quase me matou de susto, lembra? – olhou em volta e riu. – Isso aqui nem dá pra saída com os equipamentos dele. E aí, quais são as ordens, madame?
– Pra começar – disse, com um suspiro – você vai usar um linguajar mais adequado, depois, eu não sou madame, entendeu. Trate-me com a devida deferência profissional. – "Eu mato o Ricardo quando ele voltar" – pensou.
– Sim, delegada Madalena – disse, o homem. Não conseguiu continuar a falar porque ele nem mesmo conseguiu descobrir de onde foi que veio a pistola de em menos de um segundo estava apontada à sua cabeça.
– Ninguém, absolutamente ninguém, me chama de Madalena a menos que esteja cansado da vida, entendeu?
– Sim, chefe – respondeu, gaguejando. – Mas o seu colega falou isso, uma vez, de... desculpe.
– Assim está melhor. – Ela guardou a arma de volta,inclinou a cabeça pra trás e riu. Voltou a olhar para ele. – Ricardo não é ninguém, entendeu? Agora vamos trabalhar.
― ☼ ―
Marcelo tirou o gesso do maxilar, falando com alguma dificuldade, mas comunicava-se. O gesso das mãos já foi removido e ele também fazia fisioterapia. A maior parte do tempo, ficava calado, apático. O delegado Moacir aparecia, de vez em quando, e mostra-lhe uma foto. Nessa manhã, era justamente o que fazia.
– E aí, corrupto, eles estão na Grécia. Olhe como ela está bonita. Acho que tá grávida, pois tem uma barriguinha crescendo.
Como sempre, não conseguia tirar os olhos da fotografia. Quando o delegado fez menção de se retirar, Marcelo ergueu a mão e tentou pegar o braço dele.
– Quer ver de novo?
– Pelo amor de Deus – pediu com a voz fraca. – Mate-me, mate-me.
– Tá maluco? – O delegado olhou para ele. – Quer que vá prá cadeia?
– Por favor... – Grossas lágrimas correram dos seus olhos. O delegado saiu, quando um homem ia entrar.
– Desculpe, cavalheiro, mas não pode entrar aqui. – O homem apresentou um documento do chefe da inteligência. – Pode entrar, meritíssimo, queira desculpar. Apenas cumpria ordens.
– Tudo bem. Por favor, gostaria de falar com o meu filho. A sós.
– Claro. Fique à vontade.
Ele entrou. Era a primeira vez que visitava o filho no hospital. Olhou em volta e observou o quarto, que era simples. Apenas a cama, uma mesa móvel para refeições, um banco, uma pequena poltrona que virava cama para acompanhantes e um banheiro privativo. As janelas eram gradeadas, pois tratava-se de um quarto especial para prisioneiros ou loucos. Sentou-se no banco, de frente para o filho que olhava o pai, apático.
– O que você foi fazer, meu filho? Por quê? Se você amasse realmente essa mulher, deixá-la-ia com o homem que a fazia feliz. Tudo o que conseguiu foi provocar dor e tristeza. Onde foi que você se corrompeu desse jeito? – O filho nada disse. Apenas sentia as lágrimas que cairam pelos olhos abaixo. A voz do pai expressava profunda mágoa.
– Ontem, a TV passou um especial sobre ele. Tudo o que você conseguiu, foi criar um herói nacional, o maior de todos os tempos. O homem que sozinho matou mais de duas centenas de bandidos usando apenas uma espada, o homem que desviava de balas. Foi tudo para a TV e o Brasil inteiro viu-o desviar dos tiros, matar um senador corrupto que o queria acertar com uma metralhadora, salvar uma menina raptada e enfrentar mais três deputados e seus noventa criminosos, matando todos. E também viram você dando a ordem de matar todas as pessoas daquela casa, filho. Sabe o que aconteceu?
Ele olhou para o pai.
