Capítulo 1 (não revisado)
Esbaforido e quase sem controle sobre si mesmo ele aproximava-se do que julgava ser uma miragem. Com as têmporas latejando e o coração fora de controle, Ricardo sentia a adrenalina de uma forma que nunca lhe aconteceu, pois daquela vez estava sem reação, com as mãos tremendo em sintonia com os joelhos, os olhos arregalados e a boca abrindo e fechando como um peixe fora da água.
Na loja imediatamente à sua frente, uma mulher olhava e selecionava algumas roupas do expositor enquanto conversava calmamente com a vendedora, nenhuma das duas vendo Ricardo a apenas cinco metros delas. Ao lado das moças, um menino muito loiro, talvez de uns três ou quatro anos, brincava com as peças penduradas, escondendo-se e fazendo caretas para as duas.
Ainda sem entender nada, ele olhava de volta para a mulher, que na sua opinião sempre fora a musa da perfeição, uma mulher jovem, alta e esguia, de cabelos castanho-claros, ondulados. Ela trajava uma blusa verde e uma bermuda folgada, amarrada à cintura com um cinto de corda que desce de lado por uns trinta centímetros.
Ricardo queria falar, mas a sua garganta parecia ter dado um nó tão forte que chegava a doer. O instinto acabou falando mais alto e ele aproximou-se rapidamente, ainda ofegante. A vendedora ao ver um homem enorme chegar perto delas de chofre tomou um susto e soltou um pequeno grito, mas foi ignorado por ele.
Quando os olhos de ambos se encontram, Ricardo perdeu quase dez segundos olhando para aquelas lanternas de jade que tanto amava e ela, inconscientemente, sorriu. Finalmente conseguindo reagir, Ricardo pega seus ombros e sua voz ainda sai tremida:
– Jade! – disse, baratinado. – Estás viva! Oh meu Deus.
A sua resposta deixa-o ainda mais espantado e desorientado:
– Jade? – perguntou. Abanou a cabeça e continuou. – Desculpe, moço, mas eu não o conheço, nem esse é o meu nome. Creio que o senhor me confundiu.
– Jade – insistiu Ricardo –, Mariana, sou eu, Ricardo. Tu não te lembras de mim? Meu Deus, como pode?
Nenhum dos dois viu a vendedora sair na surdina e voltar com dois seguranças que mais pareciam duas muralhas e que se aproximaram. Ambos cercaram o jovem e um perguntou para a cliente:
– Ele está incomodando a senhora? – Pôs a mão no ombro do Ricardo, segurando-o. – Quer que a gente chame a polícia?
– O senhor faça o favor de me soltar – ameaçou Ricardo –, se não deseja ir preso...
– Você está importunando a cliente, senhor – ripostou o segurança. – Assédio da cadeia.
– Não a estou assediando...
– Ele não fez nada – disse Mariana, sorrindo timidamente para os seguranças. – Apenas me confundiu com outra pessoa. Ele não me desrespeitou.
– Nesse caso, nos desculpe. – O segurança largou o estranho, mas ficaram perto da porta.
– Mariana, eu não te estou confundindo, não – disse Ricardo, sentindo-se desesperado. – Não te lembras de mim, Jade?
– Desculpe...
– Algum problema, Mari? – perguntou alguém às costas. – Cavalheiro, nós o conhecemos para o senhor chegar assim... Ricardo!
Ricardo virou-se e viu seu amigo Marcelo que tinha os olhos arregalados e a boca escancarada, branco como cal. Quando se refaz do susto, aproxima-se sorridente a abraça ao amigo, mas Ricardo não reage da mesma forma.
– Caraca, Ricardo, que bom ver você – disse finalmente. – Pensei que nunca mais o ia ver. Todo mundo pensa que você morreu!
– Marcelo, o que está acontecendo? – perguntou, cada vz mais assustado e nervoso. – Por que a Jade...
Uma mãozinha pequena puxa a sua bermuda e ele olha para baixo para ver o bebê que se aproximou.
– Oi, eu também me chamo Ricardo e vou fazer três anos, você é amigo da minha mãe?
– Marcelo, o que está acontecendo? – insistiu Ricardo, erguendo a voz, lívido.
