7 - Coalizões de aço e prata

Malindi

Com as luzes noturnas de Cassandra adentrando o átrio vazio do Centro de Operações, Malindi viu Mênfis conversar com a prefeita ao redor do palanque, totalmente sozinhos se não fossem pelos dois ou três fantasmas que só ela poderia ver. Em cadeiras modestas, eles bebiam vinho taranisiano e se encaravam trocando carícias, escondidos das autoridades, horas depois de dar a mais chata e hipócrita lição de moral aos rebeldes de Itzamna antes de convocá-los como mercenários. Margot sorriu e mordeu os lábios quando Mênfis passou as mãos lentamente pelas suas coxas debaixo do vestido. A necromante pendurada em uma das janelas, próxima aos barcávis adormecidos do lado de fora, pulou de surpresa no chão de lápis-lazuli, fazendo os dourados com o susto derrubarem o vinho em seus vestidos e ternos mais caros do que todas as casas em que Malindi já morou juntas.

- Ora, ora, como os deuses são irônicos - disse ela subindo as escadas do palanque e pegando a garrafa - Eu até comentaria que o comércio de produtos com Taranis é proibido, mas vocês sabem que essa não é a maior infração que vocês cometem.

- Como nos encontrou aqui? - esbravejou Mênfis enquanto Margot resmungava a perda de seu vestido - E como você sabe do vinho...

- Eu sei de muito mais coisa do que vocês imaginam, engomadinhos. Imagino que deve saber que garotas de bordéis por exemplo tem muito mais poder político do que o público geral pensa, porque escutam as conversas mais íntimas dos homens de cargos importantes em suas escapadinhas da família - Malindi pegou a garrafa de vinho e analisou os bordados de seu rótulo - Agora, imagine que os necromantes escutam não só as fofocas e segredinhos dos vivos, mas dos mortos. Óbvio que não praticando nenhum ato com os clientes. Isso seria bem esquisito.

- Se você sair daqui a tempo, ainda tem a chance de eu não chamar um guarda para dar um tiro bem no meio desses olhos de prata.

- Não sem dizer a minha proposta. Você falou que quem capturasse o pirata Nokken e trouxesse até você ganharia recompensas, certo?

- Dois milhões Triunfos e anistia para a organização rebelde, sim. O que mais quer propor? Você é da Sangue e Prata por acaso?

- Não, Pulador de Cerca. Tenho lembranças ótimas da Sangue e Prata e muitos amigos que fiz lá - Malindi olhou seu próprio reflexo no vidro escuro e sentiu o corpo tremer com tudo o que o nome daquela organização trazia à tona - Mas houveram pessoas lá dentro que falharam comigo e com a minha família. Nos deixaram de lado quando mais precisávamos. Mas isso não interessa. Eu tenho uma proposta muito maior para mim do que qualquer dinheiro ou anistia - a necromante parou de sorrir de forma debochada e olhou no fundo dos olhos prateados e odiosos de Mênfis, chegando mais perto do seu rosto do que talvez nenhuma pessoa pobre tenha chegado antes - Eu quero meu pai e minha mãe fora do Parietal! Tunis e Gabès. Eles têm o registro da família do internado então vão conseguir encontrá-los, meu nome é Malindi.

- Que envergadura moral você acha que tem para me questionar? - disse ele se erguendo da cadeira, muito mais alto do que a jovem prateada - Eu sou quem manda nesse continente do deserto ao mar, seu verme rastejante!

- Bom, eu tenho uma pequena bomba em minhas mãos agora - disse Malindi passando os dedos pela prefeita que se afastou como se a prateada fosse um bicho, e depois fechando os dedos e imitando uma explosão - Você aceita tirar eles do complexo de manicômios do Parietal caso eu volte com o Capitão, ou eu saio contando para todo mundo o seu casinho sujo com a bonita aqui. E se eu não durar um dia depois de começar a espalhar, pode apostar que os mortos continuarão por mim. Além disso - Malindi sorriu pensando nas lâminas da assassina ou nas mãos de aço de Elias esmurrando os piratas -, você sabe que uma garota como eu provavelmente vai morrer lá em cima e você não terá que se preocupar mais comigo.

Mênfis calou-se e a encarou tentando fingir desprezo.

- Sabe que quem é responsável pelo Parietal é o Ministério do Higienismo Urbano, não?

- Ah, mas não era você que governava esse continente do deserto ao mar?

O governador sentou na cadeira esbravejando e apoiando a testa nas mãos.

- Você ganhou então. Combinado.

