7 - Legado

Presente para vocês: mais um capítulo! Fiquem atentos que o capítulo 6 foi postado pela manhã ♥

Vinte anos atrás


Pela janela, o menino de quatro anos enxergava o fogo que consumia toda a glória da cidadela erelin, conhecida como Cidadela Prateada.

— Temos que ir! — Ikaris escutou seu pai repetir pela oitava vez.

— Ainda não empacotamos todos os livros. Eles não podem ficar para trás. Você sabe da importância contida em cada página.

— Os soldados tomaram a cidade! Depois de cinco anos de guerra, eles finalmente conseguiram!

— Como?!

— As defesas caíram agora ao anoitecer. Algo na ligação sagrada do nosso povo com o céu foi quebrado. Não há magia para combater os exércitos. Estão dizendo que isso tem a ver com Astrid.

— Astrid? — sua mãe ofegou, em choque. — Mas, se Astrid está...

Golpes foram desferidos contra a porta da casa.

Ikaris gritou, assustado, correndo até a mãe.

Ela o tomou nos braços e o colocou embaixo de um móvel pesado.

— Não saía daí.

A porta foi escancarada com um chute pesado.

De seu esconderijo, Ikaris enxergou os soldados que invadiram sua casa, usando uniformes com o brasão da serpente alada de Arustar.

— Entreguem-nos os livros, erelins!

Lado a lado, seus pais sacaram as espadas.

Fogo se espalhava por todos os lados.

— Então vai ser assim? — O soldado cuspiu e fitou os demais. — Peguem todos os livros que vocês encontrarem! Eu cuidarei desses dois!

O soldado brandiu a espada; sangue se derramou para todos os lados.

Ikaris quis gritar pelos pais enquanto seus corpos tombavam no chão.

Quis empunhar a espada que mal podia suportar o peso e avançar sobre cada soldado de Arustar.

Entre o lampejo e o fogo, algo tremulou. O menino piscou. Era como se fosse um par de olhos que entremeava tons pretos e dourados. Que dizia para ele não se mexer.

Aquilo veio e se foi em uma batida de coração.

Mas algo dentro dele se agarrou ao pedido.

E Ikaris se encolheu, mantendo-se escondido enquanto seus pais e a cidade ruíam sob o poderia do exército das Cinco Alianças.


****************


Atualmente


Em um reflexo feroz do corpo, a mão de Ikaris foi para baixo do travesseiro, puxando a faca escondida enquanto seus olhos se abriam abruptamente. Seu coração batia muito rápido, a boca estava seca e o estômago revirado por conta de todos os alimentos ingeridos.

A faca pairou na escuridão.

Levou alguns instantes para Ikaris perceber que não estava nas montanhas, e sim em um quarto do castelo de seus inimigos, sendo assolado pelo reverberar das lembranças que jamais poderia apagar.

Um maldito pesadelo com o passado.

Irritado, ele se levantou da cama, a respiração alta e ofegante, a faca ainda em uma de suas mãos.

Achou que o duque Willelm, que havia sido designado como seu companheiro de quarto durante o torneio, acordaria com o barulho. Mas ele sequer se mexeu na cama, a boca entreaberta, ressonando baixinho.

Ikaris andou pela escuridão, apoiando a testa na parede gelada, deixando que o eco dos gritos desesperados de sua família deslizasse como espectros acorrentados nas sombras.

Comprimiu o punho, querendo esmurrar a parede.

Os livros...

Havia falhas em sua memória, borrões apagados pelo medo de uma criança que testemunhara a morte dos pais.

Mas ele se lembrava de que sua casa, na extinta cidadela erelin, era repleta de livros antigos; volumes grossos de páginas amareladas que haviam sido confiscados durante a guerra.

Quase podia sentir a mão de sua mãe acariciando seu rosto, o sussurro das palavras perdidas no tempo.

"Seu pai e eu somos guardiões das histórias de nosso povo. Posso não ser uma erelin, posso ser apenas uma humana, mas me considero parte desta cidade desde que me casei com seu pai. Desde que meu sangue e o dele te geraram. Um dia, você herdará cada livro desta biblioteca. Um dia, conhecerá cada linha do legado erelin".

