CAPÍTULO ÚNICO

         Jonas desembarcou em Puerto Montt, uma cidade portuária na região dos lagos do Chile, conhecida como porta de entrada para as montanhas dos Andes e os fiordes da Patagônia. Pegou sua mochila e foi direto para uma pousada conhecida como ponto de saída para andarilhos e mochileiros.

Olhou ao redor e viu as montanhas ao longe, o céu azul e todo aquele clima seco. Sentia a mágica, sorrindo na expectativa de se aventurar por terras totalmente desconhecidas por ele.

Chegou na pousada, pedindo um quarto. Ao subir as escadas, notou os vários quadros das montanhas e rios que haviam na região. Isto fez com ele sorrisse, já planejando sua primeira caminhada.

Ao anoitecer, organizou sua mochila e após um banho relaxante, deitou e algo chamou sua atenção. Na mesinha ao lado da cama, um telefone vermelho. Mas não estes modernos que se vê em hotéis e sim, um convencional, com gancho e disco, no lugar de teclas. Jonas se sentiu viajando no tempo, já que não havia mais aparelhos como aquele em pleno funcionamento. Sorriu ao pensar nisto e acabou adormecendo em seguida. Queria acordar o mais cedo possível e pegar a estrada.

Antes mesmo do Sol surgir na linha do horizonte, Jonas já estava preparado. Desceu, indo em direção ao buffet e enquanto tomava seu café e observava os hóspedes que iam e vinham.

Pegou seu bloco de notas e registrou sua chegada e as primeiras impressões da pousada simples, mas impecável. Foi quando um senhor sentado mais próximo da imensa janela que dava para a calçada, chamou sua atenção. O homem sorriu e cumprimentou-o discretamente, mas Jonas queria conversar com alguém do local, para se informar dos melhores lugares que ele poderia ir e fotografar.

Se levantou, indo até o senhor idoso e perguntou se podia sentar com ele. Este assentiu com outro sorriso largo.

— Olá? Desculpe-me chegar assim, do nada. Mas não pude deixar de notar que o senhor estava tão bem à vontade e vim perguntar se o senhor mora há muito tempo em Puerto Montt e se poderia me indicar os melhores lugares para fotografar e registrar a história local.

— Eu nasci nas montanhas dos Andes e moro há muitos anos aqui.

Jonas sorriu, estendendo a mão para o velho:

— Me chamo Jonas!

— Meu nome é Castilho, mas pode me chamar de Perro.

— Prazer, Perro. O que pode me contar sobre a trilha que dá para o rio?

— O senhor quer saber a história que contam por aí? A verdadeira?

Jonas ficou intrigado, pois não sabia nenhuma das duas, mas a curiosidade tomou conta dele e não titubeou em se ajeitar na cadeira, pegar o bloco e colocar sobre a mesa.

— A verdadeira, por gentileza!

— És repórter? – Falou desconfiado.

— Não, não. Sou só curioso mesmo. Na verdade, resolvi fugir do meu escritório e viver um pouco.

O homem de sorriso largo e pele caramelada, se jogou pra trás e disse, cruzando os braços no peito magro:

— Então, peça mais uma xícara de chá pra mim e café pra você! A história é longa!

Jonas o olhou intrigado e pediu mais do que estavam tomando para a jovem que servia as mesas.

— Estou pronto!

— Então, vou contar uma história, que ouvi de meus avós, que ouviram de seus avós.

Jonas se empertigou todo, para ouvir a história do homem.

"Há muitos anos, quando tudo era dominado pela natureza e os homens viviam em harmonia, existia um lugar além das montanhas, onde o homem não se arriscava a ir. Um povo arisco e diferente. Lá era frio, onde até a alma congelava, mas este povo era acostumado e viviam isolados do mundo e não desciam da montanha.

Mas, como és sabedor, o ser humano é curioso demais e não tardou em surgir um jovem conhecido por sua bravura e teimosia. Este jovem era filho do líder da tribo que morava perto do mar e sempre ouvia os anciãos avisarem para jamais ir para além das montanhas, porque lá o gelo cortava a alma ao meio.

