Capítulo 2 (não revisado)
Domingo.
Às onze horas Ricardo estacionou perto da casa do casal e anunciou-se ao porteiro que já não era o sujeito habitual. Quando foi autorizado a entrar, sentiu um pouco de adrenalina, pois ia para a casa da mulher com quem tantas vezes compartilhou o leito, naquele mesmo lugar, só que agora nada podia fazer. Quando a porta do elevador abriu, ela esperava na soleira, sorrindo. Teve que manter todo o seu autocontrole quando ela lhe beijou o rosto, pois por pouco não a tomou nos braços. De forma a evitar um desastre, entrou e olhou em volta. Notou que a decoração não mudou nada e apenas as janelas tinham redes protetoras por causa da criança. Na varanda, cumprimentou Marcelo que acendia a churrasqueira e o pequenino, ao ver o seu homônimo, correu até ele.
– Tio Ric, que bom que você veio. Olhe os meus brinquedos, venha.
Ricardo aperta a mão do amigo mas o pequenino insistia e puxava-o tanto que ele acabou acompanhando o menino até ao quarto muito arrumado e cheio de brinquedos.
– Puxa vida, Ricardo, você tem um autorama! – disse, elogiando o filho. – Que bacana.
– Vamos apostar uma corrida, tio?
– Claro, meu amor, mas eu acho que vou ganhar.
Na porta, Mariana observa os dois Ricardos brincando. O olhar do amigo do Marcelo era de pura ternura. Como disse, amava realmente as crianças e ela sentia-se completamente confusa pois nutria uma grande atração por ele. Os dois corriam um contra o outro até que o pequeno, facilitado pelo pai que o olhava e sorria, disse:
– Ganhei, tio, eu sou o novo Aírton Senna. – O pequenino, extremamente precoce, dançou à frente do pai.
– Ganhaste sim, tchê. – Abraça-o e pega-o ao colo. – Agora, vamos ficar com os teus pais, tá legal?
– O que é tchê?
– Tchê é uma palavra do sul. Eu nasci aqui, mas os meus pais eram do sul e vivi lá muitos anos. É o mesmo que cara, você ou tu.
– Que legal, tchê. – Afirmou a criança.
– Vamos? – Só nesse momento viu a Mariana na porta. Sorrindo para ela, disse. – Desculpe, Jade, é que não resisto a crianças.
– Não tem problema, Ricardo. Ele raramente gosta de alguém e nem mesmo com o pai fica assim. Jamais o vi procurar o colo de um adulto a não ser o meu ou do avô. Você deve ter um carisma muito especial com as crianças e elas sentem isso.
– Vamos, Ricardinho, vamos para a varanda. O seu pai está sozinho e não é justo.
– Não podemos brincar mais? – questionou o pequeno, chateado.
– Mais tarde, tá legal? Eu prometo. Mas, da próxima vez, vou ganhar.
Na varanda, com o pequeno sem se separar do verdadeiro pai, Marcelo estende-lhe uma lata de cerveja. Ricardo aceita, mas bebe pouco e sem vontade, enquanto conversam coisas triviais. Sentado de frente para o mar, ele aprecia a paisagem tranquilizadora re responde algumas perguntas enquanto brinca com o filho. De certa forma, evita olhar para Mariana, como se isso reduzisse um pouco o que sentia por dentro.
Em pouco tempo o amigo serviu uns petiscos e perguntou:
– Ricardo, o que pretende fazer agora?
– Já disse: pegar os assassinos que quase me mataram. Vou permanecer no anonimato para que não saibam do cerco que iniciarei amanhã.
– E para viver? – questionou o amigo. – Precisa de trabalhar.
– Não, não preciso – respondeu. – O meu patrimônio foi salvo pois eu previ todo o tipo de hipóteses e até a minha casa ainda me pertence.
– Bem, pretendia lhe oferecer um cargo de assessor – comentou com um sorriso. – Como deputado federal, posso fazer isso.
