3 - Tio Augusto
Diana
Geralmente eu não durmo direito. Desde que comecei a dar plantões, meu corpo passou a ficar em um estado constante de alerta, mesmo quando estou de folga. Sou capaz de acordar com o barulho da minha própria respiração.
Raramente sonho. Quando durmo, mergulho no vale da escuridão, e ao despertar, mesmo que tenha descansado por horas, a impressão é de que não se passaram mais que alguns minutos. Normalmente, acordo muito mais cansada do que estava antes de ir dormir.
Naquela noite, aconteceu diferente. Eu dormi como há muito tempo não dormia. Tão bem que sonhei, nem lembro direito com o quê, mas lembro de estar feliz e relaxada. Acordei me sentindo renovada e nem precisei enrolar com o "soneca", porque era sempre assim, eu virava a noite em claro, e apagava de exaustão já quase na hora de sair.
Outro que havia dormido profundamente naquela noite foi o Luís Otávio. Mas isso não era novidade, dormir era o que ele fazia de melhor... quer dizer, a segunda coisa que ele fazia de melhor, porque a primeira era reclamar.
— Tô com fome e preciso usar a caixa de areia. Abra a porta. — disse, autoritário ao acordar.
— Bom dia pra você também, Luís Otávio. — retruquei, ofendida.
Levantei para abrir a porta, ele me acompanhou, estava apressado para sair e antes que eu abrisse, falou desaforado:
— Duvido muito que o dia seja bom. Você não comprou o meu sachê e vou ter que comer aquela porcaria de ração seca. Sabe que odeio isso, não sabe?
Revirei os olhos frustrada ao lembrar daquela falha. Ele odiava ração seca, e eu havia esquecido de comprar o bendito sachê.
— Depois do plantão, passo no mercado, Luís. Prometo que hoje à noite deixo você comer dois.
Abri a porta, e ele passou quase correndo. Nem sei se me ouviu. Enquanto se distanciava rumo a varanda para usar a caixa de areia, resmungava:
— Às vezes acho que você faz de propósito, só pra me chatear. Humanos são todos iguais, raça nojenta! Quando eu chegar à cozinha, quero a minha água fresca, pelo menos.
Fiquei calada. Lulu estava coberto de razão, eu andava muito relapsa com ele. Antes que se chateasse ainda mais, fui até a cozinha, troquei a água da vasilha e pus ração na outra.
Quando ele apareceu, foi até a água e bebeu, olhou a ração, depois me encarou, virou o rosto e saiu de perto.
— Já disse que não vou comer essa porcaria, humana.
— Vai passar o dia com fome? — perguntei, chateada.
— Vou. A menos que eu saia pra caçar. Que jeito, né? Às vezes, fico me perguntando qual a grande vantagem de ser um gato doméstico se a minha humana é uma imprestável.
— Meu Deus! Parei com você, tá? Vou tomar banho e trabalhar porque você já está com a vida ganha.
Aprontei-me para o trabalho, mas antes de sair, a curiosidade me levou até a varanda. Eu tinha a esperança de ver a minha deusa de novo, mas não vi qualquer sinal dela. Ao invés disso, avistei algo que me deixou intrigada. A janela do apartamento dela estava quebrada, rachada. Eu tinha quase certeza de que na noite anterior ela estava inteira.
— Estranho!
Caminhei até o parapeito e me debrucei sobre ele. Apertei os olhos para tentar enxergar algum movimento, mas não deu para ver nada. Mesmo assim, ainda passei alguns minutos esperando e me perguntando o que poderia ter acontecido bem na noite que dormi profundamente.
Um tempo depois me dei conta do quão aquilo era ridículo e resolvi sair de casa.
O dia transcorreu sem grandes emoções no hospital, o que me deixou verdadeiramente entediada. Nada de casos estranhos, apenas alguns braços e pernas quebrados.
Gabriel me acompanhou no corredor, eu caminhava em direção à emergência.
— Tá havendo alguma manifestação hippie por aí, e todo mundo de repente aderiu ao lema de paz e amor? Cadê os traumas de verdade desse hospital? — comentei, frustrada.
— Hoje eu não vou reclamar disso. Ressaca desgraçada! — respondeu, massageando as têmporas com as pontas dos dedos.
— Bem feito! Quem manda farrear em véspera de plantão?
— Ah, lá vem a dona certinha me encher. Me erra, Di!
Sorri irônica.
— Mas, e aí, me conta, pegou as gatas?
— Que nada! Marina até deu mole, mas não tive estômago.
— Sei!
— Juro, cara! Aquela ali, nem com muita cachaça na cabeça. Mulher chata da porra, se acha! Eu tentei com a Jéssica...
— E aí? — perguntei, sorrindo.
— E aí que você empatou minha foda, né, doutora gostosa? A mulher só se aproximava de mim pra perguntar de você.
