Quatro
"Como podemos escrever quando a tinta acaba?
Nosso amor é uma página em branco que você nunca escreveu".
— Melanie Martinez.
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Naquele momento em que ele me observava no chão — aonde ele mesmo havia me jogado. Pude ver um misto de arrependimento e raiva em seus olhos.
Eu queria gritar, chamá-lo de louco, talvez..., mas não, eu apenas fiquei calada. Lembro-me vagamente de que há algum tempo atrás, quando eu ainda frequentava a igreja, eu ouvi o pastor falando que o calado vence. E naquele momento mais do que nunca eu queria ter a certeza de que as palavras da bíblia eram verdadeiras.
Ele passou as mãos lentamente pelo rosto, bufou e então tornou a me encarar. Silêncio.
Ele estendeu a mão para me ajudar a me levantar, mas eu recusei o seu gesto.
Afirmei as minhas pernas sobre o chão e me levantei sozinha.
Nesse momento em que eu fiquei de pé em sua frente, o pequeno espaço do corredor que nos mantinha afastados havia sido reduzido.
Meu coração disparou louca e aceleradamente, as batidas tão fortes que quase chegavam a serem audíveis. E tão rápidas e fora de controle quanto um trem desgovernado.
Era quase como se o meu coração quisesse escapar dali, fugir do meu peito para qualquer outro lugar. E, talvez fosse por isso que o coitado ficava tentando sair pela a minha boca.
Victor não se movia, provavelmente estava perdido em seu próprio mundinho de pensamentos. Sua respiração estava ofegante e batia contra o meu rosto. — Finas camadas de ar quente que emitiam um som estranho ao saírem de seus pulmões, escapando por entre suas narinas e cortando o ar gélido do iceberg que havia se formado entre nós.
Quando sua atenção se voltou para mim, ainda havia espaço entre nós dois. Era apenas um passo de distância entre Victor e eu, mas no espaço que nos separava havia escuridão. E essa escuridão me assustava, pois era a mesma que se refletia no azul dos olhos dele.
Para mim ele é como a lua; sempre que eu vejo um de seus lados, outro está escondido.
— Julieta? — A voz de Sophie rompe o silêncio perturbador que havia se formado entre Victor e eu. Desvio os meus olhos dos de Victor, e os levo de encontro aos de Sophie.
— O que foi? — Pergunto. Minha voz sai arrastada. Sei que é estúpido, mas para mim naquele momento era quase como se lâminas cortassem a minha garganta a cada palavra que saia por minha boca.
— Eu Preciso do Teddy. — Ela diz. A voz embargada por sono. — Eu ouvi uns barulhos estranhos vindos do guarda-roupa e também por debaixo da cama. — Ela anda até a mim, pega o ursinho cor-de-rosa de minhas mãos e torna a falar. — Eu sei que já sou uma mocinha... — seu olhar se desvia do meu e vai de encontro ao de Victor. — Mas eu preciso dele para espantar os monstros. Ele é o meu herói.
— Tudo bem. — Digo num sussurro, forçando um sorriso para Sophie. — Se você quiser eu posso ficar com você até que você durma?! — sugiro.
Ela assente com a cabeça e me toma pelas mãos, me guiando até o seu quarto.
Eu a sigo pelo corredor escuro até a porta branca entreaberta do corredor. Antes de entrarmos em seu quarto, Sophie deseja boa noite para Victor, e nesse momento eu me viro para encará-lo. Ele não esboçava nenhuma emoção facial, apenas acenou com a cabeça para Sophie e depois desceu as escadas indo para o andar de baixo.
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Ao entrarmos no quarto, Sophie pediu para que eu me deitasse com ela em sua cama. E eu o fiz.
O quarto dela estava escuro, e por conta disso eu não podia ver nitidamente a decoração dele.
A única coisa que podia se ver nitidamente no quarto de Sophie mesmo que no escuro, eram uns enfeites de parede que estavam presos sobre todo o teto do quarto.