– Não, cara, obrigado. Quero ficar aqui no Rio e não em Brasília. É aqui que se encontra o que procuro.
– Essa é a parte ruim. – Encolheu os ombros. – Segundas-feiras, vou pra Brasília e só volto às quintas.
– Não é o tipo de vida que eu ia querer.
– Olhe, ontem mesmo eu pedi uns favores e falei com alguns assessores. Um homem de confiança vai dar uma pesquisada no deputado Márcio, aquele que vocês investigavam. Quanto aos outros, preciso ser mais discreto, mas arranjarei informações, pode contar comigo.
– Obrigado, Marcelo – disse Ricardo. – Você sempre foi um bom amigo.
― ☼ ―
Mariana estendeu uma travessa com alguns pedaços de picanha fatiada e disse, com os olhos brilhando:
– Coma mais um pouco, Ricardo. – Sorriu. – Você quase não tocou na comida!
– Obrigado, Jade, mas estou sem fome. Desculpe.
Sem que qualquer dos dois notasse, ela não tirava os olhos do Ricardo, desnorteada. Seguia com o olhar cada palavra do que dizia e sentia a firmeza de caráter na sua voz, por outro lada, também notava a dureza da sua determinação que lhe chegava a provocar um pouco de medo, pois via perfeitamente que estava de frente a um homem que não hesitaria em matar.
Observava o belo corpo, muito alto e bem constituído e os seus olhos brilhavam como há muito tempo não acontecia. Enquanto comiam a carne, Ricardo brincava com o filho, ajudando-o a comer. Ela comparava-o com o marido, que não tinha qualquer paciência com o próprio filho e isso a entristecia um pouco
Após terminarem o churrasco Ricardo brincou mais um pouco com o filho até que decidiu retirar-se. Na hora de ir embora, a criança perguntou.
– Tio Ric, quando eu vou conhecer sua piscina?
– Bem, se os seus pais quiserem, podemos fazer um churrasco na minha casa sábado que vem. Que tal?
– De acordo – afirma Mariana sem esperar uma resposta do marido.
Ao se despedir, o rapaz abraçou o pai com força.
– Foi bom conhecer você, tio, o senhor é o melhor cara do mundo.
Abraçou a criança, escondendo as lágrimas, e foi para o carro que estava estacionado perto do quiosque que tanto gostava e onde conheceu a sua noiva. Ao passar por lá, mudou de ideia e sentou-se de frente para o mar com um suco de laranja na mão.
Sentia um peso grande nos ombros e uma tristeza infinita. Para ele, vê-la viva e casada com outro, era tão ruim ou pior do que a imaginar morta. Por outro lado, notou claramente a falta de felicidade, aquela que eles tinham e compartilhavam sempre um com o outro. Isso podia muito bem ser um bom sinal para si. Ficou cerca de vinte minutos pensando e olhando para o mar, tão concentrado e triste que só se deu conta da sua presença quando estava praticamente ao seu lado.
– Oi, Ricardo – ela sorriu, gentil – não imaginei que estivesse por aqui.
– Gosto deste lugar – respondeu-lhe, também sorrindo. – Dá paz. O que houve, algum problema?
– Marcelo deu uma cochilada. – Voltou a sorrir enquanto encolhia os ombros. – Acho que tomou algumas cervejas a mais e o pequenino também dorme. Eu quis dar um passeio na praia, que gosto muito. Logo depois vi você aqui e vim para cá.
– Quer tomar alguma coisa, Jade?
– O que está bebendo?
– Suco de laranja.
– Para mim está ótimo.
Fez sinal, pedindo dois sucos. Ela não tirava os olhos dele, embevecida, e quando o olhar de ambos se encontrou, nota que o dele ficou muito suave, quase sorridente, como se quisesse dizer algo, algo que não compreendia. Ao ver a moça olhando para si, tão compenetrada e pensativa, deu um pequeno sorriso e perguntou, manhoso:
– Sou tão feio assim, Jade?
