Por trás de uma identidade

Craon estudava o arquivo do famoso Aleksander, conhecido como o contrabandista de Gaza. Ele liderava uma rede de comparsas e tinha, como associados, os bandidos já identificados pela Inteligência: Pedro "Boca Grande"; Sandro "Soco de Ferro"; Aldo "o sovina"; Bertazzo de Florença; Otmük "o turco"; Poky "o trapalhão"; Rodolfo "o belo"; e Crespim "o influente".

O restante das informações conseguidas por Arnaud, ele já sabia. Aleksander era filho adotivo do falecido Duque de Havrott. Pela lei e hierarquia da nobreza, o duque poderia ter reivindicado o trono, no lugar de Pierre. Não o fez, mas era um risco que Pierre não pretendia assumir.

E agora vinha a grande surpresa... Guilhem acreditava que seu pai e o duque fossem grandes amigos, mas seu pai considerava Havrott uma ameaça. Finalmente compreendeu por qual razão Pierre tinha tantas informações sobre ele, no arquivo real do palácio. Os dois tinham seus direitos, mas Pierre tinha menos direitos que Havrott.

O pai de Guilhem não estava disposto a permitir que ninguém se interpusesse entre ele e o trono. Já havia se livrado de alguns primos fracos e, definitivamente, não precisava de um meio-irmão duque para atrapalhá-lo.

Meio-irmão... Guilhem estava chocado. O bandido nos calabouços era filho adotivo do meio-irmão de seu pai. Ele continuou a leitura.

Pierre exilou o duque bem amado pelo povo, em Nantes. Fiel à Coroa, Havrott aceitou o exílio, mas a tristeza o dominou por muito tempo, considerando que seus anos de fidelidade não foram devidamente valorizados. Muito tempo depois, o duque vistoriava as vastas propriedades ao redor do castelo "Alvorada", quando seus soldados afugentaram um grupo de bandoleiros, vindos do cinturão sem lei. Entre eles, havia um garoto de dez anos chamado Aleksander, que seguia os bandoleiros para conseguir seus restos de comida.

Alexander foi capturado pelos homens do duque e levado para "Alvorada". Havrott afeiçoou-se ao garoto e o criou para ser o seu herdeiro, já que era viúvo e não tinha filhos. Ele o adotou legalmente e lhe proporcionou a mais fina educação. Aleksander recebeu os ensinamentos científicos, aprendeu línguas, estudou com os maiores sábios da corte.

Um dia, os partidários de Pierre, que desejavam encontrar um motivo para eliminar a ameaça representada por Havrott, souberam que ele tinha acolhido uma criança – uma mascote de contrabandistas. Inventaram que o arquiduque se aliou aos bandidos do cinturão sem lei, a fim de destituir Pierre. Tudo foi uma desculpa esfarrapada para prendê-lo nas masmorras de Aachen. Quando tentaram invadir o castelo, os homens de Havrott resistiram bravamente. Houve um longo cerco. Havrott providenciou a fuga dos seus protegidos por uma passagem secreta, mas morreu lutando contra os homens que vieram capturá-lo.

Morreu e virou um mártir, para desgosto de Pierre.

Craon ficou em dúvida se seu pai sabia ou não da conspiração para culpar o duque.

Aleksander foi levado para longe, reencontrou os contrabandistas... E no auge do desespero e do desejo de vingança, tornou-se um nome com reputação, no cinturão sem lei.

–––

Quando as portas da sala do trono se abriram, Craon observou o prisioneiro imundo, sendo trazido acorrentado por dois guardas e Arnaud, logo atrás. O rei fez um sinal para que eles se afastassem um pouco. Eles soltaram o preso e ele caiu, sem forças, sobre o tapete.

Por um longo momento, Craon não conseguiu ver-lhe o rosto. O homem estava com a cabeça baixa, como se não tivesse força no frágil pescoço para sustentar o peso de seu crânio. Os longos cabelos pretos desgrenhados e sebosos caíam sobre a testa, encobrindo sua expressão. De repente, ele levantou a cabeça e fitou o rei diretamente nos olhos.

