Srta. Abóbora


  Carlos ia ao cemitério pelo menos uma vez ao mês, apreciando o silêncio de familiares que há muito o deixaram. Havia algo reconfortante em poder se agarrar as pessoas que partiram, uma forma de ainda sentir que elas estão presentes na sua vida.

  Suas lápides riscadas, um pouco empoeiradas, o julgando por palavras não ditas e ações precipitadas. Era uma forma de poder se punir por não ter sido bom o suficiente enquanto estavam vivos, ok, talvez Carlos seja um pouco masoquista.

  O sol do meio-dia o fazia nadar no suor proveniente pelo sobretudo, o chapéu fazendo sua cabeça derreter em vez de protegê-lo dos raios quentes do astro. Ele era uma figura estranha em meio as flores que enfeitavam o lugar. Tinha o olhar perdido, segurando o choro e palavras que não adiantariam serem jogadas ao vento.

  As pessoas partiram, e não havia nada que ele pudesse fazer, senão visitá-las. Ficar parado ali como a estátua bizarra de um detetive aposentado, assustando até mesmo os poucos espíritos que voavam para lá e para cá invisíveis a percepção humana.

  Carlos estava deprimido, com um emprego horrível, dor nas costas, sapato furado e uma tristeza que parecia incurável. Ele gostava de ir ao cemitério, curtir um pouco da sua autopiedade, antes de ter que voltar para sua casa fria e úmida. Era reconfortante se afundar na ignorância de que não havia nada que ele pudesse fazer para melhorar a situação, travado em algum dos cinco estágios do luto sem querer encarar a realidade. As pessoas morrem Carlos. E isso dói.

  Como tantas visitas ao cemitério Carlos já tinha um roteiro, que se resumia em trazer novas flores; ficar 14 minutos parado olhando para o nada; mais 6 minutos encarando os nomes nas lápides; segurar o choro e ir tomar uma cerveja no bar da esquina com nome engraçado. Sempre as mesmas coisas seguidas de maneira ritualísticas.

  De vez em quando havia alguma senhora tentando puxar assunto, algum gato se esfregando entre suas pernas ou algum vulto passando ligeiro e causando calafrios na espinha.

  Hoje havia algo diferente. Um detalhe peculiar que causava um misto de sensações, ele não tinha certeza se deveria rir histericamente ou chorar em desespero.

  12:20. Hora de ir encher a cara no Cabelos Bar. Mas algo chamou sua atenção.

  Uma mulher, aparentemente de vinte e poucos anos, usando um vestido de formatura bufante, laranja como uma abóbora, uma cor horrível, que faria dela ponto de referência a quilômetros de distância. Tinha os cabelos amarrados em um coque gigante, como os penteados das mulheres nos anos 80. E usava saltos, eram brancos e ela parecia não se importar que estivessem afundados na terra do cemitério.

  Possuía um sorriso estranho no rosto, como se não acreditasse no que estava fazendo. As mãos enluvadas lutando para levantar a saia do vestido e se posicionar em frente a uma das muitas lápides esquecidas.

  Carlos cogitou fugir, se não fosse sua curiosidade para saber o que uma 'princesa dos contos fadas" fazia no cemitério pleno meio-dia. Foi então que ele notou uma pequena caixa de som, já imaginando o que ela faria. Carlos duvidou que teria essa audácia.

  Uma inclinada de cabeça e ele conseguiu ler o nome do morto infeliz, prestes a ser atormentado por uma jovem adulta, provavelmente bêbada, recém saída de um baile.

  Patrícia Carneiro - 1967 - 2017

— A senhorita precisa de ajuda? — perguntou por educação.

  A mulher deve tê-lo notado apenas nesse momento, porque deu um pulo assustada, um tom de rosa cobrindo suas bochechas.

— Não, estou bem.

  Carlos deu de ombros, sem ter certeza do que deveria dizer. Esperou que a Srta. Abóbora fizesse alguma coisa, mas ela parecia constrangidas com sua presença.

— Quer que eu saia? — tentou parecer condescendente.

— Não, o senhor pode ficar. Eu apenas... Apenas...

— Não sabe o que fazer?

— Sim — sua voz saiu como um sussurro, tão baixa que se não fosse o silêncio mórbido do cemitério não seria capaz de ouvi-la. — Eu esperei anos por esse momento, e agora só parece vazio, sabe?