– Ora, Ricardo. Acredito perfeitamente que você saiba muito bem que é um homem lindíssimo e tenho a certeza que eu não seria a primeira mulher a dizer isso. É que seus olhos parecem misteriosos.
– "Mas serias de longe a mais importante, tchê." – Pensou ele, que acrescentou em seguida. – Só que não são. Tratam-se apenas de olhos de quem já viu muitas coisas, várias delas nada agradáveis.
– Eles guardam segredos e tristezas, é o que sinto.
– Assim como os seus, Jade. – Tomou um gole e ela sorriu.
– É verdade, mas o que os meus guardam mesmo é a saudade do que não me lembro. Minha vida não é como eu julgava que seria e isso me deixa muito triste. Engraçado, mas eu me sinto bem falando com você. Mal o conheço e falo de coisas tão íntimas! Eramos amigos antes?
– Sei guardar segredos, pode confiar. – Sorriu e ela derreteu-se toda, pois o sorriso do Ricardo penetrava no seu coração de uma forma inexplicável. – Afinal, eu era da inteligência da polícia federal e lidava com segredos todos os dias. Sim, eramos muito amigos. Sabe, Jade, eu acho que você vai recuperar a sua memória mais rápido do que imagina, mas tenha muito cuidado pois certas lembranças poderão ser um choque e causar alguma raiva e frustração. No início, é melhor guardá-las para si.
– Você fala como se me conhecesse muito bem!
– Melhor do que imagina, mas deverá se recuperar por si mesma. Não adianta eu lhe falar tudo sobre você, pois continuarão a ser palavras vazias, carentes de um valor que são as suas memórias.
– Por que disse isso sobre raiva e frustração?
– Porque, invariavelmente muitas coisas que você planejava fazer deixaram de acontecer pelo simples fato de ter perdido a lembrança das mesmas e outras passaram a existir no lugar delas. Isso é comum para quem sofre de amnésia por muito tempo.
– O que você disse assusta um pouco e eu não estou gostando nada da minha vida atual. Ela parece uma farsa e Marcelo não é a mesma pessoa com quem me casei. Não lhe sei explicar, mas ele mudou com o passar do tempo. Como era antes de eu me acidentar?
– Um jovem vereador recém-formado em direito, cujo sonho era acabar com a corrupção. Vivia enfrentando e desafiando outros vereadores e, depois, deputados. Era um cara bacana, alegre, e saíamos sempre às quintas-feiras para um bar tomar umas cervejas e divertirmo-nos. Infelizmente, Jade, eu sofri um atentado e quase fui morto. Fiquei fora mais de três anos e meio, me tratando.
– Por isso você é tão triste? – Ela, inconscientemente, fez-lhe um carinho na mão e ele tremeu um pouco, mas a garota não notou. Aquele toque, tão doce, deu-lhe uma vontade alucinante de a agarrar e beijar ali mesmo, tendo que se conter muito a custo.
– Sim, por isso e mais outras coisas. Mas vou-me recuperar, quando resolver todas as pendências.
– Você sabe como eramos eu e ele, antes do meu acidente?
– Isso é uma coisa que só ele poderá responder para você, Mariana.
Ela notou que não a chamou de Jade pela primeira vez desde que chegara e interpretou isso como um sinal de alerta. Algo ali não se encaixava e ela, perspicaz, não tocou mais no assunto. Sentia-se envolvida por ele, pela voz macia e educada, pelo olhar tão profundo e misterioso.
Ela estranhou muito o fato deles terem se conhecido e ela ter ficado noiva do Marcelo, pois ele apesar de ser um homem bonito e desejável, não era o seu tipo, ao contrário do Ricardo que a atraía como um ímã. Curiosa, perguntou:
– E você? Como era? – Deu uma risadinha e continuou. – Desculpe, mas é que se éramos amigos eu adoraria saber mais sobre você, pois gosto de si.