— Fazer o quê, né? Só engula o recalque e aceite. — disse, sorrindo mais da cara dele do que do assunto em si.
— Metida!
Rimos juntos e fomos interrompidos pela chegada do sempre mal-humorado doutor Jales, que nos fez engolir o riso quando falou com aquele jeito irônico irritante:
— Desculpem atrapalhar a festinha, mas sou obrigado a lembrá-los de que os senhores estão de plantão e há pacientes precisando de assistência na emergência.
— Sim, doutor, já estamos indo pra lá. — respondi, segura.
Gabriel morria de medo dele e não conseguiu falar nada. Apenas aquiesceu meneando a cabeça, e voltamos a andar.
— Doutora Diana? — me chamou e virei para atendê-lo.
— Pois não, doutor Jales?
— Quero a senhora na ala de desembarque das ambulâncias junto com a doutora Marina. Está chegando um paciente com um ferimento à bala acima do peito esquerdo. Ela foi designada para atendê-lo, mas quero que você participe da cirurgia. É um caso delicado, e a senhora é mais experiente.
Ódio! Sério que vou ter que trabalhar com aquela metida?
Precisei me concentrar para não revirar os olhos e manter o tom impassível.
— Posso atendê-lo sozinha, então, doutor. Doutora Marina fica disponível para um caso mais simp...
— Se ela não participar, nunca vai aprender. Confio no seu profissionalismo para orientá-la, doutora.
— Mas, doutor...
— Sem "mas", doutora Diana. A ambulância deve estar chegando. Vá para lá imediatamente. — disse, autoritário, e saiu sem me dar margem para resposta.
Filho da puta arrogante!
Cheguei à ala de desembarque e logo vi a Marina. Não consegui disfarçar a minha cara de frustração, e ela não conseguiu disfarçar a de satisfação. Sabia que eu não gostava dela, mas que teria que engoli-la.
— Bom dia! — cumprimentei, sem vontade.
Ela sorriu irônica antes de responder:
— Pra mim, sim. Já pra você...
— É! — respondi, indiferente, queria mesmo que ela fosse muda.
— Olha, Diana, se eu fosse você engoliria logo essa frustração aí, porque não tem jeito. Hoje vai ter que me aguentar.
Nem me dei ao trabalho de responder, apenas revirei os olhos. Ela insistiu:
— Nossa! O que eu te fiz, hein, garota? Isso tudo é inveja por eu ser quem sou?
Franzi apenas o queixo numa careta, tentando ignorar aquela desnecessária, já impaciente. Aquela maldita ambulância que não chegava.
— Por eu ser uma Bonfim, quase dona desse hospital... segura o recalque, quem sabe assim você consiga aceitar isso.
Ouvi a sirene da ambulância chegando e vibrei quando freou bem perto de nós, calando aquela imbecil.
Os socorristas abriram a porta e começaram a falar:
— Homem de cinquenta e sete anos, ferimento a bala no ombro esquerdo. Está consciente e estável, mas não responde às perguntas. PA 90x50.
Aproximei-me da maca na intenção de verificar o monitor para ter mais informações, mas quase caí para trás quando vi quem era o paciente.
Não é possível! Tio Augusto?
Sim, era ele mesmo, meu tio, irmão do miserável do meu pai. Entrei em pânico, não queria que ele me visse. Dei dois passos para trás antes que ele me olhasse.
Não fazia ideia se o velho Afrânio sabia do meu paradeiro desde que fui embora de São Paulo, mas se sabia, ainda não havia me procurado, e eu queria que as coisas continuassem assim.
Marina me olhou sem entender o que se passava. Não tinha outro jeito, precisei pedir ajuda a ela:
— Marina, não posso atender esse homem. — disse, nervosa.
— Por quê?
Não podia falar o real motivo para ela, menti:
— Eu... eu... não tô me sentindo bem, acho que estou tendo uma queda de pressão.
— Sério, Diana? — perguntou, impaciente. — Seu problema é comigo, deixa dessa bobagem.
Porra de guria chata do caralho!
— Olha, eu vou lá dentro pedir ao Gabriel que entre na cirurgia com você...
— Eu posso fazer isso sozinha, não entendo esse excesso de cuidado do Jales.
— Ele é o chefe e vai ficar uma fera se desrespeitarmos uma ordem. Além disso, por mais que se ache, você ainda está no primeiro ano da residência. Vou indo, o Gabriel vai encontrar você no centro cirúrgico.
Entrei e expliquei rapidamente tudo ao Gabriel, e ele se apressou em sair.
— Não deixa aquela açougueira da Marina encostar um dedo no meu tio, Biel. Não sei se ele está aqui a mando do traste do meu pai, mas eu gosto dele.
— Relaxa, eu cuido de tudo. Melhor você ir embora ou o Jales vai desconfiar.
