Algumas palavras
Bellina, minha princesa, minha Bebezinha. Com você encerrou-se
uma era de felicidade. Esteja em
paz com seus irmãozinhos.
Você deixou um vazio no meu
coração, que nunca mais será preenchido.
Dedico esta obra aos leitores da minha revistinha underground - o fanzine Voyeur, lançado em 1994 e extinto em 2002. Um singelo agradecimento à persistência dos antigos fãs, que ao longo das décadas manifestaram o seu carinho por Juna - esta pirata cabeça dura, rebelde e independente - tão parecida com a sua criadora.
Para quem não sabe, há cerca de trinta anos, as pessoas que publicavam em fanzines, tinham a oportunidade de expressar ideias, valores, enfim, sua arte, de maneira diferente do padrão ditado por marcas dominantes nos mercados editoriais. Originalmente, os fanzines surgiram para homenagear algo ou alguém. Daí, o nome fanzine - de fan magazine, em inglês - ou seja, a revista feita pelo fã. Mas, com o tempo, essas publicações ganharam novos contornos no universo underground. Tornaram-se canais de escape artístico e jornalístico; veículos de contracultura; expressões circulantes de resistência criativa em relação aos padrões comerciais vigentes... Alguns deles eram mistos, pois apresentavam assuntos variados - este era o caso do Voyeur.
Nesse contexto, os fanzines podiam incluir, ou não, as histórias em quadrinhos - HQ's. O mundo das histórias em quadrinhos basicamente se dividia em HQ's periódicas e convencionais - de mercado - e HQ's alternativas, dependendo exclusivamente de seus criadores para existir. As convencionais eram mantidas por um poderoso segmento liderado por marcas como Disney, Hanna/Barbera, Marvel e DC, as quais contratavam ilustradores e roteiristas talentosos e controlavam os quadrinhos produzidos e lidos no mundo inteiro. Havia também os artistas renomados que publicavam tiras com teor político, num tom cotidiano, em jornais e revistas de grande circulação.
Os artistas e roteiristas que não se encaixassem nos padrões artísticos ditados/filtrados pelos grandes veículos; ou aqueles que só desejassem homenagear de maneira caseira, podiam buscar e/ou criar revistas alternativas para expressar os seus pontos de vista pessoais.
Na minha época, quando os fanzines brotavam de maneira expontânea, o mundo era físico. Não existiam criações por meio de app's, nem interação de qualquer ordem, pela internet. E mesmo assim, alguns fanzines obtinham um amplo alcance. O Voyeur, por exemplo, circulou de norte a sul deste vasto Brasilzão. Fosse navegando o rio Amazonas, na travessia do São Francisco, passando pelo Iguaçu, até o Guaíba... As aventuras de Juna, a pirata, e outros personagens em quadrinhos criados por mim e ilustrados por meus colegas, tiveram seu público cativo entre jovens e adultos de diferentes origens e lugares.
O Voyeur passava de mão em mão, era xerocado inúmeras vezes e também circulou por outros países, como Canadá, Estados Unidos, Argentina, Chile, Inglaterra, França, Portugal, Espanha, antiga Iuguslávia, e até Albânia... Sempre havia um exemplar na bolsa de algum brasileiro que viajasse pelo mundo, e quisesse matar as saudades das coisas não convencionais do Brasil. Fosse às margens do Sena, do Tâmisa, ou do Pó... Numa província pitoresca, ou exibido como orgulhoso representante brasileiro da Exposição Internacional de Fanzines do País Basco... Lá estava o meu fanzine, sendo lido por estudantes e jovens mochileiros. Ele foi aclamado como um dos mais regulares e longevos do seu tempo.
Um fanzine feito por uma garota... Uau!
Uma garota navegando por um mar de garotos. Como eu, só havia mais duas ou três em todo o Brasil. Pouquíssimas garotas se aventuravam como colaboradoras ou editoras de fanzine, por causa do preconceito, ou da hostilidade. Os garotos não queriam ceder espaço e faziam qualquer coisa - qualquer coisa mesmo! - para jogar as garotas para escanteio. A não ser que você fosse namorada de um deles. Daí era como se tivesse uma "permissão" especial.