– Sua mãe teve um colapso e está em estado muito grave. E você, o que fez? Criou um super-herói para o Brasil e transformou-se no supervilão. É assim que a história será contada nas escolas. O homem que praticamente sozinho rebentou com uma rede de corrupção no Rio de Janeiro e no Brasil. E você fez tudo isso por causa de uma mulher que, ainda por cima, pertencia a outro homem! Por quê, meu filho?
– Porque eu amo a Mariana mais que qualquer coisa neste mundo – desse com a voz sumida.
– Isso não é amor, isso é obsessão. O verdadeiro amor só faria isso se houvesse reciprocidade, como eles têm. O verdadeiro amor é deles e, por isso, ele lutou por ela e venceu, porque ela queria que ele vencesse, porque se ela amasse você, meu filho, ele teria virado as costas e ido embora. Morreria por dentro, mas faria pelo amor que tinha por ela. Só que aconteceu exatamente o contrário. Como você pode dizer que a ama se tentou violentá-la duas vezes? Acho, meu filho que você destruiu sua vida e, se ela tinha alguma afeição por si, agora só tem ódio pelo que você lhe roubou: a verdadeira felicidade. Agora adeus, meu filho, que vou ver a sua mãe.
– Pai... mate-me.
– Não, filho, é hora de enfrentar e pagar pelos seus atos. Eu sou um pai, mas também sou um juiz. Adeus, Marcelo. Saiba que, apesar de tudo, ainda amo você.
Ele saiu, deixando um homem desesperado por morrer. Seus passos estavam pesados e os ombros caídos. Não parecia o homem de outrora, altivo e orgulhoso. Sentia-se velho e cheio de saudades do neto, que agora sabia não ser seu, mas que o amava como tal. O menino não se esquecia dos avós e mandava periodicamente umas fotos deles nos mais diversos lugares. Já estavam fora há dois meses. Pensava com muito carinho no pequenino e na ex-nora, que sempre foi uma moça gentil e delicada. Foi para o elevador e desceu dois andares para entrar no quarto da esposa que está muito mal, temendo pela sua vida.
― ☼ ―
Quatro meses depois, um avião pousou no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e vários passageiros de todos os tipos desceram. Nesse grupo, estava Ricardo, a esposa, já com uma barriga bem grande, o filho e a babá. Passaram na alfândega e, por sorte, não são sorteados pois traziam montes de coisas na bagagem. Sem falar na bagagem que tem sido despachada no decorrer desse tempo. Um homem alto, quase tanto quanto Ricardo, na casa dos cinquenta anos e olhos muito azuis aguardava-os. Ao seu lado, a esposa, uma mulher dos seus quarenta e sete anos, muito bonita, baixa e simpática. Do outro lado, outra mulher de grande beleza, aparentemente uns quarenta anos, olhos cinzentos e muito alta. Todos esperavam o sobrinho, a esposa e o filho. Ricardo abraçou os tios, apresentou a Mariana, a babá e o Ricardinho.
– Tu és muito mais bela ao vivo do que na TV, Mariana – afirmou tia Gabriela, que observava a barriga. – Seis meses?
– Sim. – Mariana sorriu. – Consequências do reencontro.
– E este é o pequeno Ricardo André, o meu sobrinho-neto?
– O que é sobrinho-neto? – perguntou, gostando da tia-avó, que o pegou ao colo.
– Eu sou tia do teu pai, porque sou a irmã caçula do pai dele, o teu avô. Assim, sou tua tia-avó. Tia de ser tia do teu pai e avó por ser irmã do teu avô.
– Que legal, isso quer dizer que o senhor é meu tio-avô?
– É isso aí, tchê – concordou tio Henrique – e esta é a tua tia-avó Adriana, a minha mulher. Ela não é de verdade, porque eu é que sou o irmão do teu avô, mas, como é a minha esposa, é como se fosse.
– Vocês são legais, mas falam muito esquisito. – A família deu uma risada.
– Vamos para casa? Vocês devem estar cansados. – O tio ajudou Ricardo com as bagagens; porém, de última hora ele decidiu despachar a maior parte para o Rio, já que ficariam ali apenas uma semana.