O recém-chegado pôs a mão no ombro do amigo e disse:
– Cara, nós precisamos de ter uma longa conversa a sós para eu poder explicar algumas coisas. – Ergueu os olhos para a garota e disse-lhe. – Mariana, fiquem aqui que eu depois explico tudo, pois Ricardo é um velho amigo. Vem, cara, vamos para a praça da alimentação tomar qualquer coisa que temos que conversar porque há muitas coisas novas que você precisa saber.
― ☼ ―
A praça da alimentação era bem perto dali e os dois caminharam em silêncio. Ricardo sentia tudo do avesso, a cabeça latejava e o sangue fervia, pois achava que tinha que haver algo de muito errado em tudo aquilo. Quanto mais ele pensava, menos as coisas faziam sentido. Ele viu Jade morta no seu carro mais de três anos antes e agora ela estava ali, viva e com um filho. Não se lembrava dele, o homem como quem ia casar e para baralhar tudo, estava o seu amigo dos tempos da faculdade ali mesmo, ao lado dela. Aquilo levava-o a uma possível conclusão que ele nem queria cogitar.
Marcelo pegou dois chopes e sentaram-se em uma mesa no meio da praça. Ricardo estava tão nervoso que tomou tudo de um gole só.
– Cara – disse o amigo – para um defunto, você é um fantasma bem real. Por onde andava?
– O que está acontecendo, Marcelo – insistiu Ricardo que está demasiado nervoso e prestes a sair de controle. – Eu chego em um shopping, encontro você ao lado da minha noiva que supostamente estava morta e nem sequer me reconhece?
– Ric – começou o amigo. Antes de mais nada, quero que saiba que todos pensamos que você estava morto há quase quatro anos...
– Isso não me importa, tchê – interrompeu, irritado. – Bem sei que todos pensam que eu estou morto. Você e Jade são as primeiras pessoas a descobrirem que estou vivo. Então, vou perguntar de novo: o que está acontecendo?
– Não vejo outra forma de lhe dizer isto senão de forma curta e grossa – disse Marcelo, apertando as mãos, nervoso. – Eu e Mariana estamos casados.
– O quê?! – Ricardo quase grita, levantando-se com o rosto vermelho –, o que foi que disseste?
Marcelo assustou-se, até porque não tinha a consciência lá muito limpa quanto a isso, sem falar que sabia muito bem do que o amigo era capaz. Insistiu:
– Calma, Ricardo, pelo amor de Deus, deixe-me explicar o que aconteceu. Bem sei que isso é um choque para si, mas creia que agora também é para mim. Não se esqueça que você é tido como morto há três anos.
– Explique, Marcelo, mas é melhor que seja bem convincente, muito mesmo. – Voltou a sentar-se, sentindo que tremia por todo o corpo e sabendo que isso era mau sinal. Respirou fundo e aguardou.
– Bem, durante aquele maldito atentado, a Mariana foi ferida de forma muito grave...
– Segundo os jornais, Marcelo, ela estava morta.
– Foi um erro por má interpretação que os paramédicos falaram ao dizerem que achavam que ela estava pra lá de qualquer salvação. Na verdade ela estava por um fio, mas os jornalistas interpretaram que ela morreu e eu não desmenti. Cheguei lá logo depois porque vi na TV e assumi as rédias. Mari levou dois tiros, um deles no crânio e quase de raspão, mas chegou a atingir o cérebro muito superficialmente, provocando um traumatismo craniano tão violento que ficou em coma por quatro longos meses. Você levou tantos tiros que nem sei como está aqui. O atentado foi em frente a uma câmera de controle de tráfego e a polícia foi acionada, mas não chegou a tempo. Eles viram quando você, mesmo ferido, saiu do carro e matou os dois motoqueiros, só que os caras da van acabaram o serviço e levaram o seu corpo. Eu assisti o vídeo, então você deve imaginar o choque que senti ao ser você na minha frente.
Ricardo suspirou e olhou nos olhos do amigo.
– Eu sei. Fui salvo por um milagre. Mas também fiquei em coma muito tempo – Disse, sentindo que as coisas começavam a fazer algum sentido.