Caso contrário, eles deixavam a garota mostrar a sua arte para as paredes.
Independente do foco ou do formato do fanzine, havia esse difícil elemento em comum no universo underground: as publicações consistiam no reduto quase exclusivo dos garotos. Um Clube do Bolinha. À propósito, quando menciono garotos, estou me referindo a um amplo grupo masculino - entre homens de vinte e poucos, trinta e poucos e até de sessenta e poucos anos. Como diz a letra da canção do Kid Abelha: "São sempre os mesmos sonhos".
Garotos são sempe garotos... Mas, para ser justa, nem todos se comportavam de maneira hostil, em relação às garotas. Mas os que se comportavam tinham verdadeiros ataques de "diva" ou de "pelanca", defendendo os fanzines como território livre da febre cor-de-rosa.
Por ser um "ambiente" majoritariamente dominado por eles, as personagens femininas que costumavam circular nos fanzines eram carregadas de estereótipos machistas. Era muito difícil escapar desse conceito visual, se você quisesse que os garotos participassem do seu projeto. Às vezes, eu tinha que assistir a Juna se tornar algo que eu não queria. Porque isso acontecia com ou sem a minha permissão. Os garotos tinham o seu território delimitado e as garotas deviam se contentar com o papel destinado a elas - isto é, de meras coadjuvantes. Acho que eu era uma espécie de anomalia teimosa. Um espinho no pé de alguns machistas inveterados. Lutei muito para fazer as coisas do meu jeito.
Assédios e intimidações aconteciam o tempo todo. Tenho algumas cartas que guardei ao longo dos anos, como prova. Esse tipo de ataque era considerado coisa normal, naqueles tempos, embora não devessem ser em nenhuma época! Graças a Deus, hoje em dia, as coisas são diferentes! E graças a Deus, eu tenho maturidade suficiente para identificar as dimensões do problema, o que não conseguia enxergar muito bem, na minha juventude.
Hoje, as mulheres possuem um espaço maior. Vejo uma consciência de diversidade e pluralidade que não existia antes. O trabalho artístico feminino é bem mais respeitado. Ainda está longe do ideal, mas é infinitamente melhor. Juna teria se dado bem, se tivesse sido lançada nos dias atuais. Acho que fui à frente de meu tempo, sobre diversos aspectos, quando esbocei a personalidade e a aparência dela; meio que na contramão da super-heroína submissa, seminua, montada em saltos-agulha, com as unhas dos pés compridas (argh!), fio-dental enfiado em um bundão, com peitões siliconados - praticamente agarrada ao pole dance. Acho que por ser o oposto disso, Juna acabou cainda na preferência de diferentes tipos de leitores, os quais, não se restringiam ao público masculino dos fanzines. Eu alcancei adolescentes de diferentes gêneros, alcancei estudantes universitários e garotas que queriam entrar para os fanzines, mas não tinham coragem.
No começo, eu não esperava que a personagem fizesse tanto sucesso assim. Quando me dei conta, estava passando as madrugadas em claro, lidando com roteiros de fanzineiros que queriam dar um visual mais erótico para a minha criação (dores de cabeça constantes); respondendo um monte de cartas que me eram enviadas todos os dias; selecionando e preparando matérias novas; recortando e colando os "bonecos" do fanzine; desenhando roteiros de HQ, escrevendo roteiros, ou fazendo posteres para ilustrá-los, quando não encontrava desenhistas disponíveis; também me via envelopando centenas de exemplares solicitados pelos assinantes, bem como os exemplares de cortesia, destinados aos colaboradores da edição...
Com a vista borrada, os joelhos e as mãos doendo ou as costas tortas, eu amanhecia (tinha que amanhecer, na verdade) pronta para a faculdade e para o trabalho. Coisas da juventude, que curava todas as dores e cansaços. Eu sempre me recuperava... Afinal, estou acostumada a trabalhar e estudar desde os treze anos de idade.
Enfim, era com satisfação que eu entrava numa agência dos Correios para despejar mais de duzentos envelopes com as edições do Voyeur, a cada sessenta dias (as edições eram bimestrais). Depois, eu ficava ansiosa aguardando as cartas com os comentários. Cada carta que chegava era um momento de expectativa e emoção.
