4 - Asas quebradas

— Alteza? — Um toque gentil em seu ombro a despertou.

Sonolenta, Maressa abriu os olhos, recebendo o brilho reluzente da alvorada no azul das íris. Não havia mais sombras e estrelas. Virou a cabeça ao sentir uma fisgada incômoda no pescoço. Nina estava em pé diante dela, com os cabelos trançados e as mãos entrelaçadas em frente ao corpo.

— Alteza, você passou a noite no parapeito da janela?

Maressa esfregou a nuca.

— Creio que sim.

— Isso não é bom para a sua saúde, Alteza. — Havia uma preocupação sincera e uma advertência singela na voz de Nina. — Seu banho quente já está preparado.

— Obrigada, Nina. — Ela voltou o olhar para o céu que esmaecia e arqueou as sobrancelhas. — Você me acordou mais cedo do que o normal.

— Porque hoje é o dia.

Os lábios de Maressa se entreabriram.

— O dia... O dia! — Ela ofegou, como se as palavras de Nina a houvessem sacudido para que terminasse de acordar, e saltou do parapeito da janela. — Hoje é o dia em que os pretendentes chegam ao castelo! Hoje os portões serão abertos!

— Todos no castelo estão eufóricos. É a primeira vez que receberemos tanta gente de fora em anos. A guarda real está se preparando para...

O coração de Maressa acelerou em empolgação e ansiedade.

— Tenho que me preparar! Tenho que trocar essas roupas e...

Ela deu um passo rápido em direção ao quarto de banho; uma onda de tontura e vertigem se abateu sobre seu corpo, fazendo seus joelhos fraquejarem momentaneamente.

— Alteza. — As mãos de Nina a ampararam. — Trouxe o seu tônico. Está ali. Tome-o e a ajudarei a chegar até o quarto de banho.

Frustrada demais para refutá-la, Maressa apanhou o tônico, tomou-o e deixou que Nina segurasse seu braço e a ajudasse a se despir e entrar na banheira.

O contato da água com sua pele fez com que um suspiro com gosto de fracasso e angústia escapassem de sua boca.

— Quando os pretendentes descobrirem que a princesa de Arustar é uma peça quebrada, irão desistir da competição.

— Qualquer um seria tolo se a rejeitasse.

— Será? — Ela deixou que seus dedos acariciassem a água. — Não vou passar de um fardo para aquele que se casar comigo. Ou pior: irão me ver como uma ponte para se alcançar o trono de Arustar. Se eu sucumbir à doença, a coroa passaria para meu marido.

— Não diga isso. Tenho certeza de que, um dia, os curandeiros conseguirão desenvolver um tônico infalível. — Nina derramou uma mistura de lavanda sobre os cabelos claros de Maressa. — Você será completamente curada e não precisará mais se preocupar com isso.

Batalhando contra as lágrimas que queriam encher seus olhos, Maressa prendeu e o ar e afundou na água morna.

Era injusto que todos os anos de sua vida tivessem sido limitados pelas condições frágeis de sua saúde. Mal podia sair do castelo. Conhecer outros reinos para além dos limites de Arustar era um sonho distante. Só podia viajar com os olhos, debruçada na janela nas noites silenciosas, perdida na imensidão do céu e das estrelas.

Porque todos os seus passos eram vigiados e controlados.

Porque todos temiam que ela se quebrasse subitamente, feito um passarinho com as asas destroçadas.

Mas queria acreditar que ainda tinha um pouco de controle sobre a própria vida. Pelo menos, em relação ao casamento, ao torneio e às tradições de Arustar.

E era naquela oportunidade que havia criado para si mesma que ela se agarraria.

Sentindo-se um pouco melhor, Maressa deixou que seu corpo voltasse à superfície. Puxou o ar e se apoiou na borda da banheira.

— E as minhas roupas?

Nina apontou para um vestido simples pendurado no cabide. Maressa observou a peça; era de um azul pálido, um modelo sem grandes cortes ou enfeites, normalmente usado pelas criadas do castelo.

— Alteza, você tem certeza disto? Quer mesmo seguir com o plano?

Ela voltou a fitar Nina.

— Até mesmo minha mãe, a inabalável e irredutível rainha, não conseguiu refutar meu plano, pois ele atende a todas as exigências dela. Afinal, usei as velhas tradições a meu favor.

— Eu sei. Mas você acha que isso será seguro para nós duas?

— Minha mãe deixará guardas preparados o tempo todo.

— Espero que ninguém entregue sua identidade para os participantes. — Com cuidado, Nina enxaguou os cabelos dela mais uma vez.

— Graças às tradições rudimentares de Arustar, poucos conhecem meu rosto. — Maressa revirou os olhos. — E os que conhecem, como você, são de confiança. Além disso, minha mãe punirá cruelmente qualquer um que saiba a verdade, venda informações e estrague nossos planos.

— Sim, mas... Não me sinto bem em ficar parada, sem trabalhar.

Maressa abriu um sorriso gentil para ela.

— Você estará trabalhando, mas sem executar as funções de criada. Estará usando vestidos lindos, penteados elegantes e acenando de longe para um bando de homens. Estará ajudando a princesa de Arustar a escolher aquele com quem ela ficará casada pelo resto da vida.

— Só você mesmo para criar um plano desses nessa sua cabecinha engenhosa — Nina riu baixo. — Sabe que pode contar comigo.

— Obrigada. E fique tranquila, Nina. Enquanto o torneio durar, eu irei me passar por uma criada, responsável por recepcionar e cuidar dos nossos convidados. Irei conversar, interagir e conhecer cada um deles sem que eles saibam quem sou. E você se passará por mim nos dias em que eu teria que assistir às competições. Você estará escoltada e protegida.