- Combinado - Malindi estendeu o braço esperando um aperto de mãos e viu o governador se afastar - O que foi? Eu já tomei banho, Mênfis, não tem mais graxa da prisão grudada em mim não. É nojinho de pobre?

O dourado apertou as mãos de Malindi após mais alguns segundos hesitando e não conseguiu voltar aos seus prazeres moralmente duvidosos com Margot. Malindi pegou a garrafa de volta e bebeu três grandes goles direto do bico antes de colocá-la no chão e se afastar até desaparecer no átrio.

- Deuses, ainda por cima esse vinho é ruim.

*****

Era irônico como numa sociedade em que o metal era usado para compor os próprios seres vivos, ele quase não sobrava para compor o mundo ao redor. Os barracos, carroças puxadas por cavalos mecânicos, armas, quase nada ao redor dos Autômatos levava metal em sua composição, e mesmo assim, os primeiros raios de sol a rasgarem as nuvens sobre Néftis refletiam como se o que seguisse o manguezal fosse uma planície de espelhos. Ela refletia nos próprios seres que ali habitavam, corpos mecânicos de todos os tamanhos e formatos andando entre casas de tijolos de barro e tendas de comerciantes que formavam ricos desenhos da vida cotidiana do vilarejo. Mais do que isso, os autômatos faziam arte em seus próprios corpos, não apenas pinturas na pele como a maioria dos povos de carne, mas extensões coloridas de suas partes de metal feitas com madeira, porcelana e até mesmo materiais descartados da cidade humana como garfos retorcidos ou cacos de vidro. Membros divididos em dois, braceletes exuberantes, mandalas de cerâmica acopladas em tóraxes de aço. Quase nenhum deles via o grupo sem exibir alguma reação sobre a volta de Elias, fosse positiva ou negativa, encará-lo com desprezo ou interromper a caminhada para cumprimentá-lo. E claro, todos olhavam Huayta, Asiri e Malindi com estranheza, como se não se encaixassem naquele lugar.

Malindi percebia que algo estava errado. Não era só pelos autômatos feridos com seus cabos expostos em membros arrancados sendo consertados pelos poucos médicos do lugar ou com manchas de ferrugem em suas carapaças enquanto tossiam e vazavam um estranho óleo preto. Os fantasmas translúcidos de seres que um dia foram tanto de carne quanto de metal vagavam com corpos mutilados, cravejados de balas, carregando suas próprias cabeças decapitadas em buracos no tórax de tiros de canhão. Malindi estava muito próxima de mais uma crise de necrolalia. Aquele lugar foi palco de uma carnificina. "Ou ferroficina, se é que isso existe".

- Os Nokken atacaram a Casca de Crustáceo recentemente, não é? - perguntou.

- Semana passada - disse Daiane cabisbaixa guiando-os terreno montanhoso acima - Pela vigésima vez. Este é o único lugar da cidade inteira que ainda não foi dominado pelos Nokken. Aliás, minto, há um porto no distrito nordeste que está sob controle da Ordem da Medusa, mas não sabemos como está a situação deles, apenas que continua resistindo, mas é um espaço muito pequeno.

- A Ordem da Medusa? Os piratas de Sayyida? - perguntou Huayta - Achei que estivessem todos mortos.

- Sofreram muitas baixas, de fato, mas são bichos ruins de matar - Daiane bateu na própria carapaça do peito com a garra três vezes, emitindo estampidos - Igual a nós. Eles conhecem cada caverna submarina, cada ilha isolada, cada canto onde há monstros em toda essa baía. Se não fosse a guerrilha dos piratas, os Nokken já teriam feito toda a hecatombe que quisessem por aqui e chegado até a Costa dos Navios Caminhantes há meses. Ali!

Daiane apontou para a maior das casas no topo da colina, protegida por autômatos armados de canhões e lança chamas, espadas acopladas em seus braços e até mesmo esferas-flores com pólvora. Aquele lugar tinha uma arquitetura similar à da casa de Jacques, só que mais escura e com paredes menos cheias de bordados, em contraponto com as casas decoradas da cidade. Até mesmo tijolos expostos podiam ser vistos na construção, quase como se quisessem deixar claro que o objetivo dela não era ser bonita e sim impor medo. "Essa casa tem cara de ser assombrada", brincariam os jovens normalmente. Malindi sabia que sim, como toda a cidade, aquela construção era mal assombrada.

- Por que estamos aqui? - perguntou Asiri - Eu ouço o vento contornar as armas.