  Não, ele não sabia. Ele não entendia porque ela parecia tão feliz em um lugar como esse, não compreendia seu vestido bufante, sua coroa de flores meia torta ou seu sorriso largo.

— Como alguém pode estar tão feliz em um cemitério? — a pergunta saiu suave, escapando de seus lábios antes que pudesse se impedir.

— Estou aqui por ela — seu dedo indicador apontou para a lápide de forma acusadora. — Dezoito anos de espera e eu finalmente vou ter minha vingança?

  Vingança? Carlos poderia ter se engasgado se sua boca não estivesse tão seca. Quem se vinga de um morto, indo até seu túmulo ainda?

  Talvez ela quisesse sambar em seu caixão. Isso que é levar um ditado ao pé da letra.

— Essa mulher foi minha professora no jardim de infância, também foi ela quem planejou minha formatura.

  Carlos gostaria de dizer que não estava interessado em sua história triste, dar meia volta, ir encher a cara e esquecer que viu essa cena. Mas ele estava curioso, não tinha quem enganar, então ele acenou para que ela continuasse.

— Patrícia nunca gostou de mim, ela sempre preferiu minha melhor amiga — ela olhou tristemente para o chão, arruinada. — Seriam três ou quatro apresentações, todos as crianças iriam dançar e nós passamos o mês inteiro ensaiando. Havia essa dança especial, com música animada, todos queriam um lugar na frente.

  A mulher olhou para o céu, e agora Carlos podia ver lágrimas pesadas saltando de seus olhos castanhos. O assunto parecia ser delicado para ela.

— Mas Patrícia me excluiu! De acordo com ela eu era "tímida demais" — seus olhos se voltaram para Carlos. — Então, no dia da formatura todos os meus amiguinhos dançaram, enquanto eu fiquei sentada assistindo. Eu fui injustamente excluída! Eu queria dançar, queria fazer aquele passo legal e apontar para meus pais quando a música falava da família.

  Um vento suave soprou, balançando os pequenos cachos que escapavam de seu peteado chique. Carlos piscou, desviando o olhar desse detalhe, ainda processando a história sem sentido.

— Por anos eu juntei dinheiro para isso, apenas para conseguir alugar um carro de som e ir até a porta da minha antiga professora para dançar a mesma dança, com a mesma coreografia estúpida que ela me fez decorar.

— Parece que não vai dar — admitiu considerando o lugar que estavam.

— Sim — respondeu amarga. — A vaca morreu antes que eu pudesse completar minha vingança.

  Alguns segundos de silêncio se seguiram. A Srta. Abóbora mexeu em alguns botões da caixinha, para então deixá-la em algum canto.

— Não me importo que ela não esteja aqui fisicamente, ela vai ter que me ver fazer essa maldita coreografia!

  A música começou a tocar, preenchendo o silêncio em respeito aos que já foram com uma cantoria infantil.

  Não havia ninguém no cemitério além deles, o que parece ter dado confiança a Srta. Abóbora para fazer pequenos gestos com os braços e rodopiar ao som do... Rap da Família?

  Passos infantis, movimentos inocentes que combinavam com seu semblante sorridente. Carlos admitia, a coreografia era terrível, mas a mulher conseguiu deixá-la agradável, seja por seu senso de humor cruel (e ele estava levando tudo como uma piada, não podia ser sério) ou por seus traços delicados.

  Tudo terminou tão rápido quanto começou, e a mulher se ajoelhou na frente do túmulo, algumas lágrimas passeando por suas bochechas rosadas.

— Tímida seu rabo Patrícia. Meu nome é Melissa e eu danço bem pra caramba sua vaca.

  Não tinha muito o que se fazer agora. Por um momento Carlos sentiu pena de Patrícia, tendo seu descanso eterno profanado, mas, considerando que ela realmente foi a vaca que Melissa disse parecia uma vingança ingênua.

— Ei — Carlos chamou, vendo os olhos castanhos mirarem seu rosto. — O que acha de tomar uma cerveja no Cabelos Bar?

  Pouco romântico eu sei. Mas essas duas estranhas figuras saíram do cemitério sorridentes. A Srta. Abóbora com sua vingança realizada e Carlos sentindo, pela primeira vez em muito tempo, que apesar das pessoas que ele amava terem partido, ele ainda estava na Terra, e não deveria se sentir culpado por viver.

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