4 - Infância
Bárbara
Eu tinha uns doze anos de idade quando fui acusada de algo que não fiz e descobri minha fúria interna. Meu meio irmão teve a audácia de dizer que eu havia batido nele quando minha mãe e meu padrasto estavam fora. Ele ainda mostrou um machucado no braço.
— Isso é mentira, mãe! — falei, em vão, ela não só deixou aquele maldito do Ramalho me bater como fiquei de castigo por uma semana servindo a todos e sem poder sair de casa.
Eu odiava o meu irmão. Meu pai se mandou quando minha mãe estava grávida de mim. Eu a ouvia xingá-lo quase sempre.
— Ele foi só o desgraçado que me engravidou, nunca o amei. — disse, durante uma discussão com meu padrasto, aquele outro maldito.
Ramalho era um escroto, e minha mãe não tinha um pingo de amor próprio. Quando ele bateu nela pela primeira vez, eu fui para cima dele e desmaiei. Não me lembro de nada depois disso, apenas apaguei. Acordei na minha cama um tempo depois, totalmente desorientada. Lembro de ter sonhado várias coisas confusas, havia cavalos e girafas. Então pode ter sido delírio.
— Filha? — minha mãe chamou ao entrar no quarto. — Tá melhor?
— O que aconteceu, mãe? — tentei tocar em seu rosto machucado, mas ela se esquivou.
— Tô bem, filha! Você me defendeu do Ramalho, bateu nele. Não faça mais isso, ele é grande e pode machucar você. — disse, de forma carinhosa, coisa que quase nunca era.
Eu não me lembrava de nada daquilo, por isso não acreditei muito no que ela dizia, mas o desgraçado entrou no quarto com o pescoço enfaixado. Eis o motivo do carinho da minha mãe comigo: medo de que eu denunciasse aquele miserável.
As lembranças da minha infância, de quando e como tudo começou, flutuavam pela minha mente enquanto a água descia pelo meu corpo, tão quente que eu sentia arder as minhas costas. Apesar de tudo, a minha mãe era a pessoa que eu mais amava na vida, mas isso parecia não valer nada para ela, já que foi capaz de fazer o que fez para defender aquele desgraçado, me obrigando a fazer o que fiz para me defender daquele maldito.
Perto da minha casa tinha um prédio todo feio, pinchado, janelas quebradas e com marcas de infiltrações. Aquilo dificultava mais ainda o aluguel dos apartamentos e só dava dor de cabeça para o dono do imóvel. Até que o filho dele assumiu a parada e resolveu fazer uma reforma. Não tirou infiltrações, apenas pegou uma tinta em promoção, raspou as paredes de qualquer jeito e pintou, depois arrumou as janelas. Eu observei todo aquele processo e fiquei me perguntando se alguém acreditaria que aquilo era um bom lugar para morar, mas deu certo, o novo proprietário não só alugou todos os apartamentos como conseguiu um bom valor por cada um deles.
Aquilo foi uma grande metáfora para a minha própria vida, pois quem vê cara não vê o ódio que cada um traz dentro de si e eu era prova viva daquela afirmação. Eu sou uma janela quebrada, mas de um prédio muito forte. Sou subestimada! Naquela época, comecei a brigar para não sofrer maus tratos até fora de casa. As marcas das pancadas daquele maldito ainda doíam quando decidi que não aceitaria aquilo mais.
Voltei para o presente e lembrei da minha maldita, Ingrid. Minha mãe sempre foi dependente do Ramalho, era fraca e carente demais para ficar um dia sozinha, mas não era o meu caso. Eu só não fugia dali porque estava nas mãos daquela louca.
Toquei na minha cabeça, no local onde atingi a janela, e senti um galo.
— Você me paga, sua desgraçada! Paga sim. Todos pagam. — Engoli saliva, mas queria engolir as lágrimas que insistiam em sair.
Quase engasguei de susto quando aquela infeliz esmurrou a porta do banheiro.
— Vai acabar toda a água do mundo num banho só? — indagou, aos berros, com a voz rouca de tanto gritar.