– Bem, meu amigo, você foi dado como morto. Como disse, descobri onde levaram a Mariana e cuidei para que ela tivesse de tudo e em especial não desmenti a notícia da sua morte porque tive medo que voltassem. Desse jeito, com ela morta, quem quer que fossem os mandantes dariam o serviço por terminado. O seu pessoal da inteligência também não desmentiu por achar mais seguro. Espero que você entenda, Ricardo. A polícia achou que tinham levado o seu corpo para entregar aos mandantes e depois descartado em algum cemitério clandestino por aí. Somente o seu chefe é que jamais desistiu das buscas e nunca aceitou a sua morte. Cara, eu confesso que sempre fui apaixonado por ela e você não estava mais aqui; mas, acima de tudo, queria protegê-la. Pedi licença para resolver assuntos pessoais e fiquei todo esse tempo ao lado dela, no hospital. Quando saiu do coma, não sabia quem era. Perdeu completamente a memória e os médicos acham que é irreversível. Então, disse quem ela era e, também, que era seu noivo. Entenda que queria protegê-la...
Espantado, Ricardo não acreditou no que ouve. De olhos arregalados e com o rosto vermelho, disse bem baixo:
– Eu devia te matar, Marcelo. Tu mentiste para a minha noiva.
– Porra, já disse que pensei que você estava morto – insistiu Marcelo, cheio de medo –, todos pensaram. Olhe, ela tem uma saúde extremamente delicada. Como afirmei, sofreu um traumatismo violento e o médico diz que ele deve ser poupada de qualquer choque. Depois disso, nós casamos alguns meses depois.
Ricardo pensou no bebê e disse à queima roupa:
– Aquela criança não é tua, Marcelo. Eu sei fazer contas, sem falar que se parece demasiado comigo.
– Não, não é – confirmou. – Ele é seu filho, Ricardo. Enquanto Mari jazia em coma, notamos que sua barriga crescia. Pelo bem dela e da criança, as coisas devem continuar como estão.
Ambos calaram-se por alguns segundos, cada qual com seus pensamentos. Ricardo tentava absorver todas aquelas informações, especialmente o fato da sua preciosa Jade estar viva. Na sua visão, o problema é que ela continuava inacessível.
– Escuta, tchê, tu sabes o que eu vim fazer aqui? – perguntou, muito irado. Com o rosto rubro de cólera, continuou. – Vim procurar e matar os mandantes desse crime. Matá-los com as próprias mãos, matá-los em uma dor tão atroz que irão desejar a morte muito antes dela acontecer. – Marcelo engoliu em seco, ao ouvir as palavras duras do amigo. – Para mim, Marcelo, ela estava morta. Ela, a coisa mais importante da minha vida, estava morta, MORTA. E agora descubro que está bem viva, mas nem posso chegar perto. E pior, tenho um filho que não vi nascer nem vou poder acompanhar o crescimento. E grande parte da culpa disto tudo és tu, Marcelo!
– Ricardo, ouça a voz da razão. Você estava morto. Para nós, você estava tão morto, quanto ela para você. Acredite que eu jamais faria isso se não fosse assim.
Sem saber o que fazer, Ricardo pôs os cotovelos sobre a mesa e cobriu o rosto com as mãos, sentindo-se muito perdido
Marcelo, aproveitando aquele silêncio entre ambos, tentou argumentar novamente:
– Cara, a Mariane tem uma saúde muito delicada e o médico foi explícito quanto aos riscos. O choque que uma revelação dessas traria, pode provocar nela uma crise terrível, por isso temos de esconder a verdade. Peço pelo amor de Deus que pense nisso se ela significa alguma coisa para você. Quanto ao seu filho, sabe que o pode ver sempre que quiser. O resto foi um precalço do destino.
Ricardo voltou a olhar para o amigo, enquanto brincava com o copo vazio, tentado a quebrá-lo na cara de alguém. Finalmente caiu na razão e disse:
– Tudo bem, Marcelo, aceito pela saúde da Jade. Mas para mim ela parece perfeitamente saudável, embora um pouco magra demais.
– Engano seu. Seguidamente, sofre de profundas depressões e já temi que tentasse o suicídio. Acho que só não o fez por causa de criança. Recentemente tem até melhorado um pouco e parou de ir ao psiquiatra, mas há riscos demasiado altos envolvidos.
– Está bem, Marcelo, mas vou dizer uma coisa: se ela pôs aquele nome no nosso filho é porque isso não é irreversível. E, quando descobrir, vai-te ferrar bonito.