Eram diversos planetas, estrelas, naves-espaciais e até mesmo alguns et's. Eles brilhavam no escuro e era algo bonito de se ver.
Os brilhos dos enfeites eram quase iguais aos de um vagalume, porém, eram vagalumes que não piscavam, nem se apagavam, mas sim vagalumes com um brilho infinito!? — Quase como estrelas feitas de plástico. Isso, os enfeites de plástico lembravam muito as verdadeiras estrelas. Assim como elas, os enfeites de plástico do teto do quarto de Sophie também brilhavam em meio a escuridão.
Sinto o toque suave das pequenas mãos de Sophie me puxando para fora de meus devaneios.
— O que foi? — Pergunto ao virar meu rosto para encará-la.
— Você acredita em príncipes encantados? — Ela pergunta, a voz carregada de esperança.
— Sim. — Afirmo, embora meu subconsciente estivesse negando com a cabeça. Mando ele se calar, não posso estragar a infância de Sophie, assim como Cassandra estragou a minha.
— E você já encontrou o seu príncipe?
— Ainda não.
— Mas você já gostou de alguém? — Ela pergunta. Uma de suas mãos entrelaçada a minha, e a outra pressionando com força o ursinho cor-de-rosa contra o lado esquerdo do seu peito.
— Já... — Respondo. A imagem de Víctor surge em meus pensamentos. E de repente sinto-me desconfortável e dói, de repente tudo dói, mas eu não sei o porquê.
— E dói? — Ela pergunta. Seus olhos – dois pequenos pontos azuis brilhantes na escuridão –, fixos nos meus.
— Não, gostar não dói. — Afirmo. Mas a incerteza está presente em meu tom de voz.
— Tem certeza? — Seus olhos são penetrantes, é como se ela pudesse ver, ou simplesmente sentir toda a dor que seu irmão vem me causando durante todo esse tempo; a dor que eu sempre escondi de todos. Talvez eu esteja delirando ao pensar que uma simples criança consegue enxergá-la ou até mesmo senti-la.
— Tenho sim, gostar não dói. — Afirmo novamente. Porém sei que, se gostar não dói, será que eu realmente gosto dele? — Mas por que você está me perguntando isso, não acha que está muito pequena pra gostar de alguém, não!? — Um sorriso amarelo surge em minha face, porém sei que a escuridão de seu quarto não permitirá que ela o veja.
— É que um dia eu ouvi os meus pais discutindo. — Ela diz, fazendo uma breve pausa ao fechar os seus olhos com força, quase como se quisesse se lembrar de algo. — O papai gritou com a mamãe e disse que a odeia, porque dói gostar dela. — Ela diz. Um silêncio se forma entre nós duas, tão intenso que eu até posso sentir o ar arranhando os meus pulmões, e ouvir tanto as batidas do coraçãozinho dela, quanto as do meu.
— Sophie. — A chamo. Como resposta ela vira seu rosto para mim, mantendo seus olhos fixos nos meus. — Gostar não dói, apenas porque gostar qualquer um pode gostar. — Digo. — O que dói é amar. Amar dói, cansa e nos dilacera por dentro, amar dói porque não é qualquer um que consegue amar.
— Por que não é qualquer um que consegue amar? — Ela pergunta. Suas Sobrancelhas finas se arqueando em confusão. Sua expressão facial é engraçada.