– Ana, gostaria de voltar agora para casa? Nos cuidamos do Ric. Tire duas semanas de férias com a sua família. Que tal?
– Obrigada, senhor. Estou com muitas saudades de minha mãe.
– Então está combinado, você segue com as malas. Vou ligar para o motorista buscar você e as bagagens no Galeão. Espere por ele lá, que levará você e as suas coisas, para sua casa.
– Obrigada, senhor. – Abaixou-se e beijou Ricardinho, que adorava desde que conheceu. – Logo, logo, estou de volta meu lindo.
Ele abraçou carinhosamente a babá. Na porta do aeroporto, uma limousine esperava por eles.
– Então, meu querido – disse a tia Gabriela. – Quer dizer que tu rebentaste com uma quadrilha de corruptos e mataste mais de duas centenas de bandidos só para recuperares tua esposa. Não te posso culpar, pois ela é muito linda e o Ricardinho então nem se fala! Divertiram-se pelo mundo afora?
– Mas bah, e como – concordou Ricardo – precisava disto para descansar o espírito. Foi violência demais! Afinal, o que deu na TV, para vocês saberem tanto a respeito do caso?
– Tudo. O ministério público liberou as informações e a federal devolveu o material para a emissora, conforme tinhas prometido. Eles fizeram um especial teu.
– Que safado – afirmou Ricardo. – Qual foi a parte de eu não gostar de chamar atenção que ele não entendeu?
– Vai ver era uma vingança por você não parar de encher o necrotério – disse Jade, rindo muito.
– Ora, Ricardo, foi um programa muito bom e sem exageros. Só aquela bobagem de você desviar das balas é que foi maluquice.
– Ótimo, se vocês não engoliram essa, ninguém vai engolir.
– Mas tia, papai desvia de balas, eu vi. Ninguém consegue acertar ele. É o melhor do mundo e lutou de espada com um japonês, lá no Japão. Ganhou antes de eu terminar de contar até dez.
– O que foi isso?
– Nada demais, eu queria comprar umas armas brancas. Em uma loja caí de amores por uma espada ninja que pedi para olhar. O peso dela era perfeito. Manejei-a um pouco e já ia comprar, quando o dono da loja, com ar de deboche, disse que nos fundos eu poderia testá-la, inclusive com um adversário. Gostei da ideia e então ele disse que, se eu resistisse um minuto ao adversário, a espada seria minha. O cara durou quatro segundos, coitado, e até ficou roxo. Quando perguntou quem me ensinou e eu disse o nome do Ishiro, chegou a se encolher. Deu-me a espada, mas não teve prejuízo, pois comprei mais quatro. Decerto que garantiu o lucro.
– Tu desvias de balas mesmo?
– Claro tia, eu vi.
– Não era montagem se é isso que querem saber. Mas prefiro que pensem o contrário.
– Meu Deus! E como está Ishiro? Ele ficou muito arrasado, quando o meu irmão morreu.
– Está bem. Ele salvou a minha vida, naquele atentado. Depois, deu-me forças para continuar vivendo e ensinou-me tudo o que faltava aprender, o que não era pouco, mas valeu a apena. Ver a Jade viva e o meu filho naquele shopping, trouxe de volta toda a vontade de resgatar o meu passado.
– Graças a Deus, acabou – continuou. – Em duas semanas é o julgamento. O miserável vai pegar, na certa, mais de cem anos. Pena que só pode ficar trinta. – Chegam à casa dos tios, uma belíssima mansão no bairro Tristeza, em um terreno grande à beira do Guaíba. A família levou o casal e o filho a passear pela cidade natal da Mariana, que saiu de lá bebê e nunca mais voltou. Ricardo apreciou o passeio, pois Porto Alegre mudou muito nos doze anos em que ele esteve afastado. A semana passou rápido e tiveram que voltar para o Rio. No aeroporto, Jorge e Lena, esperavam por eles, abraçados um ao outro e ela tinha um lindo anel no dedo. Abraçaram-se e Lena foi logo pondo a mão na barriga da Mariana.