– Como pretende descobrir os criminosos? – Marcelo mudou de assunto.
– Esse era o meu trabalho, cara. Ainda não sei, mas tu sabes que sou bom nisso, o melhor. E, quando os encontrar, vão desejar não ter nascido.
– Onde puder ajudar, pode contar comigo. Tome o meu telefone. – Estendeu um cartão. – Lembra-se daqueles sujeitos que você investigava antes do atentado?
– Perfeitamente. – O olhar do Ricardo ficou duro. – São só meus principais suspeitos.
– Três deles entraram no meu partido – explicou. – vou ficar de olhos neles e passarei alguma informação se descobrir.
– Obrigado – disse. – Toda a ajuda é bem...
Ricardo levantou o olhar e viu a Mariana aparecendo com o filho. Na mão, carregava uma sacola com as compras que fez. Ao vê-la, ficou quieto por alguns segundos. Os seus olhos duros tornam-se doces e suaves, mas notou na hora que ela não era a mesma pessoa que conheceu. Não havia espontaneidade ou alegria. Se fosse a sua Jade e alguns anos antes, ela teria abraçado carinhosamente o marido, sorrido e saído conversando de forma descontraída com todo mundo. De certa forma, isso até poupou-o de uma dor ainda maior. O pequenino, ao ver o homônimo, andou até ele e, sem titubear, subiu ao seu colo.
– Oi – disse o pequeno – você parece muito bacana, tio.
Louco de vontade de abraçar a criança, segurou-se e fez apenas um carinho no seu rosto. Pela primeira vez em mais de três anos, um sorriso gentil apareceu no seu rosto.
– Ricardinho – Mariana censurou o filho – isso são modos?
– Tudo bem, Jade, eu adoro crianças – disse, olhando para o filho. – Você quer tomar um sorvete, Ricardo?
– Quero sim. Posso, mamãe?
– Claro. – A Mariana sorri docemente para o filho.
Ele pegou o petiz ao colo e vai atrás de uma loja que venda sorvete. Como naquele andar da praça de alimentação havia muitas, não teve dificuldade em encontrar uma por perto.
― ☼ ―
Mariana não conseguia tirar os olhos daquele homem tão belo e não entendia a forte atração que sentia do nada. Sentou-se ao lado do marido e disse:
– Desculpe, mas você demorou demais e o Ricardinho estava muito inquieto para eu esperar na loja. – Apontou Ricardo com o nariz e perguntou. – Quem é ele, Marcelo, e por que me chamou de Jade?
– É um velho amigo meu que sofreu um atentado muito violento e quase morreu. Na verdade, todo mundo pensa que ele está morto e isso aconteceu mais na época do seu acidente. Ele pensou que você tinha morrido pois foi baleado logo depois. Era um policial muito especial, como um agente secreto da polícia federal, e vocês já se conheciam. Ele chama você de Jade, porque os seus olhos têm a cor de uma pedra de jade e ele costumava brincar com isso. Éramos muito amigos e saíamos juntos.
– Ele parece muito triste.
– No atentado, mataram a sua noiva.
– Que horror! – Ela emocionou-se. – Coitado dele.
Ficou calada por alguns segundos, pensando um pouco quando viu ambos retornando ao longe e disse para Marcelo, que bebericava do seu chope:
– Você notou como Ricardinho gostou dele? – Virou rosto para o marido. – Nem mesmo com você que é o pai ele procura colo e no seu amigo subiu direto nele. Que estranho, sem falar que até são parecidos, não acha.
Marcelo tomou um susto tão grande que até se engasgou
– Mas que bobagem – disse o marido, arquejante. – Ele é apenas mais loiro que eu e você sabe que a cor dos olhos e cabelos muda com o passar do tempo.
– Eu sei – respondeu Mariana. – Apenas achei curioso.
Os dois Ricardos aproximaram-se e sentaram-se na mesa, o menor com um sorvete enorme nas mãos e os olhos muito brilhantes. Ao ver o amigo ainda aflito, ele diz:
– Ei, cuidado com isso. – Sacudiu a cabeça. – Engasgar-se com bebidas alcoólicas é muito desagradável. Você está bem?