— E quando contaremos a verdade para todos?

— Na noite do baile do meu aniversário. — Maressa se levantou da banheira, a água escorrendo por seu corpo enquanto Nina a envolvia com uma toalha. — Até lá, ninguém poderá saber sobre nossa troca de papéis.


****************


Ao atravessar as enormes muralhas de alabastros que cercavam a cidadela de Arustar, Ikaris abaixou o capuz. O sol brilhava nas primeiras horas da manhã, e ele sabia que um forasteiro encapuzado poderia atrair atenções indesejadas. Precisava passar despercebido até encontrar a comitiva que seguia para os portões do castelo.

Cavalgando em um ritmo moderado, ele cruzou as ruas de pedra. Bandeiras com o brasão de Arustar — uma serpente dourada — ondulavam nos muros altos. O ar carregava um leve odor de temperos.

Avançou pelo distrito comercial e, antes que pudesse seguir em frente, seus olhos se cravaram nas estátuas que decoravam a praça central.

O coração de Ikaris acelerou.

As estátuas representavam o momento em que um valente soldado de Arustar golpeava um erelin e cortava suas asas.

Um gosto amargo e raivoso se espalhou na boca dele.

Desde a derrota na guerra, muitos do seu povo haviam tido as asas cortadas como uma punição simbólica antes de serem lançados para o exílio. Com a quebra das ligações sagradas com as estrelas e o cessar da magia, elas não se regeneravam.

E as crianças erelins que nasceram durante e depois da guerra vinham ao mundo com as costas lisas e não conseguiam desenvolver as asas.

— Olá! Olá!

Assim como muitos, Ikaris nascera durante a guerra, sem asas ou qualquer sinal de que poderia desenvolvê-las, como os outros mestiços.

— Ei! Olá!

A contragosto, Ikaris desviou a atenção das estátuas e olhou para o lado. Um rapaz de cabelos claros, montado em um belo alazão de pelagem amarronzada e vestindo roupas que mostravam que ele era um jovem nobre, se aproximou.

— Olá! — ele repetiu outra vez, alargando o sorriso. — Você está indo até os portões do castelo, certo? Posso seguir ao seu lado? Estou um pouco perdido.

Ikaris murmurou algo que poderia ser um cumprimento. Esperava que aquilo mostrasse para o rapaz que ele não estava procurando por companhia ou conversa.

— Sou o duque Willelm, das terras de Norima. Você também está aqui para a competição pela mão da princesa?

Ikaris respondeu com um movimento de cabeça.

— Finalmente o castelo de Arustar abrirá os portões para nobres como nós. Estou ansioso pelo torneio — Willelm prosseguiu. — E estou ansioso para conhecer a princesa. Creio que tenho grandes chances de vencer, com todo o respeito às suas habilidades. Mas fui treinado pelos melhores durante toda a minha vida.

Ah, Ikaris queria fazê-lo calar a boca.

Mas ainda estava cedo demais para criar indisposições, entrar em conflitos e chamar atenção para si.

— Como será que a princesa de Arustar é? Alta? Baixa? Magra? Morena? Ruiva? Loira? — o tal Willelm continuou falando. — Não sabemos nem o primeiro nome dela! Só a conhecemos pelos títulos de "princesa de Arustar", por causa do reino e "princesa Sternenlicht", por ser o sobrenome da família real. Mas seu primeiro nome só pode ser apresentado aos de fora quando ela completar vinte e um anos! As tradições daqui soam arcaicas até mesmo para um nobre de família tradicional como eu.

Ikaris o ignorou e seguiu em frente, montado no cavalo.

Foi inevitável encarar as estátuas outra vez.

Quase podia ouvir os gritos do erelin ali representado, quase podia sentir as asas que nunca havia tido sendo cortadas.

Ikaris segurou as rédeas com força.

A vontade de derramar o sangue dos nobres de Arustar pulsava por suas veias, por seus ossos, por sua alma.

Mas ele não puxou o arco ou sacou a espada.

Pois havia um propósito maior que o levara até ali.

— Senhor?

Ele se voltou para o guarda que o chamava.

— Preciso que me mostre sua carta para que eu possa autorizar sua entrada nos terrenos do castelo.

Com as feições impassíveis e uma calma fria, sem descer do cavalo, Ikaris retirou a carta de apresentação do bolso e a estendeu para o guarda. Ao seu lado, Willelm fez o mesmo.

Observou-o violar o lacre do papel e ler atentamente cada palavra, como se caçasse por uma falha ou um motivo para mandá-lo embora.

Ikaris não hesitou, não duvidou por um momento sequer.

Antes das guerras, antes do exílio, Darlan havia sido um mestre artista que se destacava entre os erelins. E era um dos poucos em quem Ikaris confiava. Por isso, tinha certeza absoluta de que a carta falsa que o apresentava como um lorde e um competidor do torneio, junto do brasão impecável desenhado pelo erelin, seriam suficientes para garantir sua entrada no palácio real.

O guarda inspirou e expirou, devolvendo-lhe a carta.

— Seja bem-vindo à Arustar, Lorde Ashera. O senhor será escoltado por aquela comitiva à esquerda.

Ikaris se limitou a um aceno de cabeça, guardou a carta no bolso outra vez e guiou o cavalo para a direção apontada pelo guarda. Não demorou para que Willelm se colocasse ao seu lado outra vez.

— Pronto para conhecer o castelo, participar do torneio e batalhar pela mão da princesa, Lorde Ashera?

Ele deixou que seus pensamentos vagassem até a estátua do erelin com as asas cortadas.

Sim.

Estava pronto.

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