2 - Abuso


Barbara


Era uma e meia, eu estava na janela, num raro momento de paz, hora em que eu podia voltar a sonhar com o mundo real. Quando não estava observando a vizinha estava vendo série na tevê, mas isso só acontecia quando Ingrid não estava a fim de me torturar com seu humor horrível. Quando ela dormia, eu preferia a sacada.

A vizinha estava lendo na varanda de seu apartamento. Eu a observava havia várias noites. A rotina dela não mudava, chegava, cumpria seus deveres domésticos e ia para a varanda, onde passava um longo tempo lendo. Muitas vezes, eu nem via quando entrava para dormir.

Ela é muito gata, linda demais! Já pensei em pintá-la, esculpi-la, eternizá-la de alguma forma. Sou muito boa no que faço. Já vivi da minha arte, mas as merdas que fiz por aí me obrigaram a parar. De qualquer forma, se eu fizesse qualquer coisa inspirada nela, decretaria a terceira guerra mundial com a Ingrid.

Não sei seu nome, acho que deve trabalhar em hospital, pois geralmente passa em média doze horas ou mais fora. Quase nunca a vejo com amigos, parece que é um pouco solitária.

Acho que naquela noite ela me viu, pois olhou direto para cá.

Não pode ser!

A sensação de observá-la sem que me visse era o meu céu. Sempre fiquei na penumbra, quase invisível, assim eu podia imaginar qualquer coisa com ela sem alimentar esperança nenhuma. O fato de ter me visto fez com que, mesmo de longe, ela ficasse mais próxima de mim, e isso era perigoso, pois sou uma prisioneira das minhas falhas.

Eu gostava de ficar te observando, mas você chegou perto demais quando correspondeu ao meu olhar.

— Bárbara! — Ingrid gritou, me tirando dos meus sonhos de realidade.

Então os remédios não adiantaram nada, seria mais uma noite em claro. Apertei os olhos com os dedos polegar e indicador. Respirei profundamente.

Se fosse só passar a noite em claro, tudo bem, mas ela queria atenção o tempo todo, e não era qualquer tipo de atenção. Às vezes, me fazia cozinhar de madrugada, as comidas mais loucas. Muitas vezes, eu não tinha como conseguir os ingredientes. Quando acontecia, ela brigava até o dia amanhecer.

Eu estava na casa dela havia seis meses e seria melhor ter assumido meus erros ao invés de ter ido parar naquele lugar. Aquela era a pior das prisões.

— Bárbara? — berrou mais uma vez, me fazendo engolir saliva de ódio.

Fui ao quarto e ela estava com o rosto vermelho, olhos faiscantes, como sempre ficava quando estava com raiva de algo, de mim, geralmente.

— Sim?

— Onde estava? Estou gritando há três horas... — indagou, exagerada como sempre.

Eu apenas a olhava, esperando que dissesse o que queria.

— Quero panqueca de mirtilo. Você faz pra mim? — perguntou, usando aquele tom que para ela era fofo, mas para mim não passava de um cinismo horrendo me fazendo pensar em formas de cortá-la em pedacinhos.

— Não temos mirtilo em casa...

— Vai comprar...

Ela saiu da cama e foi até o armário, pegou uma nota de dez e me deu. O dinheiro dava apenas para comprar a fruta. Olhei para a cédula na minha mão e depois para ela, que sorriu.

— Isso aí dá para fazer a panqueca hoje.

— Você sabe que horas são? — perguntei, na falsa intenção de fazê-la deixar para quando o dia amanhecesse, pelo menos, mas foi em vão.

— Vai me negar um único pedido? — gritou de novo.

Eu respirei fundo e troquei de roupa para sair à procura de mirtilo àquela hora da madrugada.

Teria que andar por mais de um quilometro até chegar ao supermercado que ficava aberto 24h. Confesso que gostava de andar de madrugada, não tinha sol forte, não tinha caos de trânsito, não tinha gente na rua.

Costumava ser perigoso para uma mulher andar sozinha, tarde da noite, mas eu estava pouco me importando com os perigos da cidade, queria mesmo era respirar um ar puro e sentir a brisa silenciosa tocar meu rosto. E depois, eu nunca estava sozinha.

Eu sempre fazia uma cena de que não queria sair, mas era só para Ingrid insistir para que eu fosse, e sempre funcionava. Ela adorava agir contra a minha vontade.

Eu já ouvia gritos o dia inteiro e naquela noite, com certeza, ouviria mais. Qualquer tempo longe daquela voz irritante seria um alívio.

Olhei para cima e notei que a luz amarela do único sinal da rua em que eu morava piscava intermitente. Esperei um carro passar e atravessei, devagar, não tinha pressa nenhuma.

