1 - A Garota da Janela

Diana



Era o fim de mais um plantão no Instituto de Traumatologia e Ortopedia Dr. Adalberto Bonfim.

Bonfim...

Eu ria da ironia que envolvia aquele nome, afinal, não eram todos os pacientes que davam entrada naquele lugar e tinham a sorte de serem agraciados com um bom fim.

Eu estava no último ano da minha residência e me especializaria em cirurgia do trauma, por isso, a minha rotina consistia basicamente em atender os casos de amputações, fraturas expostas, baços rompidos, ferimentos à bala, costelas quebradas... ou seja, tudo que havia de melhor e mais moderno no mercado da bizarrice... e eu adorava.

Estava no lugar certo. Trabalhar ali, para mim, não passava nem perto de uma obrigação. Na verdade, era uma grande diversão. Toda a agitação da minha vida acontecia lá.

A medicina era a única coisa que eu achava interessante. Todo o resto não passava de uma grande chatice. Da porta do hospital para fora, eu era uma pessoa comum, com uma vida pacata. Não cultivava grandes amigos... e muito menos amores. Sempre gostei da solidão, do silêncio, de viajar nos meus próprios pensamentos.

A figura mais próxima que eu tinha de um amigo era Gabriel. Éramos colegas desde o primeiro ano de internato. Ele era aquele tipo de pessoa que fazia amizade até na fila das condolências de um velório, e logo no nosso primeiro dia decidiu que seríamos melhores amigos. Vivia tentando agitar a minha vida, mas eu não dava conta de acompanhar o ritmo dele, que não perdia uma boa farra por nada.

— Ah, Diana, deixa de ser chata, cara! Vamos lá, só duas cervejinhas e a gente vai embora.

Era aniversário de Marina, outra residente. Ela era parente distante dos fundadores do hospital. Nada demais, nem era herdeira, mas tinha "Bonfim" no nome, por isso, agia como se fosse a dona do hospital.

Todos haviam combinado de aparecer em um bar, depois do plantão, para comemorarem o aniversário dela, mas além de estar extremamente cansada, eu a detestava com todas as minhas forças.

— Não adianta insistir, Biel, eu não vou. Você sabe que não vou com a cara dessa garota...

— Eu também não, mas quem disse que estamos indo por causa dela? Nós vamos pela bebida... e pelas gatas. — Terminou a frase com um olhar safado.

Sorri. Ele estava realmente entusiasmado, mas eu não estava nem um pouco.

— Não vou, Gabriel. Não insista. Amanhã tenho plantão de novo, levanto às 6h, e ainda tenho muita coisa pra fazer hoje...

— Ahan... tipo bater altos papos com o Luís Otávio, né? Tô sabendo... — ironizou.

— Não, idiota. Eu tenho que estudar.

— Ai, que nerd irritante do caralho que você é. Porra! — esbravejou com falsa indignação. — Não sei por que estuda tanto se já sabe de tudo.

Ele tinha razão, eu era realmente muito boa no que fazia. A melhor da minha turma, na verdade, e com muito orgulho, sobretudo, por ter conseguido ir tão longe sem jamais ter precisado usar o sobrenome do meu pai. Ao contrário da Marina, a aniversariante.

— Se eu sei de tudo, como você diz, é justamente porque estudo muito, e você deveria fazer o mesmo para não acabar como a sua amiguinha aniversariante, que tá mais pra açougueira do que para cirurgiã, mas mesmo assim tá aí, cheia de moral, por causa do sobrenome influente.

Marina não passava de uma dondoca, fútil e mimada. Eu não fazia ideia nem mesmo de como ela havia conseguido concluir a faculdade, então dá para imaginar como eu me sentia quando a via em uma sala de cirurgia. Assim como eu, ela tinha um sobrenome que abria portas, mas ao contrário de mim, ela se aproveitava descaradamente disso para se dar bem. Ninguém a suportava naquele hospital, nem mesmo Gabriel, mas todos precisavam engoli-la, pois tinham medo de tê-la como inimiga.

— Tá bom, sua chata! Não vou insistir com você. Vai pra casa, acariciar seu gato e tomar mingau de aveia. Não é isso que velhos fazem? Eu vou encher a cara e arrumar uma mulher pra transar. Aliás, uma não, vou pegar duas. Uma por mim e outra por você... já sei, vou pegar a Jéssica, já que você vive dispensando a guria...

Jéssica era uma interna, muito bonita por sinal, mas pegajosa demais para o meu gosto. Ela não fazia a menor questão de disfarçar o interesse que tinha por mim, e Gabriel não aceitava o fato de eu não corresponder.