A voz dela foi como um bálsamo em sua fúria, em sua dor.

Ikaris baixou o punho, abrindo os dedos, soltando o ar.

Olhou de canto para cama onde o duque dormia, refletindo sobre seu primeiro dia no palácio.

Após o banquete de recepção e das horas que se decorreram das explicações de como o torneio funcionaria nos próximos dias, todo o grupo de competidores havia sido levado para um longo, entediante e demorado tour pelo castelo. E não tinham conhecido nem metade da propriedade.

Seus olhos baixaram para a bandagem que cobria o braço ferido.

Não havia visto aquela jovem criada outra vez, mas, para sua própria irritação, se pegou procurando por ela toda vez que um criado aparecia.

Maressa.

Apertou os olhos, empurrando a imagem dos lábios dela murmurando seu nome para longe.

Fitou a cama.

Não sentia a mínima vontade de dormir.

E as lembranças trazidas pelo pesadelo não permitiriam que seu corpo repousasse.

Com um gosto amargo na boca, Ikaris deixou o quarto. Não sabia se tinha permissão para vagar pelo castelo durante as horas mais densas da noite, mas pouco se importava.

Se Iohanna o tivesse autorizado, cumpriria a missão naquela noite e desapareceria feito uma sombra na escuridão.

Mas as ordens dela haviam sido claras.

A visão tinha mostrado o caminho.

O desejo das estrelas era que o presságio se cumprisse na noite do aniversário da princesa.

E ele não a desobedeceria.

Nem à sua rainha, nem as estrelas.

Só que isso não significava que ficaria parado, fingindo ser um nobre como os outros. Muito menos quando estava dentro do território dos inimigos que haviam tomado tudo do seu povo.

Inclusive os estimados livros de seus pais.

De súbito, uma ideia lhe ocorreu.

Se suas lembranças estivessem corretas, os soldados de Arustar haviam confiscado toda a biblioteca de seus pais. Talvez os volumes houvessem sido lançados no fogo. Ou talvez tivessem sido guardados. E se estivessem ali, no castelo, em algum lugar da biblioteca real?

Ikaris trincou o maxilar.

Se estivessem ali, daria um jeito de levá-los consigo quando partisse.

Aquele era o legado do seu povo.

Quando Ikaris percebeu, suas pernas se moviam sozinhas, guiando-o pelos corredores escuros e desertos do castelo. Uma tocha ou outra tremulava na parede, rasgando as sombras e o silêncio.

Descobriria onde a biblioteca ficava.

E tentaria descobrir se os livros da cidadela erelin estavam ali.

Com passos firmes e decididos, ele continuou avançando, mantendo os sentidos atentos a qualquer som. A faca permanecia em sua mão, abaixada ao lado do corpo, pronta para ser usada ao menor sinal de perigo.

Bom, não achava que o lobo misterioso apareceria ali dentro.

Mas sempre havia guardas treinados para reconhecerem erelins.

E Ikaris não poderia hesitar caso precisasse eliminá-los.

Enquanto seguia pelo corredor, em busca da biblioteca, captou algo em sua audição apurada.

Passos.

Ele prendeu o ar e ergueu a faca.

Alguém vinha em sua direção.

Podia ver uma luz trêmula contra as paredes.

Os passos ficaram mais próximos.

Merda.

Se fosse flagrado, poderia levantar suspeitas.

E não estava disposto a estragar os planos de Iohanna.

Mas também não estava disposto a recuar. Queria ir até a biblioteca enquanto o sol dormia.

Sua mente traçou um plano rápido.

Golpearia o soldado e o deixaria desacordado antes que ele tivesse a chance de ver o seu rosto.

Pelos seus pais.

Feito o sopro do vento, Ikaris agiu e se moveu rápido, avançando sobre o inimigo, pronto para derrubá-lo. Seu corpo pressionou o corpo da outra pessoa contra a parede. Um candelabro com três velas rolou pelo chão. Um ofego feminino e assustado ecoou em seus ouvidos.

Ele piscou.

E, na escuridão entrecortadas pelas velas caídas, seus olhos se encontraram com o azul dos olhos da jovem criada que o ajudara mais cedo.

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