Personalidade, firmeza, intransigência, orgulho... Craon deduziu seus predicados. Não seria fácil dobrar um homem que odeia a Coroa mais do que qualquer coisa. A não ser que o rei pudesse... Negociar. Se não pudesse, teria que jogar com suas fraquezas. Craon achava promissor o fato de os dois regularem em altura, compleição física, além dos olhos claros e cabelos pretos. Se o prisioneiro estivesse bem alimentado, seriam até um pouco parecidos. Alguém teria que conhecê-los muito bem para ver que o rei tinha olhos acinzentados e o contrabandista, olhos esverdeados.

–Fala-me sobre o cinturão sem lei – exigiu, de chofre.

Em resposta, o bandido cuspiu no chão. Tinha pouca saliva na boca encoberta por uma espessa barba, portanto, o gesto não pareceu tão dramático quanto pretendia.

Craon revirou os olhos. Decidira assumir o papel do rei frívolo e, assim, tornar-se-ia previsível aos olhos do prisioneiro – Tu estás cansando a minha beleza!

Craon fingiu não perceber que, por trás do prisioneiro, Arnaud estava sorrindo. O rei examinou as unhas, ostensivamente. Com a visão periférica, percebeu que Aleksander mordeu a isca, encarando-o com desprezo. Quase dava para ver as engrenagens mentais do bandido, funcionando. Ele parecia estar imaginando formas de tirar proveito de um rei frívolo e impressionável. Encontraria consolo em sua própria miséria por meio do deboche, talvez...

Pensando estar diante de um rei fraco, o preso confirmou a ideia comum que vigorava entre os criminosos do litoral. Ao menos, era a imagem nascida da experiência que tiveram com os reis anteriores – exceto Pierre. Mas este, eles não tiveram tempo de conhecer, muito menos enfrentar. Pierre lidava com Witikind e os saxões, no norte. Se tivesse tempo, seu pai teria acabado com eles.

Mas uma coisa, os bandidos deduziram corretamente: a nobreza não gostava de ver a pobreza. Só queria lucrar, explorar e ser servida. Mesmo o pai do pai de Guilhem não pensava diferente.A corte não deu bola, como deveria, ao que estava acontecendo no cinturão sem lei. Os bandidos tiveram tempo para se organizar e crescer a tal ponto que, hoje em dia, seria necessária uma intervenção maciça e estratégica para destruí-los.

– Tu irás me ensinar a agir como um bandido? – Guilhem imprimiu um tom convenientemente inseguro à pergunta.

Levantou-se do trono, bateu palminhas efeminadas e perambulou ao redor do trono.

– Ai, que excitante! Haverá de ser uma diversão exótica. – Ele lançou um olhar calculado para o preso. – O palácio é um tédio!

– Sereis descoberto a quilômetros das cidades sem lei – O preso riu com desprezo, revelando os dentes amarelados. – Teríeis que parecer um homem muito firme e destemido, de breves falas. As mãos não poderiam ser manicuradas, mas apresentar os calos da hombridade. O único sotaque que poderíeis ter é o do Leste, de onde vem o grosso do contrabando.

Ora, ora, ora...

– Ah, não deve ser tão difícil assim – o rei desmunhecou bastante.

O preso o depreciou: – Os piratas deverão vos estripar só para se divertirem. Eles têm olhos em todos os lugares. Em bordéis, tavernas, estalagens, cocheiras, hospedarias.... Alguém fresco como vós será notado, com certeza.

O sujeito lhe deu mais do que Craon esperava conseguir. Não precisava mais da encenação. Era hora do xeque-mate. Ele parou de fingir e lhe lançou um olhar mortal.