Os berros da Ingrid ecoavam na minha cabeça, aquilo estava despertando mais alguém dentro de mim, um alguém que talvez eu não pudesse controlar.

Conheci Ingrid num aplicativo de relacionamento, ela é bem mais velha que eu, perdera o pai havia pouco tempo, a mãe era alcoólatra, e ela sofria de depressão.

No início, era carinhosa e sorridente, mas uma semana depois começou a mostrar outro lado que eu odiei conhecer.

Era uma mulher bonita, mas estava entregue à depressão. Tudo o que eu tentava fazer para ajudar era visto com maus olhos por ela.

Tenho consciência de que depressão é uma doença perigosa, mas não sou nenhuma santa, nenhum ser iluminado para aguentar aquelas crises. Ela não queria melhorar, tomava remédios, mas continuava sendo mesquinha e maldosa. Não fazia um tratamento sério, usava os remédios e sua condição para manipular as pessoas.

Eu não a amava, nunca amei, só gostei dela no início, mas depois que passou a mostrar sua verdadeira face, passei a sentir asco, porém, meu passado não me permitia que eu saísse daquela vida tão rápido.

Não estava com ela por pena, mas também não era por amor.

Fui ao único supermercado aberto naquele horário e não achei o bendito mirtilo. Perguntei as horas a uma moça que olhava produtos de higiene e ela respondeu:

— Duas e dez.

— Obrigada... — respondi e fiquei olhando os produtos, mas sem enxergar nada, faltava uma eternidade para amanhecer.

Lágrimas sentidas e incontroláveis desceram por meu rosto. Eu só queria morrer. Senti um nó imenso na garganta tentando me sufocar, mas aquele maldito nó era incapaz de ir tão longe.

Fiquei ali, indo e voltando pelos setores, e depois voltei para casa para ouvir os gritos.

Aquilo estava acabando com a minha sanidade, com a minha pouca bondade.

Cada grito dela me fazia pensar em algumas formas de matá-la, pois não eram simples gritos. Ela me depreciava, não sabia nada a meu respeito, só o que eu havia falado, então ela usava aquilo contra mim. Não me atingia de fato, porque eu não havia falado a verdade sobre minha vida, mas me atingia pelo fato de estar usando o pouco que falei contra mim, mesmo dizendo que me amava.

O que me prendia a ela, na verdade, era o fato de ser ardilosa. Baseado no que eu havia falado, ela investigou parte da minha vida e conseguiu provas contra mim. Enfiou em algum lugar que não consegui achar de forma alguma. Com essas provas ou me prenderiam ou me tornaria uma fugitiva da polícia. Essa segunda opção é a mais certa, pois jamais me deixei ser pega. Até ela aparecer.

Por isso eu vivia naquela situação. Se o inferno existisse, eu estava dentro do meu. Restava saber quando sairia daquilo.

Voltei para casa àquela hora e, antes de entrar, vi Eulália, mãe da Ingrid, tentando abrir o portão de sua casa. Eulália morava no primeiro andar do prédio que pertencia a ela. Sua filha e eu morávamos no segundo andar. O terceiro era uma espécie de depósito, algumas tralhas da loucura de Ingrid, que tinha a horrível mania de guardar coisas, tanto novas quanto velhas.

Eu me lembro de ter achado uma rara câmera fotográfica quando fui limpar lá. Fiquei deslumbrada, era uma das primeiras, a evolução em forma de câmera, de 1890, usada por Félix Nadar. Ingrid me viu olhando e quase me bateu.

— Pediu para limpar aqui para ficar mexendo nas minhas coisas? — gritou, como se eu fosse surda ou estivesse muito longe.

— Claro que não, Ingrid. A caixa estava aberta e vi. Desculpa. Eu amo fotografia, por isso fiquei deslumbrada...

Ela me pegou pelo bíceps esquerdo e como sempre, com os olhos vermelhos de ódio, disse por entre os dentes:

— Nunca mais na sua vida entre neste andar. — ordenou e me empurrou para fora.

Apenas desci. Esse espetáculo todo sem nem ao menos saber do que se tratava. Pois não sabia sequer tirar uma selfie boa.

Ingrid era assim, cheia de distúrbios. Encontrava o psiquiatra uma vez por mês, apenas para buscar a prescrição dos remédios para dormir, pois segundo a Eulália, ela não queria fazer tratamento para melhorar, gostava de ser asquerosa.

— Ela é muito geniosa, minha filha. Sempre foi assim. Depois que o pai morreu, ela parou de sair de casa, não sei nem como encontrou você. — disse num raro momento de sobriedade.