– Sim – respondeu Marcelo. – fui falar ao mesmo tempo que bebia e desceu pelo buraco errado.
Mariana não prestava atenção na conversa deles, mas não tirava os olhos do Ricardo, impressionada com ele e o seu jeito. O pequenino interrompe seus devaneios, dizendo:
– Mamãe, o tio Ricardo diz que tem uma piscina bem grandona lá na casa dele. Podemos ir um dia?
– Claro filho – respondeu com um sorriso –, mas a gente não se deve convidar para ir para à casa das outras pessoas. Elas é que nos convidam.
– Pois sintam-se convidados. Marcelo sabe onde é a minha casa. – Os olhos de ambos encontraram-se e pareciam querer conversar entre si. – Eu ficaria muito honrado com a vossa visita.
Aproveitando a deixa, ela disse:
– Ricardo, eu e meu marido vamos fazer um churrasco amanhã. Por que não vem almoçar conosco?
– Será um prazer desde que não incomode – respondeu, tentando sorrir. Depois continuou. – Desculpe o susto que lhe dei há pouco, mas pensei que você havia morrido em um acidente e ao vê-la bem tive um pequeno descontrole emocional. Eu mesmo fiquei fora mais de dois anos e foi um prazer ver você viva. Já sei que perdeu a memória. – Ricardo tinha dificuldade em manter aquela conversa e sentia-se muito sufocado, desejando sair dali o mais rápido possível antes que se descontrolasse pois estava prestes a desmoronar
– Acho melhor não falarmos disso – pediu o Marcelo. – Venha almoçar conosco. Tome meu cartão.
Escreveu o endereço no verso e Ricardo reconheceu imediatamente, pois tratava-se do apartamento da Mariana que ele conhecia muito bem, até bem demais.
– Amanhã conversaremos mais sobre a sua situação – disse Marcelo, estendendo a mão. – Eu vou providenciar aquela vigilância. Onze horas está bom?
– Obrigado, estarei lá às onze. Desculpem, mas preciso realmente de ir embora – afirmou, retribuindo o aperto de mão. – Ricardinho, não tome seu sorvete muito rápido para não dar dor de barriga, viu?
– Sim, tio, obrigado. – O pequeno abraçou Ricardo e beijou-o no rosto, coisa que Mariana jamais viu a criança fazer e deixou-a de queixo caído. – Até amanhã. Adorei o senhor.
Ricardo saiu como um sonâmbulo e não viu mais nada do que se passava à sua frente, como se estivesse em choque. Pagou o estacionamento e foi para o seu carro.
Em vez de ligar o motor e sair, ele apoiou as mãos na direção e cobriu novamente o rosto, tentando imaginar o que feria da sua vida agora. Obviamente ainda queria dar caça aos criminosos, mas também precisava de dar um jeito de recuperar a sua Jade e isso passaria a ser uma das suas diretivas primárias. Apesar de respeitar o amigo, concluiu que ele não jogou limpo e se ela voltasse a querê-lo, daria um jeito.
Finalmente ligou o motor e saiu, mas em vez de se dirigir para a sua casa, tomou a direção oposta, indo para o Recreio dos Bandeirantes.
Como o trânsito estava melhor, especialmente depois que passou o acesso à Linha Amarela, não teve grandes dificuldades para chegar ao seu objetivo que era uma casa simpática relativamente perto do mar, tanto que se ouvia o barulho das ondas e sentia-se o cheiro da maresia. Parou na soleira e tirou as sandálias, entrando sem bater nem falar nada e encontrando um japonês de meia idade sentado no meio da sala, de costas. Apesar de não ter feito barulho, ele começou a falar, em japonês:
– Sente-se, mas se desejar um puco de chá, há um bule na mesa que acabei de fazer.
Ricardo sentou-se ao lado do homem, cruzando as pernas, tal como ele, e manteve-se em silêncio, aguardando a hora adequada de falar.
Ao fim de algum tempo, o homem começou a falar calmamente e sempre no seu idioma nativo:
– Você fez muito barulho ao entrar e teria assustado um surdo, filho – disse. – Já se esqueceu do que lhe ensinei?
– Bem sei, mestre Ishiro. Não quis parecer sorrateiro, apenas isso.