– Eu? – Ricardo encolheu os ombros. – Era uma pessoa tranquila, despreocupada. Vivia a minha vida bem e com muita alegria. Adorava o meu trabalho onde pus na prisão uns duzentos corruptos, assassinos, pedófilos e sabe-se lá o que mais, só que eram de um tipo especial, aqueles que a justiça normal não consegue pegar. Divertia-me com os amigos, a minha noiva e era uma vida que eu chamaria perfeita, se não tivesse sido traído por alguém. E, agora, o meu objetivo é encontrar esse alguém e fazer com que pague na mesma moeda.
Quando ele disse aquelas palavras, Mariana viu a dureza e determinação no seu olhar, tendo até medo do que aquele homem parecia ser capaz de fazer. Por outro lado, ele sempre era calmo e gentil, uma total contradição.
– Por que acha que foi traído, Ricardo? – perguntou, finalmente.
– Porque eu era o equivalente a um agente secreto e quase ninguém sabia do meu trabalho. Uma das poucas pessoas que sabiam, por exemplo, era o Marcelo que colaborava conosco passando informações de políticos corruptos e felizmente nada lhe aconteceu, mas muito poucos sabiam e os que sabiam eram do meu mais alto círculo de confiança.
– Eu sabia?
– Você? – Sorriu ternamente. – Sim, Jade, você sabia.
Ela retribui o sorriso e os seus olhos mostraram aquele brilho mágico que o Ricardo tanto amava, despertando-lhe novamente a vontade quase incontrolável de a tomar nos braços.
– André, desejo que recupere o seu passado, da mesma forma que espero recuperar o meu. – Levantou-se e deu um beijo no seu rosto. – Vou para casa que está ficando tarde. Foi bom ver você, muito bom mesmo.
– Adeus, Jade. Você vai se recuperar, tenho a certeza – disse ele, contente de a ouvir chamar de André.
Terminou o suco e foi para casa. Durante o percurso pensou na conversa que teve com a Mariana, que estava insatisfeita e olhava-o com o olhar similar ao que tinham antes.
Para ele, isso só podia significar uma coisa: ela gostava de si, lá no fundo aquele grande amor não desaparecera. Chamá-lo de André tão espontaneamente era uma prova concreta de que ela não teve a sua memória destruída. Bem no fundo do seu subconsciente, tinha as lembranças adormecidas e, na sua visão, elas estava lutando desesperadamente para virem à tona. Ficou imaginando se não foi a sua presença que desencadeou o processo ou a insatisfação que ela vinha sentindo e tão abertamente lhe falou, que de certa forma até o espantou.
Agora ele precisava mesmo era de ter um cuidado extremo para que ela não se tornasse uma vítima na guerra violenta que pretendia travar a partir do dia seguinte. Por outro lado, sabia que precisava de a ver mais vezes antes que enlouquecesse de vez. Agora mais do que nunca passaria a lutar com todo o empenho para ajudá-la a recuperar as lembranças.
Ele era perdidamente apaixonado pela bela garota e o que mais desejava era abraçá-la e cuidar dela, talvez até simplesmente pegar nela e ambos sumirem dali para um lugar desconhecido e seguro de forma a começarem de novo, mas tinha a certeza que o melhor caminho era enfrentar a crise de frente.
A questão principal era: por onde começar? Qual o grau de envolvimento do Marcelo nisso tudo? Em quem devia confiar?
Eram perguntas demais e todas sem uma resposta concreta. Sentou-se na varanda da sala, ouvindo os ruídos da noite. Com um whisky na mão, tentava visualizar o rosto dela olhando para ele naquele quiosque. Triste por não a ter ao seu lado, decidiu deitar-se antes que acabasse alcoolizado, pois isso não ajudaria em nada e só pioraria as coisas.
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