Desliguei o chuveiro, respirei fundo e peguei uma toalha. Abri a porta e a vi ali, na frente, me impedindo de passar.
— O que foi? Chorou por quê? — perguntou, sarcástica, e tentou tocar na minha cabeça.
— Não me toca! — Empurrei sua mão e passei por ela, que quis berrar de novo.
— Olha como fala comigo, pirralha!
— Não chega perto de mim, Ingrid! — pedi e sem deixar que visse meu corpo coloquei uma roupa, rapidamente.
Não tinha me secado, e a umidade do meu corpo fez a blusa grudar e não vestir direito. Mais uma vez fui levada de volta à minha infância.
Eu adorava tomar banho de chuva, mas minha mãe nunca deixava, sempre falava que eu ia ficar doente. Quando chovia, eu corria para a rua enquanto ela estava no trabalho; para não ficar doente, eu me secava rapidamente e tentava entrar na roupa seca, que sempre grudava no meu corpo e não vestia facilmente.
Num desses dias de chuva, o trabalho da minha foi atingido por uma enchente e ela chegou mais cedo em casa. Me flagrou na rua. Apanhei tanto que ainda tenho a cicatriz na coxa esquerda.
— Já falei para não tomar banho de chuva. Na próxima vez eu te coloco pra ser levada pela enchente. — ameaçou e por algumas vezes eu desejei mesmo ser levada por uma enchente para bem longe de lá.
Quando eu cheguei à adolescência sentia vontade de matar pessoas. Era uma vontade tão grande que eu evitava ficar perto de gente. Tinha um cachorro, o Lecter, era meu melhor amigo. Se ele fosse o único ser vivo que existisse, além de mim, eu seria a pessoa mais feliz do universo.
Eu o achei na rua, todo machucado. Alguém havia batido muito nele. Claro que minha mãe não me deixou ficar com ele, mas insisti e cuidei dele escondida. Quando ela descobriu, me obrigou a dormir no quintal junto com ele, que chorava muito. Quando ficou um pouco maiorzinho, parou de fazer tanto barulho e ajudava até a afastar bandidos da casa.
— Não crio ele pra ser o cão de guarda de vocês! — falei, quando o meu padrasto disse que ele ficaria na coleira e aprenderia a ser feroz para proteger a casa, o que implicava em maltratá-lo para que ficasse agressivo.
Não deixei, claro. Apanhei, claro. Mas meu padrasto não foi homem suficiente para me enfrentar.
Quando dei meu primeiro beijo em um garoto, foi horrível, ele enfiou a língua na minha boca e senti muito nojo, quase vomitei nele.
Não foi ali que soube sobre minha sexualidade, mas quando senti desejo por uma menina da minha rua. Ela era toda na dela, não falava com ninguém, mas era linda. Não me apaixonei, só senti uma vontade imensa de beijar aquela boca e saber o que ela escondia por baixo daquela roupa comprida.
— Está de amizade com a filha da crente, é? — Minha mãe perguntou, debochando.
Kesia era estudiosa e muito caladona. Me aproximei dela e nos tornamos amigas. Um dia tomei coragem e a beijei. Ela se assustou, mas depois me beijou também. Tinha o cabelo grande, não era cacheado nem liso, era meio ondulado, sei lá.
Minha primeira experiência sexual com uma mulher foi com a Kesia, que disse que me amava logo na primeira vez. Aquilo me fez ficar com medo e eu quis terminar, mas não precisei. O pai dela descobriu que estávamos juntas e se mudaram de lá. Eu achei melhor, assim eu não a faria sofrer. Ela queria ir embora comigo e eu não estava nem um pouco a fim de fazer aquilo.
Lembro que chorei muito quando vi o Lecter morto, eu tinha 15 anos de idade. Desde então não tive mais cachorro e nem confiei em ninguém.
O pior momento da minha vida, depois de ver Lecter morto, foi quando o maldito do meu padrasto, bêbado, assumiu que o havia matado envenenado. Naquele momento nasci outra vez e passei a maquinar a morte do desgraçado.