– Que grande! Tá quase, menos de três meses né? Isso é que se chama de farra do reencontro.
– E esse anel, Lena?
– Bem, este cavalheiro muito gentil não larga do meu pé, mas eu simplesmente adoro. Além disso, vocês fizeram a farra do reencontro e nós a da primeira vez. Deu zebra, estourou a camisinha e a pilula do dia seguinte falhou. – Lena deu uma risada e mostrou a barriguinha pequena de quatro meses.
– Demoraste dois meses para a primeira vez? – perguntou o Ricardo, debochado.
– Você esqueceu que eu fiquei de castigo, toda furada por sua causa? – perguntou-lhe, zangada e Jorge deu uma gargalhada.
– Desculpa, querida. – Ricardo abraçou-a. – Mas acho que tu salvaste a minha vida nesse dia. Sozinho, não daria conta de tantos.
– Uma semana em Porto Alegre e o cara já vem falando todo torto. – Lena riu, bem alegre. – Eles também queriam me matar, esqueceu?
O pequeno Ricardo aproximou-se da Lena.
– O que vocês tão falando? – perguntou. – Não entendo nada!
– Quer dizer – Lena pegou-o ao colo –, que em breve você vai ter uma namorada.
– Mas bah, tchê – disse o pequeno, exultante – uma irmã e uma namorada ao mesmo tempo, tri legal!
– Até tu, Brutus? – disse Lena e todos riram. – A vossa também é menina?
– É. O nome será Camila.
– E se tiver olhos verdes? – perguntou Lena, maliciosa.
– Jade, só tem uma. – Ricardo sorriu. – Mesmo que não se chame assim. Poderia até ser Esmeralda, mas será Camila. Devemos isso a ela.
– Nós ainda não escolhemos um nome.
– Que tal, Helena? – perguntou o pequenino. – Afinal vai ser a minha namorada e posso dar palpite.
– Vocês têm certeza que ele só tem três anos?
– Absoluta. Churrasco no sábado? Trouxemos presentes para todos.
– Claro.
― ☼ ―
Mal chegaram em casa, o pequeno Ricardo correu para o seu quarto. Assustado, parou na porta pois os seus brinquedos sumiram quase todos. Ele desceu as escadas e chegou junto ao pai, muito chateado.
– Que foi, meu amor? – perguntou Ricardo. – Algum problema?
– Os meus brinquedos sumiram! – Olhou sério para o pai e encolheu os ombros erguendo as mãos com as palmas para cima. Ricardo achava muita graça nesse gesto. Fingindo-se de sério, disse para o filho:
– É mesmo? Vamos lá em cima ver isso. – O pai levou-o ao colo até ao quarto. – Caramba, não estão aqui! Temos de chamar a polícia.
– Mas pai, você é polícia.
– Xi, é mesmo, tinha esquecido! Mas então, o que vamos fazer?
– Papai, você é que é o policial! – Jade olhou pai e filho, divertida. A diferença para o Marcelo era tão marcante! – Eu não sei o que fazer.
– Bem sei, meu amor, mas para resolver o caso dos brinquedos desaparecidos, eu preciso da sua ajuda. Só sei pegar pessoas ruins e preciso aprender a pegar brinquedos fujões.
– Acho que temos que procurar pela casa, para ver se encontramos alguma coisa.
– ISSO, procurar pistas. Muito bom, filho, vamos lá.
– Ali, ali, ali. Junto da varanda. Um carrinho do meu autorama.
– Mmmmmm, então eu acho que vieram por aqui, vamos lá fora procurar mais pistas. – Os dois seguiram uma trilha de brinquedos até chegarem a um lugar diferente.
– UAU, isso não tava aqui antes. Ele olhou o parquinho, com balanços, escorregadores e gangorras, até um labirinto.
– Olhe, tem um brinquedo naquela porta. Vamos ver? – O menino desceu do colo do pai e correu. Mariana abraçou o marido, observando o filho. – Ele vai adorar, Jade.
– Estou vendo, amor. Agora ele tem um pai de verdade e está aprendendo a curtir.