Mas ele não ouviu os conselhos e se preparou para viajar até lá. Seria uma viagem longa e exaustiva, mas ele não iria desistir tão fácil. Pegou alguns cortes de carne, água, sua lança e para sua proteção, a pele de um animal, nas costas e pés. Verificou tudo e antes que o sol viesse dar as boas-vindas a aldeia, ele já estava ao pé da grande montanha, onde o seu topo era tão branco quanto as nuvens no céu.

O jovem bravo se chamava Manke, que significa Condor, iniciou a subida com maestria e isto levou muitas luas e já não aguentava mais, então resolveu que iria dar uma trégua numa fenda na montanha e descansar. Assim que entrou na pequena caverna, que mais parecia uma rachadura na gigantesca muralha, tirou a proteção de pele e estendeu-a no chão gelado, fez uma pequena fogueira e mastigou algumas folhas com a carne seca e se ajeitou para dormir. Sabia que no dia seguinte, teria uma longa viagem e adormeceu rapidamente.

Não passou muito tempo, quando de repente, Manke sentiu alguém o sacudir pelo ombro, fazendo com que desse um salto para trás, pegando sua lança. Foi quando percebeu um menino à sua frente, de pele alva, assim como os cabelos e de grandes olhos azuis claros.

-Quem é você? – Disse, se encolhendo contra a parede fria e úmida

O menino o encarava, com os olhos curiosos e um leve sorriso tímido. Ficou assim por um tempo, até que saiu para a entrada da pequena caverna, apontando para ele. Fazia gesto com a mão, convidando-o para segui-lo sem balbuciar uma única palavra, sumindo da visão do jovem guerreiro.

- Pelos deuses, o que é este menino? – Pensou.

Levantou-se, juntou suas coisas e saiu em seguida, atrás do menino albino. Ao sair da caverna, olhou para os dois lados, confuso. Não fazia ideia de como um garoto tão pequeno conseguia chegar até ele, sendo um local tão íngreme e frio, já que vestia apenas uma túnica leve sobre os ombros.

Foi quando algo mais adiante, acima da sua cabeça, entre as rochas e fendas, chamou sua atenção e conseguiu vislumbrar o pequeno subindo com maestria a imensa montanha. Manke olhou a cena e resolveu seguir e pisar nas mesmas fendas, mas não com a facilidade e rapidez com que o pequeno fazia.

Em algumas horas e muitos arranhões depois, visualizou a imagem dele novamente, acenando numa entrada na montanha, como a anterior, porém escondida por uma rocha gigante, dando a ilusão de não existir para quem olhava ao longe. Manke olhou, tentando se equilibrar e entrou, com a lança nas mãos, pronto para se defender.

Mas quando seus olhos foram se acostumando com a pouca luz e pôde ver o que havia diante dos olhos, deixou a lança cair e deu vários passos para trás, sem acreditar no que seus olhos lhe mostravam.

Uma abertura em forma de arco dentro da caverna, onde dava para uma floresta. Manke foi se aproximando devagar, sem entender se aquilo era realmente verdade ou estava sonhando.

- Mas...como? ... – Falou em voz alta

Foi quando o menino sorriu para ele, pegando em sua mão e guiando-o até o interior da floresta. Manke olhava para todos os lados e percebeu as variadas flores e plantas exóticas, pássaros e borboletas. Um lugar totalmente diferente de tudo que havia visto até hoje.

Manke estava atônito e admirado ao mesmo tempo, com toda a beleza que ia se descortinando diante dele. O menino ia guiando-o pela mão, através daquela exuberância chegando a um povoado pequeno, próximo a uma cachoeira de águas límpidas, onde árvores frutíferas ofereciam seus galhos para algumas crianças brincarem. A algazarra era contagiante, fazendo o jovem guerreiro sorrir sem saber ao certo o porquê. Elas eram albinas, como o pequeno garoto, que segurava sua mão.

Foi quando surgiu um velho com uma túnica azul e com a pele tão branca quanto a neve e olhos num azul tão intenso, que se dava a impressão de estar vendo um pedaço do céu nas órbitas. Ele se aproximou dos dois com um sorriso de boas-vindas. Segurou a outra mão de Manke, convidando-o para se juntar ao grupo que saboreava frutas num cesto grande, sobre uma pedra lapidada para servir de base para a cesta de frutas.