Desenho de envelope feito pelo talentoso Helcio Rogério.
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É... bons tempos.
Eu também colocava o fanzine para vender em duas bancas, em consignação. No centro da cidade e na universidade, onde eu estudava. O Voyeur vendia mais do que "A Espada Selvagem de Conan", o bárbaro. Claro que existiam outras revistas da DC e da Marvel, mas eu só fiquei sabendo dessa informação peculiar, porque o representante da antiga Editora Abril aparecia para reclamar, doido da vida! O dono da banca me contou que o homem colocava todos os exemplares do Voyeur para trás das revistas do Conan, que tinham o mesmo formato A4 tijolão (isso ajudava a escondê-lo). O objetivo era fazer com que os leitores não encontrassem o Voyeur. Acontece que Juna, a pirata, era carismática e o pessoal revirava tudo para achá-la! Os exemplares do Voyeur vendiam rapidinho, ao passo que os do Conan ainda ficavam lá por um bom tempo.
Juna foi a rainha de um mundo criativo analógico... Grafite, guache, nanquim, tesoura, régua, cola, papel, máquina de datilografia, pena e caneta BIC preta eram as minhas ferramentas.
Hoje em dia, dizem por aí que se não está na internet, não existe ou nunca existiu. Pois posso assegurar que Juna existiu. Ainda existe. Eu só não tive paciência, nem tempo para fazer o que muitos criadores fazem (ou contratam alguém para fazer): um altar para a minha personagem na era digital. Não digitalizei todos os exemplares do Voyeur, não montei um site, não criei uma página para a Juna no Wikipédia, não abri conta no Facebook, no Youtube, ou no IG. Não bolei hastags criativas para levar as pessoas a conhecerem esse lado da história dos fanzines, que não foi contada por nenhum garoto... Não vendi produtos como canecas e camisetas com estampas da personagem, ou correntes com a cruz que ela usava.
Não faltaram sugestões, nesse sentido. Mas, para ser ao menos justa com a personagem, comigo mesma e com os fãs, fiz um esforço para preservar o mundo de Juna, transportando-a dos quadrinhos amadores analógicos para o mundo literário digital. Primeiro, escrevi a história não contada - a origem da personagem. Os leitores do Voyeur sempre me cobravam isso, mas eu não consegui fazer uma HQ completa, ou uma sequência de HQ's, a fim de atendê-los. Lancei apenas algumas partes. Mais de vinte e cinco anos depois, finalmente juntei tudo e desenvolvi o enredo completo, em formato literário. O resultado foi "As Pedras da Invocação".
Recebi feedbacks bem positivos de alguns fãs que ainda se lembravam da personagem. Isso, por si só, já foi gratificante.
Agora, perto de me aposentar da escrita, estou lançando a sequência. "O Livro das Aventuras" vem a ser a compilação de alguns roteiros em quadrinhos que salvei da poeira. Caso contrário, Juna e os personagens contidos em seu universo medieval teriam desaparecido nas brumas do tempo...
Eu precisei criar uma linha cronológica e dei coerência aos eventos, a fim de ligar esses roteiros, pois não tinham conexão alguma. Foi preciso para se encaixarem no formato literário/romance.
Claro que eu sonhava com um terceiro volume para a coleção. O "Livro das Revelações" seria o fechamento. Mas, não tenho mais tempo nem ânimo para isso. Estou exausta e ansiosa por me aposentar logo. Voltarei a ser apenas uma serial reader. Assim, na minha opinião, dá para adivinhar o destino da personagem pelas dicas que lancei estrategicamente neste segundo volume. Não precisa existir um terceiro. A imaginação de cada um é um poderoso condutor, não acham? Deixo para os leitores decidirem, conforme as dicas, como a história da Juna deve acabar.
Ah, caso as novas gerações a queiram conhecer - e ter um vislumbre descompromissado dos quadrinhos underground criados por uma garota do passado -, fiquem à vontade! Sejam todos bem-vindos!
Brasil, Santa Catarina, 09 de junho de 2024.
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