Eulália mantinha fotos de quando era jovem, fora muito bonita, parecia uma miss daquela época. Não remetia em nada à carcaça deplorável que cambaleava sem rumo por aí.

O álcool estava deteriorando aquela coitada aos poucos. Eu notei que ela sempre saía quando Ingrid a visitava. Às vezes, eu descia com ela, às vezes, não.

Com a rotina, passei a não ser tão grudada na Ingrid. Não que eu fizesse o tipo carente, que não saía de perto da namorada. Nunca fui assim, mas ela me obrigava. Isso nos primeiros meses. Depois de um tempo, quando eu a via disposta a sair, me ocupava para não ter que acompanhá-la onde quer que fosse; algumas vezes eu não conseguia me livrar e ia contra a minha vontade.

Observei que ela coagia a mãe também, achei aquilo horrível, pois Eulália fazia tudo por ela.

Ingrid recebia mesada de alguém que eu não tinha interesse em saber quem era, mesmo assim sempre estava sugando a mãe para ajudar George, seu meio irmão.

George era outra pessoa que se tivesse morrido sem que eu o tivesse conhecido, teria me feito um favor. Era um inútil completo, só sabia se drogar o dia inteiro. Dizia que fazia faculdade de enfermagem. Vila dos Lírios é famosa por suas universidades de medicina e tudo o que envolvia a área da saúde, mas a última coisa que George fazia era estudar.

Tinha livros antigos, achados em sebos. Enganava a idiota da Ingrid, mas não a mim. Ou talvez ela só quisesse manter o vício dele, que dizia que estava fazendo tratamento para se desintoxicar. Mentira.

Eulália era uma boa pessoa, mas não teve pulso firme para lidar com a filha. Então toda vez que Ingrid ia a casa dela sozinha, a mulher saía e voltava para casa caindo, bêbada e triste.

— Bárbara, o que houve? — Ela falou a mais de um metro e meio de mim, mas consegui sentir o cheiro forte de álcool.

— Oi, Eulália! Ingrid quer panqueca de mirtilo e fui comprar.

— Não tinha, né? — indagou, triste.

Eu peguei a chave de sua mão e abri o portão. Ela não tinha a menor condição de fazer isso. Entrei junto com ela e abri também a porta de seu apartamento.

— Não, não tinha. Boa noite, vou lá enfrentar a fera. — Fechei a porta e saí.

Quando entrei, Ingrid estava furiosa me esperando. Eu estava tão cheia daquela desgraçada que se não tivesse um autocontrole tão forte já a teria matado.

Planos eu fazia todo dia. Acordava e já pensava se ela acordaria com um humor melhor, aí ela despertava e começava o inferno, e eu começava a planejar o assassinato, onde esconder o corpo, o que diria a Eulália. Era sempre assim e todo dia eu desistia, por causa da porra do autocontrole.

— Não tinha mirtilo, Ingrid. Eu procurei em todo lugar... — disse, normalmente, sem dar importância para a cara de ódio dela.

— Procurou mesmo? Demorou demais, achei que fosse trazer uma plantação de mirtilo. O que estava fazendo? Encontrou alguma vagabunda por aí, né?

— Do que está falando, Ingrid? Caramba!

— Ficou aborrecidinha é porque encontrou alguém. Se eu sonhar que você está sequer dando atenção para alguma puta por aí, eu mato você.

Eu sentia um imenso nó na garganta, meu companheiro de todas as horas. Nunca fui de chorar, mas estava querendo chorar até desidratar e sumir daquela casa.

— Fala o nome dela, Bárbara! — gritou, muito perto do meu rosto, me fazendo sentir seu hálito podre.

— Que vagabunda, Ingrid? Deixa de ser louca... não conheci ninguém, se eu tivesse conhecido, já teria sumido daqui... — disse, cheia de ódio e com lágrimas nos olhos.

Aquela maldita me pegou pelo cabelo, tentei me desvencilhar, mas não consegui.

— Olha aqui, sua pirralha, se atreva a me enfrentar de novo e eu quebro essa tua carinha linda.

— Me larga, Ingrid! — pedi e notei que minha voz saiu alto demais.

— Grita de novo, sua desgraçada! Está achando que sou o quê? Alguma idiota, para não saber que só existe um mercado aberto 24h e que você levaria no máximo meia hora para ir e voltar?

Eu a empurrei, caso contrário, ficaria sem parte do meu couro cabeludo. Foi nessa hora que ela me pegou de novo pelo cabelo e tentou acertar a minha cabeça na parede.

Na minha tentativa falha de desviar, acabei na janela e senti o vidro quebrar com o impacto da minha cabeça.


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