— Faça bom proveito. — disse, no meio de uma risada. — A Jéssica é grudenta, e de mulher carente eu fugindo. Faz assim, já que quer duas, pega a Jéssica e a Marina. Garanto que vai ter a noite mais estranha da sua vida. Até amanhã, Biel. — disse e saí, sorrindo, sem esperar réplica.

No caminho de casa, voltei a pensar em Marina. Eu sabia que o motivo de a detestar tanto era porque ela era o retrato da filha que meu pai esperava que eu fosse.

A medicina sempre foi o meu sonho, mas sabe quando você é adolescente e quer muito fazer uma coisa, então descobre que seu pai também quer muito que você faça essa coisa, daí a coisa toda perde a graça? Pois é, eu sempre quis ser cirurgiã, mas na verdade eu não queria querer isso, só para que meu pai, o Dr. Afrânio Sobreira, não sentisse o gostinho da vitória.

Mas pensar em outra profissão era como ir contra à minha natureza. Algo completamente fora de cogitação.

Meu pai era de uma família tradicional de cirurgiões, um renomado cardiologista. Seu sucesso na carreira médica fez com que ganhasse grande visibilidade na área da saúde e por isso ele acabou entrando para a política.

Eu não sabia de muita coisa dele, não nos falávamos havia anos, mas como ele era uma figura pública, eu sempre acabava esbarrando em alguma notícia. A última dizia que ele estava lançando candidatura ao senado.

A verdade é que ele não queria uma filha. Quando minha mãe engravidou, ele ficou feliz e tudo mais, mas não se tratava da paternidade. Sua preocupação era apenas sobre o legado da família.

Nunca foi um pai de verdade. Não tenho lembranças da gente passeando no parque, tomando sorvete, jogando bola ou passando férias na Disney, como as famílias de classe média alta fazem. Na verdade, não me lembro de muita coisa que tenhamos feitos juntos durante a minha infância, pois ele quase nunca estava em casa e quando estava não era nada agradável a presença dele, pois eu quase nunca o via.

Quando não eram os plantões, eram compromissos políticos. Mesmo assim, eu o admirava... até que presenciei, pela primeira vez, uma agressão contra a minha mãe. Aquilo o transformou em um monstro para mim.

Eu tinha dez anos. Lembro que ouvi os gritos e corri para ver do que se tratava. Fiquei olhando pela brecha da porta, que estava entreaberta. Ele a xingava:

— Sua vadia, miserável. Vai aprender a me respeitar.

Eu quis entrar para ajudá-la, mas estava com muito medo. Além do mais, não adiantaria, eu era muito pequena.

Ele batia em seus braços e pernas, não batia no rosto. Depois de um tempo eu entendi que era para não deixar marcas visíveis. Para a sociedade, eles eram o casal mais feliz do mundo. Ele se passava pelo homem perfeito.

Assistir cenas como aquela virou rotina para mim. Via tudo com um nó na garganta, e depois que ele saía, eu corria para ajudar a minha mãe.

— Eu tenho vontade de matá-lo, mãe. — dizia, com a voz embargada pelo pranto raivoso enquanto fazia compressas de gelo nos machucados dela.

— Filha, não diga isso. Você não é igual a ele. É uma menina boa, decente...

— Por que você não chama a polícia?

— Eu já fiz isso, filha. Mas ninguém apareceu aqui. Diana, entenda uma coisa pro seu próprio bem: seu pai é um homem influente. O melhor que fazemos é ficar quietas, ou ele pode ficar mais zangando ainda, e não quero nem pensar no que ele é capaz de fazer.

— Eu o odeio, mamãe! Com todas as minhas forças.

Ódio que apenas aumentou com o passar dos anos.

Quando cheguei em casa, Luís Otávio já me esperava ansioso. Não que estivesse com saudade de mim, aquele tipo de sentimentalismo bobo nem combinava com ele. Às vezes eu tinha impressão de que ele me detestava e que só estava comigo por conveniência... comodismo, afinal, eu lhe dava um lar, uma caixa de areia limpinha, um arranhador e comida de gato em sachê. Mas eu não reclamava, gostava muito de sua companhia, apesar do mau humor constante e dos pelos espalhados pela casa e pelas minhas roupas.

Eu o resgatei de um bueiro, no estacionamento do hospital. Ele era só um filhotinho assustado que fora abandonado ali para morrer. Lembro de passar e ouvir os miados. Gabriel estava comigo e me ajudou a tirá-lo de lá, dei comida e água. Após isso, ele me seguiu. Tentei despistá-lo com mais comida, mas foi em vão. Acabei trazendo para casa.