— Não vou, preciso de notícias. Vou ficar na sala de descanso e você me procura assim que acabar.
— Tá bom!
Fiz malabarismo para fugir do Jales e me tranquei em uma sala. Deitada na cama, lembrei da minha infância. Tio Augusto era sempre muito gentil comigo, me visitava constantemente e sempre levava presentes.
— E então, princesa, já decidiu o que vai ser quando crescer?
— Sim, quero ser médica e salvar vidas. Igual a você, o papai e o vovô. — falei, no colo dele, em um banco do jardim da minha casa. Mamãe nos observava de longe, sorrindo.
Lembrei que ela sempre ficava feliz quando tio Augusto nos visitava, e isso me deixava feliz também.
— Que orgulho, minha linda! Você vai ser uma grande médica, tenho certeza. E pra você já ir se acostumando, vou te dar um presente.
Abriu a maleta dele, que estava do lado, e tirou de dentro um estetoscópio.
— Toma, pra você. Mas tem que cuidar muito bem dele, tá? Foi do seu avô, ele me deu logo que eu entrei no programa de residência. Você pode cuidar dele pra mim?
Peguei o objeto encantada e muito feliz pela responsabilidade que ele estava me passando. Senti-me importante.
— Claro, tio Gu! Pode deixar.
— Isso vai te ajudar a salvar várias vidas.
Sorri feliz. Olhei para a minha mãe, que sorria também, de braços cruzados.
— Olha isso, mamãe!
— Eu vi, meu amor! Você ainda vai dar muito orgulho pra todos nós com isso.
Fui tirada das minhas lembranças pelo toque do meu celular. Era Gabriel avisando que meu tio estava fora de perigo.
Alívio.
Não tive coragem de visitá-lo. Eu sentia falta dele, não acreditava que fosse igual ao meu pai, mesmo assim estava com medo. Optei por me proteger.
Voltei ao trabalho dizendo que me sentia melhor. Levei bronca do Jales, mas foi preciso.
Dispensei um investigador que queria interrogar meu tio, dizendo que ele estava em repouso. Orientei a voltar no dia seguinte.
Finalmente o plantão acabou. Antes de sair, passei no quarto e observei, do canto da porta, o sono dele.
O que será que aconteceu? Será que foi um assalto aleatório ou uma tentativa de homicídio?
Me assustei com a segunda possibilidade. Dirigi até em casa imersa em meus pensamentos. Maquinei milhares de teorias sobre a situação, mas não cheguei à conclusão de nenhuma.
Deixando o tiro de lado, voltei a me perguntar o que ele fazia ali, em Vila dos Lírios.
Será que veio atrás de mim a mando do meu pai?
Não, eu estava sendo paranoica. Se meu pai quisesse me encontrar, não teria qualquer dificuldade, e meu tio não fazia o tipo que se curvava ao poder do doutor Afrânio. Decidi que no outro dia o visitaria.
Entrei em casa e dei de cara com Luís Otávio e seu olhar julgador. Nem deu boa noite, apenas falou:
— Fome.
Sequer cheguei a tirar a chave da porta, dei meia volta e desci. Resolvi ir ao mercado a pé, não era tão longe, e eu estava precisando respirar um pouco de ar fresco.
Caminhei até a gôndola onde estavam os sachês e procurei os sabores favoritos do meu gato mimado.
Ouvi o barulho de algo caindo no chão e olhei na direção do som. As gôndolas eram baixas e dava para ver as pessoas nos outros corredores, mas não vi ninguém.
Quando já ia voltando a atenção para a prateleira dos sachês, vi uma mulher se levantando com uma lata na mão. Ela percebeu o meu olhar e me encarou de volta.
É ela. Será?
Meu queixo caiu, ela lembrava muito a minha deusa do apartamento em frente. Mas eu não tinha como ter certeza e tampouco perguntaria.
Fiquei ali, parada, com cara de boba, encarando-a. Não sei dizer se durou um segundo ou um minuto, mas sei que mais uma vez, exatamente como na noite anterior, meu coração quis sair pela boca.
O olhar dela não me dizia nada. Tinha um semblante cansado, um ar triste, um pouco melancólico, talvez, mas me olhava intensamente.
Quase falei, mas antes de conseguir, ela quebrou o contato, pegou suas compras e se dirigiu ao caixa. Fiz o mesmo, mas fui para outro caixa, bem distante do dela.
Quando saiu, fui atrás, resolvi segui-la de longe. Precisava saber se era a minha garota.
Não errei, era ela mesma. Vi quando entrou no prédio em frente ao meu e fiquei feliz. Subi correndo, sequer dei atenção para as baboseiras do Luís Otávio. Apenas servi a maldita comida e corri para a varanda para esperá-la. Fiquei observando por trás da cortina. Ficaria ali a noite inteira, se precisasse, esperando por ela.
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