– Tu me dirás tudo o que preciso saber, do contrário, teus antigos parceiros de negócios saberão que tu cantaste como um canário. Ah, se resta alguma dúvida, saibas que mandarei espalhar a notícia. Tu ficarás marcado. Um alvo nas costas para ser abatido por onde quer que passes. Fraco como estás... Não darei um mês para te encontrarem e estriparem. – Ele encarou Arnaud e o incluiu na conversa. – Iremos te libertar e deixar que os bandidos se encarreguem de ti.

O homem apenas o encarou. Craon deixou o mais importante para o final: – Podes apostar que eles irão se vingar de ti em tua preciosa Adele.

O preso finalmente piscou, demonstrando medo e espanto.

– Está tudo na tua ficha, não sabias? Eu sei tudo sobre ti e as pessoas que te importam.

– Maldito. – O preso sibilou.

Inabalável, Guilhem pressionou. – Como vai ser? Tu me ensinas o que eu quero saber e, quando eu voltar, tu terás direito a um exílio decente... Com Adele, naturalmente.... Ou, eu descubro o que quero do jeito mais difícil... E tu retornas para a masmorra, a fim de nunca mais sair. Em seguida, mando avisar teus comparsas que tu os traíste... Escolha!

Alguns segundos se passaram, antes que o preso respondesse: – Eu vos ensinarei, demônio.

–––

Como ele previra, assim que entrou na sala de interrogatório, Yona correu em sua direção com os olhos esbugalhados.

Avraed se postou entre ela e a pessoa do rei. A mulher não desfrutava mais do privilégio de se aproximar do soma. Yona então apelou para sua principal arma: as lágrimas de uma mulher desamparada. Antes, Guilhem não foi capaz de resistir; talvez ela conseguisse reverter a situação.

O rei assistiu a performance, com pena. Não uma pena enganada, mas uma pena lúcida, deduzindo a trajetória da moça, como um mísero peão de um jogo maior.

– Se quiseres a minha ajuda, terás de dizer onde o necromante se encontra escondido; o que ele pretende; e como vos comuniqueis...

Yona ficou dividida entre o medo de seu amo e senhor, e o medo de permanecer trancafiada nos calabouços do rei. Ela abriu a boca para falar... De repente, o necromante se materializou diante de todos com suas feições horríveis – um rosto borrado em fumaça escura, com os olhos negros vívidos, írises vermelhas e cintilantes.

Ele se voltou para Yona, abriu a boca e sugou sua energia vital até que a bela jovem ficasse cinzenta, seca e se desintegrasse parcialmente, como um esqueleto deteriorado por milhares de anos.

Chocados, o rei e seus homens mal se deram conta de que o necromante flutuou para junto de Craon, recitando algumas palavras numa língua pagã hipnótica. Segurava nas mãos enevoadas, o que parecia ser uma das pedras da invocação. O rei sentiu um mal estar súbito e terrível. Ele começou a sufocar e, como consequência, a suar em profusão.

Noremheb abriu a boca escura e começou a sugar a energia vital do rei. Avraed tentou atacá-lo com a espada, mas o necromante era feito de fumaça, que ele cortou no ar sem maiores consequências... Com um gesto de descaso, Noremheb fez com que Avraed e seus homens voassem pela porta, para fora da sala. A porta bateu e a trava baixou, de modo que eles não conseguissem abrir.

Guilhem sentiu-se drenado e perdendo o controle do próprio corpo... Como se estivesse sendo expulso de sua pele. Ele olhou para si mesmo no reflexo da baixela de prata, onde as ratazanas comiam o seu lanche, tranquilamente. Eram as únicas que não se sentiam afetadas pela presença hostil e maligna.

Os olhos do rei estavam ficando pretos, com írises vermelhas e cintilantes iguais aos do ser maléfico. Ele compreendeu o que a criatura estava fazendo e começou a lutar.

O soma real e o império estavam em jogo. Se Noremheb controlasse o seu corpo, ele teria o controle do mundo. Ele então reagiu, com sua força interior. Os dois duelaram pelo corpo. Naquele momento, Avraed e os guardas conseguiram arrombar a porta, acompanhados de Bernardo. Ele retirou sua cruz de dentro do hábito de monge e fez resplandecer à luz da tocha do guarda. Essa luz chicoteou a fumaça, dissipando-a um pouco. Ele expôs o anel e recitou uma oração em latim.