— É porquê... — Procuro as palavras certas, mas elas simplesmente evaporam ao chegarem em minha garganta. — Amar é complicado demais para que eu consiga te explicar. Você infelizmente terá de crescer e tirar as suas próprias conclusões sobre o amor. — Digo, forçando um sorriso para Sophie ao que o meu subconsciente me alerta para não dizer nada que possa traumatiza-la. Como por exemplo, que o amor é um mar de desilusões e decepções. — Mas sabe, eu vou te contar um segredo: Embora o amor seja o sentimento mais puro e verdadeiro que as pessoas possam sentir, ele também pode ser o mais doloroso. O amor precisa ser alimentado, caso contrário ele morre. Tudo o que não gera felicidade, degenera, e acaba na impermanência. Não dura o pra sempre, nem o nunca mais. — Digo. O silêncio dela me dá a incerteza de que ela esteja prestando atenção nas minhas palavras, então eu me viro para encará-la. Seus pequenos e brilhantes olhos azuis ainda se mantinham fixos em mim, então eu torno a falar. — E sempre junto com o amor vem as desilusões e as decepções, o que é inevitável já que ninguém é perfeito e as pessoas são cheias de defeitos. As vezes o amor pode durar uma vida inteira, outras vezes ele pode simplesmente decidir ir embora. Ora porque morreu, ora porque decidiu que mesmo que ele seja o seu amor, você não é o dele. Talvez o amor volte para você mais tarde, talvez mais velho, com o coração mais manso, mais tranquilo e pronto para você. Talvez ele volte em outra pessoa, quem sabe em um desconhecido que acabou esbarrando com você no metrô. Ou no seu novo trabalho. E também pode acontecer de o amor nunca voltar. E você terá de lidar com isso sozinha. A minha mãe costumava dizer que todos temos que aprender a nos despedir com um sorriso no rosto sempre que alguém vai embora de nossas vidas. Talvez assim seja menos doloroso. Afinal, amar é assim; pode doer, machucar e muitas vezes te fazer querer chorar. Mais uma certeza é de que, mesmo que um novo amor nunca chegue, contanto que você tenha amor próprio, por amor você pode até sofrer, mas de amor você nunca irá morrer.
— Então eu acho que o papai ama a mamãe. — Ela murmura mais para si mesma. — Julieta! — Ela me chama. Teve algo em sua voz que me fez virar para encará-la.
— O que foi Sophie?
— Se amar é tão doloroso assim, eu acho que nunca quero amar alguém. — Ela diz pensativa.
— O problema não estar em amar, pois só dói quando se ama a pessoa errada. — Digo. — Até porque o que dói não é amar, o que dói é amar e não ser correspondido. — Concluo forçando um sorriso para Sophie, ao que uma lágrima teimosa escorre pelos meus olhos.
— E como eu saberei se a pessoa é a certa para que eu a ame? — pergunta Sophie, suas sobrancelhas finas se arqueando em confusão novamente. Isso me faz querer rir, pois ela fica engraçada assim.
— Eu não sei, o meu pai costumava dizer que a gente não escolhe quem vai amar, que isso simplesmente acontece. Que amar é como andar de bicicleta: No começo, você é inexperiente e acaba caindo diversas vezes, ou seja, amando a pessoa errada e com isso se machucando. Mas depois que você pega o jeito, você se vicia na sensação boa de pedalar livremente por aí, ou seja, você se vicia em amar e a se sentir amado. E quanto a pessoa certa, quando for a hora certa, ela irá entrar na sua vida, e o seu coração saberá que ela é a pessoa certa.
— Você já amou alguém?
— Depende.
— Como assim?
— Bom, é que há vários tipos diferentes de amor.
— Vários?
— Sim. —Afirmo. — Bom, há como por exemplo o amor de melhores amigos, que pode ser tão forte, puro e verdadeiro quanto o amor de irmãos.
— Eu não tenho um melhor amigo. — Ela diz baixinho. sei que é uma confissão, mas sua voz soa tão baixo que é como se ela não quisesse ser ouvida.
— Por que não? — pergunto, minha voz tão baixa quanto a dela. Era quase como se estivéssemos trocando segredos, e talvez nós realmente estivéssemos.
—O papai disse para mim não me apegar a ninguém da escola e nem da creche. — Ela diz. Posso ver pelo brilho de seus olhos marejados que as lágrimas não demorariam a chegar.
— Por que? — pergunto mais uma vez, minha voz ainda soando baixo, quase como um sussurro.
— Ele diz que "todo mundo pode trair todo mundo", e que se eu não esperar muito das pessoas, elas nunca irão me magoar e me decepcionar. E que se eu nunca me apegar a ninguém, nunca irei sofrer quando alguém decidir sair da minha vida.