– PAI, PAI, estão todos aqui, mas isto não existia! Foi você né?
– Gostou, filho? Era para o seu aniversário, mas estávamos passeando. – O pequenino correu e abraçou o pai.
– Você é o melhor pai do mundo, posso brincar?
– Pode, meu amor, mas não faça bobagem e venha para casa antes de anoitecer.
No dia seguinte, Ana apareceu e pediu para falar com Ricardo que a levou para o escritório e convidou-a a sentar.
– Fale, minha querida – disse. – Você parece preocupada.
– Sabe, agora que estou aqui, não sei por onde começar.
– Pretende sair do emprego?
– Não, senhor. Bem, é a minha mãe. Eu tava conversando com ela e soube que uma vez trabalhou aqui e gostava muito, mas cometeu um erro e foi demitida.
– Em geral, quem cuida disso é a Tatiana. Eu, raramente, contrato ou demito alguém.
– Isso foi no tempo do seu pai. Acho que foi em Porto Alegre.
– Posso saber que erro foi que ela cometeu?
– Ela tentou roubar uma garrafa de bebida. – Ana olhou o chão envergonhada. – Minha tia descobriu e demitiu-a. Mas minha mãe é uma mulher honesta. Meu pai forçava ela a fazer essas coisas. Batia em nós e era um alcoólatra.
– Ela devia ter dado queixa.
– Eu sei, mas era muito jovem e assustada. Também nunca teve estudo. Trabalhava dia e noite para eu poder estudar. Nunca me deixou trabalhar nem me faltou nada. Hoje, estou na faculdade de medicina graças a ela. Depois que o meu pai morreu, a nossa vida mudou muito.
Ricardo foi ao intercomunicador e chamou a governanta.
– Tata, por favor, venha ao meu escritório.
– Sim? – Olhou séria para a Ana. – Essa menina fez alguma besteira?
– Não, Tata, ela é um doce de pessoa. – Ricardo sorriu. – O que aconteceu com a mãe dela?
– Preferia não discutir esse assunto. – Tatiana amarou a cara, zangada. – Demiti-a há muito tempo.
– Por causa de uma garrafa?
– Não. E isso ela nunca entendeu. Foi por causa do marido. Eu sabia que ela agiu sob coerção.
– Tata – Ricardo levantou-se e abraçou a governanta. – Tatinha, amoleça esse coração com a sua irmã. Você vai lá e dará uma segunda chance para ela. Tenho a certeza que aprendeu a lição.
– Se é isso que deseja...
– Não, minha Tata – ele beijou a mulher que o amava como a um filho. – Você deseja e vai convidá-la para voltar. Diga que surgiu uma vaga. Faça isso pelo seu pequeno, ok?
– Você sabe que eu faço qualquer coisa que me pede. – Apertou o gigante que já foi embalado pelos seus braços e sorriu. – Muito bem. Eu tenho muita pena da minha irmã mesmo. Com aquele traste, ela comeu o pão que o diabo amassou.
– Pronto, Ana, não precisa mais ficar triste pela sua mãe, mas não lhe diga nada. Deixe a Tata resolver isso com a irmã. Acho que as duas precisam fazer isso juntas.
A moça aproximou-se e abraçou Ricardo, que ficou sem jeito.
– Obrigada.
– Quer que eu demita esta impertinente por tomar tamanha liberdade?
– Ora, Tata, ela estava apenas agradecendo. Tá com ciúmes?
Tata sorriu e saiu.
– Ana, você se importaria de interromper as suas férias no sábado? Vou receber uns amigos. Depois tira dois dias a mais, combinado?
– Claro, será um prazer. Já tenho saudades do Ricardinho.
Ricardo sai para o pátio para ver se o filho estava bem. A meio caminho, parou e disse, em japonês.
– Não adianta se esconder, mestre. Sei que está aí em cima.
Uma sombra saltou de uma árvore próxima.
– Aprendeu mesmo, filho. Como foi de viagem?
– Ótima, mestre, acalmei o meu espírito...
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