Quando filhote, ele era uma coisinha fofa, brincalhona e destruidora, mas depois de adulto passou a me tratar assim:

— Humana, isso são horas? Como foi capaz de me deixar abandonado assim por tanto tempo? — indagou, rabugento. — Você tem andado muito relapsa ultimamente.

— Desculpe, Luís Otávio. No final do meu plantão, uma senhorinha muito idosa deu entrada com uma fratura na bacia. Não podia deixar a velhinha agonizando, você entende?

— A velhinha que se exploda, ora. Já está com os dias contados mesmo. Eu ainda não cheguei nem na metade da minha primeira vida. Devia ter se preocupado mais comigo.

— Desculpa, Lulu...

— Não me chame de Lulu, meu nome é Luís Otávio. Sabe que eu odeio esses apelidos idiotas. Vocês, humanos, sempre nos tratando como bibelôs de vitrine, não se dão conta de que somos uma raça infinitamente superior. — disse, enquanto me olhava com aquele olhar julgador.

— Eita, que você mal-humorado hoje, hein! — falei acariciando suas costas.

— Claro que estou. Já viu a imundice que está a minha caixa de areia? Estou apertado. Acho bom limpar logo ou o seu sofá nunca mais será o mesmo. Ah, e você sabe que não gosto daquela água parada. Quero água fresca... e eu estou com fome, caramba!

— Credo! Calma, já estou indo resolver os teus problemas.

— Acho bom.

Luís Otávio estava tão chateado comigo aquela noite que não quis mais conversa. Após comer o seu sachê de comida de gato – que por sinal era o último – e sujar novamente a areia que eu havia acabado de limpar, deitou-se na cabeceira da minha cama, lambeu o corpo todo e adormeceu profundamente. Pelo menos, ficou em casa dormindo.

Tentei fazer o mesmo, eu estava exausta. Tão exausta que não consegui descansar. Meu cérebro só podia me odiar, porque ele não me deixava dormir.

Todas as noites, a mesma coisa: eu deitava, levantava, voltava a me deitar, virava de um lado para o outro... contava tanto carneirinho que o rebanho acabava e eu precisava recomeçar a contagem. Levava os coitados a exaustão e, no final, eu sempre desistia e acabava na varanda, estudando.

Foi assim que eu vi a vizinha pela primeira vez, debruçada sobre a janela do apartamento que dava de frente para o meu.

Estava muito quente, mas seria injusto atribuir ao clima a quentura que tomou o meu corpo quando me dei conta de sua presença.

A silhueta curvilínea daquele belo corpo se destacava na penumbra da noite. A forma retangular da janela servia como moldura para a imagem que parecia ter sido cuidadosamente pintada por um grande artista renascentista. A luz fraca do cômodo onde estava criava uma aura em seu redor que a deixava absurdamente deslumbrante. Parecia um ser mitológico, uma deusa... Freya, a deusa da sensualidade.

Aquela imagem foi o bastante para despertar o meu corpo do torpor em que se encontrava havia muito tempo. Senti até certa estranheza ao perceber a adrenalina fazendo os meus batimentos acelerarem. Perdi por completo o foco do que estava fazendo e, por mais que eu tenha tentado, não consegui mais voltar a estudar.

Disfarçadamente, pus-me a observá-la. Cada movimento, cada gesto, cada minúcia daquela cena instigava ainda mais a minha curiosidade.

Não demorou muito para o encanto se quebrar. Pareceu que alguém a chamava, então precisou sair. Ainda esperei algum tempo na varanda, mas foi em vão. Ela não voltou mais.

Fui para o quarto me sentindo uma boba. Decidi tentar mais uma vez dormir, o mínimo que fosse, pois cedo da manhã já precisaria estar pronta para mais um plantão.

Deitei, fechei os olhos e incrivelmente, pela primeira vez, não fiquei pensando no escroto do meu pai ou sobre a minha performance nas cirurgias do último plantão. Ao invés disso, pensei nela...

Enquanto viajava em um mar de possibilidades sobre aquela deusa misteriosa, minhas mãos ganharam autonomia e deliberadamente começaram a explorar meu corpo de forma íntima. Uma delas se ocupou em acariciar meus seios, e a outra desceu, ávida, em busca de satisfazer o desejo que havia se apoderado do meu corpo.

Naquela noite, dormi profundamente, tanto que até sonhei... com ela, a garota da janela.

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