Craon gritou em agonia e desespero. Seu corpo foi suspenso no ar. O necromante tentava reforçar seus tentáculos sobre o rei. O rosto de Guilhem ficou encoberto pela fumaça maligna. Com as forças emanadas das orações de Bernardo, Guilhem se sentiu mais forte. Ele abriu bem os olhos e encarou o Mal de frente.

Nesse instante crucial, Bernardo tirou uma das pedras da invocação de seu bolso e ergueu bem alto; para que a luz da tocha a atingisse em cheio. A pedra resplandesceu.

O necromante se sentiu enfraquecer e acabou largando o corpo do rei. A fumaça se dissipou em agonia, contorcendo-se e então, dissipando-se em todas as direções. Desapareceu da mesma maneira que surgiu. Guilhem caiu no chão, desmaiado.

–––

Bernardo estava pronto, quando o rei começou a bombardeá-lo com perguntas. Isso era bom, já que Vossa Majestade passou boa parte da tarde e da noite, mergulhado num estado de aparente coma. O fato de que agora exigia explicações sobre o que lhe aconteceu, demonstrava que já estava recuperando as forças.

O rei foi impressionante. Conseguiu algo que Bernardo nunca viu antes: resistir à investida de Noremheb, mesmo antes dele chegar com a cruz, o anel e a pedra da invocação.

Atento às dúvidas do rei, Bernardo concluiu a explicação:

–Sendo assim, Majestade... O necromante possui uma das pedras em seu poder. Isso o torna mais fraco. Mas, quando ele conseguir todas as pedras, dificilmente haverá força, na Terra, que o impeça. Ele quer um corpo hospedeiro capaz de mantê-lo permanentemente do lado da matéria. Ter o corpo do homem mais poderoso do mundo vai ser de grande utilidade para os planos dele. De posse do conjunto completo das pedras, resistir, como Vossa Senhoria fez, será virtualmente impossível. Temos que encontrar as outras pedras, antes dele.

– Mas elas não estão no Castelo du Saint-Martin, como imaginávamos.

– Não, não estão... Os súditos da Ordem de Noremheb também vasculharam o lugar. Nós recuperamos algumas numa gruta secreta, dentro da propriedade Saint-Martin. Suspeito que as três restantes estejam com... Bem, acho que Vossa Majestade irá encontrá-las com a pirata Juna.

Guilhem o encarou. – Tu achas que Juna as roubou dos Saint-Martin?

– Não, eu acho que Juna é uma Saint-Martin.

– Não digas sandices. Ela não pode... – De repente, os olhos do rei se arregalaram, antes de retomarem a expressão neutra de sempre.

– As duas são a mesma pessoa – Bernardo verbalizou sua conclusão.

– Tens certeza? – Guilhem sussurrou, embora em seu íntimo, soubesse a verdade.

– Certeza? Não, é um palpite.

O rei entendeu que este era mais um motivo para ele ir até o cinturão sem lei e apurar a realidade com os próprios olhos. Se fosse verdade que a pirata que ele tanto odiava, e a mulher que ele mais amou, fossem a mesma pessoa... Como resolver? Bem, ele não tinha tempo para pensar nisso agora. Precisava ser prático. Se as duas fossem a mesma pessoa, e ela estivesse com as outras pedras, Joana, ou Juna estava correndo risco de vida.

Ele precisava chegar até ela, antes do necromante.

– Nós tentamos localizar a pirata sem sucesso – informou Bernardo.

– Não se preocupe com isso, monge. Os bandidos do cinturão sem lei são hábeis em desaparecer, quando lhes convêm. Eu tenho um plano. Tua Ordem irá me ajudar, nesse sentido. Vou alcançar a pirata antes que ela desapareça outra vez.

Bernardo escutou atentamente, enquanto o rei explicava o plano.

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