— Ela não fez nada comigo, e nem vai fazer, logo ela já pode ser presa. Se chegar perto de mim, eu chamo a polícia. — Ouvi o miserável falando com minha mãe, que sequer o repreendeu ao saber do assassinato do Lecter.
Passei duas semanas alimentando a minha fúria e planejando a minha vingança.
— Vai ficar sem falar comigo? — Ingrid, mais uma vez berrando, me tirou do meu devaneio.
— Me deixa, Ingrid. Só quero ficar em paz. — respondi, tomando um gole do café, forte e sem açúcar.
— Se quisesse paz não teria me enfrentado. — desafiou, enquanto comia um pedaço grande do bolo que eu havia feito mais cedo.
Eu era a faz-tudo da casa, arrumava, cozinhava; eu faria tudo aquilo tranquilamente se ela me deixasse em paz.
Quando conheci Ingrid, seis meses antes, ela era mais magra. Não sei se por preguiça de fazer comida ou simplesmente porque gostava de si. Talvez a primeira opção fosse a mais viável. O fato é que ela engordara quinze quilos depois que cheguei e de forma bem irresponsável. Não tem problema ser gorda, pois tem gente que vive uma vida saudável, o que não era o caso da Ingrid, ela me obrigava a fazer de tudo e comia como se não houvesse amanhã; não tinha hora nem o quê, ela comia desesperadamente.
Eu cozinhava sempre, raramente pedíamos algo fora. E ela era viciada na minha panqueca. Vê-la inchando igual à massa fermentada me enchia de alegria. Se eu tivesse sorte, ela teria alguma doença ou enfartaria de tanto sedentarismo e quando eu conseguisse o que queria, ela apenas morreria sozinha naquela casa, gritando com a mãe, como sempre fez.
Não era raro me ver sair de noite para comprar ingredientes para as malditas panquecas, que eu não aguentava nem sentir o cheiro mais.
— Por que não come comigo?
— Já comi. Obrigada! — mentia, sempre.
Eu fazia umas cinco, e ela comia todas, tomava dois comprimidos, ambos tarja preta, e dormia, quando eu tinha sorte.
Eu já conhecia todos os funcionários dos mercados, pois sempre comprava produtos aos poucos. Se eu precisasse de 200g de queijo para fazer algo, eu saía e comprava apenas os 200g de queijo.
— Por que não fazer as compras do mês, Ingrid? — perguntei, cansada, pois já havia ido ao mercado três vezes naquele dia. Isso ocorreu no terceiro mês que eu estava na casa dela.
— Pra você ir embora com o dinheiro das compras na primeira oportunidade? — retrucou, sorrindo.
— Não vou fazer isso e você sabe muito bem o porquê.
— É, eu sei, mas é tão bom te fazer de menino-de-recado... — disse, se divertindo, eu respondi com um sorriso.
Se um sorriso fosse capaz de matar alguém, ela teria morrido ali sentada naquela cadeira.
Toquei mais uma vez no Lúcifer, meu galo, eu gosto de colocar nomes nas coisas, faz com que eu me sinta mais humana e me deixa mais meiga.
Cortina fechada porque a rainha da chatice estava dormindo. Consegui ver a janela da vizinha, ainda fechada também. Fiquei observando, como sempre fazia, e me afastei involuntariamente quando a vi sair na varanda e olhar diretamente para mim, embora eu soubesse que não havia possibilidade de me ver. Fiquei ali, observando-a.
É linda demais!
Ela ficou um tempo olhando para minha janela e depois foi embora, eu a acompanhei com os olhos através do vidro quebrado, logo sumiu.
Arrumei a casa, fiz almoço e mais uma vez planejei sair dali. Peguei um livro e o li quase todo antes que Ingrid acordasse.
Estava lendo na varanda quando o gato da vizinha gata miou e pulou perto de mim.
— E aí, Luís! — disse e acariciei o queixo dele, que miou manhoso.