- Para onde está me levando? Quem são vocês?

O jovem, se esquivou, amedrontado. Ele não fazia ideia do que estava acontecendo e quem era aquela gente estranha. Seu instinto de guerreiro estava em alerta, mas algo dentro dele dizia para confiar.

"Será um sonho?" – Ele pensou.

O ancião, que tinha uma estatura bem menor que o guerreiro, parecia mais uma criança do que um adulto. Ele sorria apenas, convidando-o para se sentar com os demais, oferecendo sua mão, de maneira pacífica e assim fez Manke, apesar de muito desconfiado com tudo aquilo.

E quando já estava sentado com os demais, em dúvida se comia as frutas e bebia da água fresca que ofereciam à ele, surgiu uma mulher jovem, que também usava uma túnica sobre o corpo esguio, porém o dela, tinha um tom mostarda e deixava seus ombros quase à mostra. Sua pele era branca como os demais e seus cabelos eram negros e compridos até a metade das costas, fazendo os olhos azuis se destacarem ainda mais. Ela veio até ele e sorriu, mostrando os dentes perfeitos, sentado ao seu lado e pegando uma das frutas.

- Seja bem-vindo, homem do fogo. És o primeiro que se arriscou em desbravar a muralha que nos protege do mundo externo. O que desejas, aqui? – Disse, oferecendo o cesto com frutas variadas.

Ele ficou admirado com a voz suave dela, aceitando pegar uma. Ele sentia fome, mesmo que soubesse que não deveria confiar.

- Eu precisava descobrir o que havia deste lado. Meu povo jamais conseguiu e os que tentaram, nunca conseguiram seguir adiante.

- Estamos aqui há mais tempo que seus ancestrais e se os deuses permitiram que aqui chegasse, deve ser porque és especial. Venha comigo. Quero que se alimente e aproveite para descansar.

- Mas eu não posso me demorar. Não conheço vocês e ninguém há de me obrigar!

- Não estamos obrigando-o, Manke. Quero que descanse, para retornar ao seu povo, com alguns presentes nossos.

- Não lhe faremos mal algum. Mas pedimos que nunca mais retorne aqui. Está bem?

- Está bem. Preciso descansar por um breve tempo e voltarei para meu povo.

Ela sorriu, convidando-o para segui-la até algumas redes, onde outros já estavam se embalando ao som das risadas infantis e o som da cachoeira.

Manke ficou por dois dias e se sentiu inclinado a ficar com eles. Tudo ali era de uma serenidade desconhecida dele e as pessoas, eram gentis e sempre o ensinavam tudo que sabiam. Mas sempre vinha lembranças da família e sabia que precisava retornar.

Aprendeu com o povo do gelo como pescar usando redes, plantar sementes e usar ervas para chás. Com as mulheres, pôde observar a tecelagem e bordado coloridos com tinturas extraídas de flores e folhas e muita mais.

Certa manhã, a bela mulher veio até ele e o avisou que estava na hora dele partir e retornar para seu povo e levar com ele as sementes de muitas árvores frutíferas, além de ervas de chás.

- Leve consigo, além destes saquinhos, tudo que aprendera aqui e ensine ao seu povo os segredos das plantas. Mostre a eles que podem aperfeiçoar suas roupas e moradia.

- Mas eu gostaria de ficar, majestade. Me acostumei com vocês! – Era assim que ele começou a tratá-la.

- Seu povo precisa de você, Manke. Tens consigo a evolução da sua espécie. Volte e ensine tudo que aqui aprendeu, guerreiro.

- Sentirei saudades...

- Não sinta. Terá um pedaço de nós em seu coração e outro pedaço em suas terras. Você será o primeiro do seu povo, que saberá dar valor a natureza, meu jovem.

E assim, ele pensou com calma e sabia que ela tinha razão. Já sentia saudade de casa, apesar de ter se acostumado com o povo branco. Ele sabia que precisava voltar e, decidido, foi se despedir de todos com o mesmo carinho que foi recebido.