Eu entendo o fato de o xerife querer ensinar a sua filha de que sem expectativas, não há decepções. Mas eu só não entendi o porquê da citação de "A rainha vermelha". E nem o porquê de ele querer a privar de ter amigos.
Sophie se mexeu na cama virando-se para o canto da parede, e isso fez com que eu despertasse dos meus devaneios.
De princípio penso que ela se virou para poder chorar, mas ao olhar para ela, pude ver que ela estava com os olhos fechados apertando com força o ursinho cor-de-rosa contra o peito, dando-lhe um verdadeiro abraço de urso.
O cansaço que não estava presente há alguns minutos atrás, finalmente havia dado o ar da graça e a vencido. E comigo não estava sendo diferente, comecei a sentir os meus olhos ficarem cada vez mais pesados e... Eu acabei perdendo a batalha contra o sono, uma batalha que eu nem havia iniciado, mas já havia perdido.
••
O som do meu celular tocando me faz despertar. Me puxando para fora do meu mundinho de sonhos particular, e me jogando de volta no mundo real.
Tiro o celular do bolso traseiro da minha calça e atendo a ligação antes que o celular volte a tocar e acorde Sophie.
— Aonde você está, vadiazinha? — Pergunta Cassandra do outro lado da linha. Sua voz soa calma, o que provavelmente se dê ao fato de ela estar completamente bêbada e, por azar meu, se ela realmente estiver bêbada eu estou ferrada.
— Eu... hum... — Procuro uma boa desculpa para justificar o porquê de eu não estar em casa, mas as palavras simplesmente evaporam antes mesmo de se formarem.
— Venha para casa agora sua inútil irresponsável. Não sei se você se lembra, mas desde que o traste do seu pai morreu sou eu quem responde legalmente por você. Ou seja, se algo acontecer com você, vadiazinha, sou eu quem se dá mal.
— Cassandra eu só... — Ela me interrompe.
— Você só nada, venha para casa agora. — Ela grita. Posso ouvi-la bufar do outro lado da linha antes de desligar na minha cara.
Ouvi um som oco de algo se chocando contra o chão e isso fez com que eu me virasse para ver de onde o som havia vindo.
Olhei para a porta e está estava entreaberta. A luz que vinha do corredor rompia a escuridão do quarto de Sophie ao adentrar no mesmo por uma pequena brecha na porta, dando-me uma visão nítida da silhueta de alguém sentado no chão ao lado da porta.
Forçando um pouco a minha visão, pude avistar dois pontos azuis brilhantes em meio a escuridão que os cercava.
— Victor... — As palavras saem arrastadas. Seu nome soa tão baixo quanto um sussurro ao sair por minha boca, levando consigo o ar que eu nem havia percebido que estava prendendo.
Ele murmura algo inaudível, provavelmente xingando a si mesmo por ter feito tal barulho.
Mas a ausência de som em suas palavras não me impedia de ver o movimento de abre e fecha que sua boca fazia.
— Eu... — Sua voz falha. Em um gesto rápido, ele apoia uma das mãos na parede e afirma ambas as pernas sobre o chão, se levantando e saindo logo em seguida do quarto de Sophie.
Me levanto da cama e o sigo até o corredor.
Ao passar pela porta do quarto de Sophie, pude ver Victor descendo as pressas a escada e indo para o andar debaixo.
— Víctor! — Eu o chamo, desta vez um pouco mais alto. Ele para na metade da escada e se vira para me encarar. Seus olhos me analisam de cima a baixo antes de ele começar a balançar a cabeça em negação e virar-se novamente, me dando as costas e seguindo escada abaixo sem olhar uma segunda vez para trás.
Ao chegar no último degrau ele acaba tropeçando nos próprios pés e caí.
— Aí! — Ele exclama. Sinto o meu coração se afundar no peito, e de repente dói. Dói vê-lo no chão, dói vê-lo se machucando, dói apenas pensar que ele possa estar sentindo dor.
Contínua.
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