– Ora, eu escutei o seu carro e reconheci o barulho do motor. Mesmo que me tentasse surpreender não conseguiria – afirmou. Abriu os olhos e virou o rosto para ricardo. – Seu coração bate descompassadamente e você está incapaz de se acalmar ou concentrar o que vai atrapalhar a minha meditação. Logo, isso só pode significar que descobriu alguma coisa nova, obviamente relacionada ao seu caso até porque não estava prevista a sua vinda aqui tão rápido. O que aconteceu?
A voz do japonês era suave e carinhosa, como um pai falando com um filho, preocupado com a aflição deste. Reticente, Ricardo respondeu:
– Mestre, as coisas mudaram um pouco. Ela está viva e eu tenho um filho.
Apanhado de surpresa, o japonês apenas disse:
– Meu rapaz, isso seria um motivo para você estar explodindo de alegria, mas não está. Então, por que não me explica direitinho o que aconteceu?
Ricardo começou a falar e Ishiro voltou a fechar os olhos, ouvindo com toda a atenção e sentindo a imensa dor do jovem. Optou por não dizer nada até que o seu pupilo terminasse. Nesse momento, ambos permaneceram em silêncio pois Ricardo sabia que Ishiro analisava todos os fatos. Não foi preciso aguardar muito quando ele disse:
– Filho, eu estou ficando velho e já me cansei de matar. Há vinte anos que venho eliminando criminosos, primeiro para o governo e depois por conta própria. Para um budista como eu, isso fere toda a essência do meu ser, mas faço questão de pegar estes que o magoaram tanto. Quando você nasceu eu jurei perante seu pai e sua mãe que iria protegê-lo e cuidar da sua vida até à minha morte. Entendo a dor por que passa, mas o que aconteceu, aconteceu, e o passado não pode ser mudado.
– Bem sei que o passado é imutável, mas há um futuro pela frente, mas que encerra tantas hipóteses diferentes que até me assusta. Antes, tudo o que eu desejava era matar os criminosos e depois partir, mas e agora?
– Agora, filho, você nem precisa de me perguntar, não concorda? – perguntou o mestre. – A questão no fundo, resume-se a uma única coisa: será que ela o vai desejar novamente. Afinal ela casou-se com outro homem. Por sinal, eu acho que esse seu amigo é podre.
– Ele teve boas intenções, mestre. Não o culpo de ser apaixonado por ela, que é demasiado especial.
– Você faria o que ele fez, Ricardo? – perguntou-lhe à queima-roupa. – Mesmo se fosse apaixonado pela noiva do outro?
Ricardo não respondeu e baixou a cabeça.
– Pelo seu silêncio e as batidas do seu coração, que mais parece um rufar de tambores, presumo que não. Não me espantaria nada se ele estivesse envolvido nisso. Siga o meu conselho e não lhe conte nada.
– Mestre, ele sempre nos ajudou a pegar criminosos. Tá certo que não jogou limpo com relação à minha Jade, mas não é o responsável pelo que me aconteceu.
– Estero que tenha razão, filho, porque eu não estou certo disso.
– Por que tem tanta certeza mestre?
– No que trabalhava quando tentaram matá-lo?
– Eu pesquisava quatro políticos, que suspeitava estarem envolvidos no crime organizado.
– Quem sabia do seu trabalho?
– O departamento, mas a única pessoa com quem eu me abria fora dele era o Marcelo. Só que ele é um combatente ferrenho da corrupção e passava-nos, secretamente, informações. Não creio que esteja envolvido nisso.
– Ele é um político, mestre na arte de esconder o verdadeiro rosto. Cuide-se, filho. Em breve, você voltará a ser um alvo; mas, desta vez, eles terão uma surpresa enorme.
Após conversar com o japonês por um par de horas, Ricardo foi para a sua casa. Já era muito tarde e precisava de dirigir uns bons quilômetros até São Conrado, onde vivia. Conduzia devagar e triste, cheio de dor no coração, pois as lembranças de tudo não lhe saiam da cabeça.
O destino, às vezes, era muito cruel, mas saiu do seu mestre com a decisão tomada: desmantelaria e exterminaria a gangue que quase o destruiu, mas também estava determinado a recuperar a sua mulher a qualquer preço, pois o Marcelo não jogou limpo. Contudo, a sua maior preocupação era que ela não sofresse.
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