O pequeno Livin, o menino que o levou até lá, pegou em sua mão, como da primeira vez e juntos fizeram o caminho, agora, de maneira inversa. Assim que Manke chegou à entrada da pequena rachadura, tudo parecia ter voltado no tempo. Estava exatamente onde o pequeno o encontrou. Sozinho, deitado no mesmo lugar.

- Então... Foi tudo um sonho louco? – Esfregou os olhos, confuso.

Ergueu o corpo com dificuldade, ainda tonto com o sonho que teve. Foi até a abertura e viu que estava pra vir uma nevasca em direção a montanha. Rapidamente recolheu suas coisas e se preparou para descer da mesma forma que subiu.

Levou mais tempo desta vez, já que a temperatura baixa castigava seu corpo. Assim que chegou ao pé da grande montanha, que mais parecia uma imensa muralha com seu topo congelado, olhou para o alto e ainda viu as nuvens carregadas de chuva.

- Preciso me apressar. O tempo parece que vai piorar!

Deu meia volta em direção a trilha que o levaria até a tribo e, por algum momento teve a sensação de estar sendo seguido, mas ao verificar ao seu redor, percebeu que era apenas sua imaginação.

- Que loucura... – Murmurou.

Uma hora depois, estava chegando, sendo recepcionado pelos amigos, querendo saber tudo que ele vira lá de cima e Manke apenas disse que não conseguiu chegar ao topo e que era humanamente impossível.Não queria falar sobre o sonho e também lembrou-se da promessa.

"Sonho ou não, dei minha palavra" – Refletiu.

- O que fez você voltar tão rápido, Manke?

- Rápido? – Enrugou a testa, sem compreender. - Eu devo ter levado umas dez luas!

Os amigos se entreolharam confusos, achando que ele deveria ter batido a cabeça entre as rochas ou algo assim. Entre risadas, disseram ao guerreiro:

- Não, Manke! Você levou uma lua, apenas! – Riu.

O jovem guerreiro, sem saber o que dizer, baixou os olhos na tentativa de compreender o que acontecera.

- Então, foi apenas um sonho realmente! Mas foi tudo tão real... – Pensou em voz alta

Após se reunir com os mais velhos da aldeia e contar que nada encontrou além de uma pequena rachadura na parede e um sonho muito estranho, foi para sua ruca¹, retirar as vestes e pendurar suas armas de caça e sua bolsa de couro. Foi quando notou que havia um volume estranho dentro da bolsa, atiçando a curiosidade do jovem Manke. Pegou-a de volta, enfiou a mão no interior dela e para sua surpresa, havia vários saquinhos de linho com sementes variadas e raízes de ervas de chá.

- Eu estive lá! Eu estive lá! – Sorriu, num contentamento genuíno.

Foi naquele momento que o jovem Manke mudaria o destino do seu povo. Os Mapuche². Para sempre."

Jonas olhava encantado para o narrador, sem piscar uma só vez.

— E esta é a história toda ! – Disse o velho.

— E esta é a versão verdadeira? – Jonas ainda estava impactado com a história.

O velho apenas sorriu, enigmático para ele. Jonas encerrou aquela história, fechando o seu bloco, com um sorriso sincero.

— Mas, afinal. Qual era o nome deste povo?

— Ah! Se chamavam o povo Luno! – Bebeu o que restava em sua xícara.

Jonas aproveitou e se levantou. Mas antes de ir embora, se virou na direção do velho e fez uma última pergunta:

— Mas... De onde eles vieram? Como o senhor conhecia essa lenda?

— Ah! Isso, meu rapaz, já é uma outra lenda! E eu não posso lhe contar. – Deu uma risada, piscando o olho.

— Está certo. Fico muito feliz em ter ouvido a lenda do povo Mapuche. Agradeço imensamente pela experiência, senhor Perro.

Assim que se viu sozinho, o velho retirou do bolso, um saquinho de linho branco, sorrindo. Guardou de volta, saindo do bar, com passos leves, sem pressa alguma de chegar até a rua.

Nota do autor:

ruca¹: Casa, morada.

Mapuche²: Povo antigo do Chile.

(2683 Palavras)

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top