Carregava uma plaquinha com o nome Luís Otávio no pescoço. Tomei um susto quando ele pulou naquela varanda pela primeira vez. Estava cheia de raiva, mas ao vê-lo voltar para casa, notei que sua dona era a perfeição em pessoa. Desde então, meu hobby preferido passou a ser observá-la. Todo dia ele me visitava e sempre ia embora quando Ingrid acordava.
Naquele dia, ela acordou quase onze da manhã, parecia um presidiário. Tomou café e duas horas depois almoçou, o suficiente para alimentar dois peões de obra.
— Está lendo o quê?
— Romance, tua mãe me emprestou. — respondi, seca, quando peguei o livro novamente.
— Preciso que leia um livro pra mim.
— Quê?
— Eu estou com a consulta de vista atrasada e não posso ler, então já que gosta tanto de ler, vem ler pra mim.
Puta que pariu, viu?
O livro era sobre direito. Eu só gostaria de saber quando eu havia morrido porque aquilo era um inferno. Li em voz alta até cansar, pois ela ficava me infernizando para não parar e para repetir quando não entendia. Chegava a repetir três vezes a mesma coisa e às vezes tinha que explicar.
— Você era advogada, Ingrid. Não faz sentido ter esquecido até o significado das coisas.
— Só leia, não discuta!
Li por mais um tempo até que ela ouviu a voz da mãe conversando com alguém e desceu para o apartamento dela.
Passou exatos trinta minutos lá. Só deu tempo de vasculhar o armário que eu já podia mexer e algumas gavetas. A infeliz escondia a chave da outra parte. Olhei nas gavetas da mesinha de cabeceira, mas sem sucesso.
Quando anoiteceu, ela já começou a procurar algo no quarto de cima. Ingrid era completamente louca. Eu fiquei vendo noticiário na TV.
— Quero panqueca de morango! — disse ao entrar de surpresa, como se quisesse flagrar algo. — Meia hora, hein?
Ela calculou e me passou o dinheiro contado. Saí para comprar o morango, estávamos sem farinha também.
Cheguei, e as meninas já me cumprimentaram. Eu sorria, com algumas eu trocava beijo no rosto. Peguei um carrinho apenas por pegar, pois eu nunca comprava muita coisa.
Procurei a farinha e ao levantar os olhos vi a vizinha. Senti uma espécie de sufocamento, meu coração acelerou. Era ela mesma, a poucos metros de mim. Atropelei uma gôndola e caiu alguma coisa lá. Eu queria passar perto dela, mas estava parecendo uma retardada, chamando a atenção sem querer.
Cheguei ao corredor em que ela estava. Para disfarçar, agachei e peguei uma lata de ração para filhote de cachorro, que estava caída ali.
Não pude evitar aquele contato tão próximo, olhei em seus olhos, achei que não fosse conseguir respirar mais, pois prendi a respiração e fiquei ali encarando aquela loura que era mais linda ainda de perto.
Parecia um sonho vê-la ali a centímetros de mim.
Meia-hora.
Lembrei das palavras da Ingrid, peguei um sachê qualquer e corri para o caixa. Deixei o sachê por lá mesmo e saí quase correndo, aquela louca iria infernizar a minha vida se eu demorasse. Notei que estava sendo seguida, já me preparei para reagir, caso fosse algum assaltante, mas era a vizinha.
O que pretende fazendo isso?
Sorri e continuei andando, cheguei em casa e entrei rapidamente. Precisei esperar que Ingrid dormisse para poder ir até a janela.
A maldita apagou depois de meia-noite, fui até lá e vi. Eu quis acreditar que ela queria me ver, mas seria pretensão demais. Fiquei olhando enquanto ela lia como sempre na varanda.
Eu estava embevecida com aquela imagem linda quando ela largou o livro e me olhou diretamente. Tremi, mas sustentei o olhar. Ela sorriu, sorri de volta, nervosa. Os cachorros da rua latiram agitados e por reflexo olhei para baixo. Foi quando avistei um homem chegar perto da casa dela, observar tudo e se afastar falando ao celular. Meu estado de alerta ativou na hora.
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