- Estamos em guerra, assassina - disse Daiane - Para pedir asilo a qualquer um, especialmente três orgânicos, temos que pedir a permissão da Protetora. E sinto informar, é alta a probabilidade dela rejeitar vocês.

- A Protetora é a tal da Ancara que você disse?

- A trituradora de ossos dourados e derretedora de engrenagens autocidas - respondeu Daiane - Ela mesma. Acho que deu pra ver pelos títulos que ela não é muito amigável. E também é minha construtora, ou o que vocês chamariam de mãe, se é que isso faz sentido para nós.

- Bem - disse Malindi olhando para um fantasma autômato se arrastando com o corpo arrancado da cintura para baixo vazando aquele óleo preto - Talvez consigamos ter uma conversa. Se eu fizer as propostas certas.

*****

Ancara era uma verdadeira gigante de aço, quase dois metros mais alta e larga que o próprio Elias e com quatro braços segmentados, serpentes constritoras de metal pintadas de vermelho e amarelo. Segmentos feitos de objetos de metal descartados de Néftis cobriam o seu corpo dos pés à cabeça, saias e coroas de talheres, moedas, parafusos e ponteiros de relógio.

- O que te trás aqui, Elias? - protestou com a voz de cem canhões sentada sobre um trono de carruagens desmontadas - Não estava feliz com o Sebastian financiando suas pesquisas em Cassandra? Você era o melhor dos nossos médicos, Elias, um jovem brilhante. Você abandonou seu povo para se aliar ao império, trazer três orgânicos aqui, e quer que eu te ajude a capturar o Jansen por poder pessoal?

- Não é questão de poder pessoal. Seria uma derrota avassaladora para os Nokken.

- Ah, serpente inorgânica - disse a titã erguendo-se de seu assento no salão cheio de armas e iluminado através de janelas de vidro quebrado - Quando você nos abandonou, também disse que não era uma questão pessoal.

- Eu sei que cometi erros, Ancara. Estou tentando me redimir deles.

- Então o que faz trazendo humanos ao meu domínio? Eles bombardeiam as nossas casas, derretem nossos corpos para fazer armas, transformam nossos irmãos em soldados autocidas que destroem nossas culturas. Eles sobrevoam as nossas comunidades com dirigíveis que soltam bombas e, se um de nós se atrever a matar um dos seus soldados, a nossa raça inteira é condenada como máquinas selvagens e sem sentimentos. Para mim, Elias, você causa mais nojo do que um autocida. Eles pelo menos são mais sinceros.

Huayta levantou sua mão, trêmula diante da montanha falante de aço.

- O que foi, orgânico?

- Vossa... majestade, não sei nem como chamar, eu entendo o que você quer dizer. Você bem deve saber que nós humanos também temos disputas internas.

- Nós três que estamos aqui, temos alvos pintados nas nossas costas pelo Império - disse Asiri - Também sabemos o que é ser odiado.

- Como um autômato? Vocês não sabem, crianças. Nós não deveríamos nem existir.

- Ancara, já que aparentemente também temos direito de falar - interviu Malindi -, eu tenho uma proposta.

- Quem você acha que é, garota?

- Eu não quero desafiar você, Ancara - disse Malindi - Só quero conversar para entrarmos em um acordo. Pode apostar que se eu não entendesse o que vocês estão passando, eu não te respeitaria. Vocês perderam pessoas no último ataque, certo? E vou chamá-las assim, pessoas. Se vocês pudessem dar um último adeus a elas, e então você diz se aceita colaborar ou não.

- Como propõe que façamos isso? - questionou Ancara, inflexível.

- Bem, nada na tradição das necromantes de Kahina impede que nossas oferendas sejam de metal. Já que eles morreram aqui e há pouco tempo, a Barreira ainda está fina para eles. Podemos fazer seus espíritos aparecerem para vocês.

- Isso não é uma armadilha, não.

- Confie em mim. Meu povo cumpre sua palavra. Só não aperte a minha mão porque... sei lá, eu não quero quebrar nenhum osso hoje.

- Só acredito no que pode ser demonstrado - o estalar dos dedos de Ancara lembrou duas espadas em colisão e trouxe uma soldada autômata carregando o que, para olhares desatentos, seria apenas uma pilha de sucata. Na verdade, se tratavam de restos mortais - Me impressione, bruxa, e talvez eu ajude vocês.

- Morceguinha - disse Malindi encostando no cinto de Asiri.

- Mal, o que você está fazendo?

- Confie em mim.

A Assassina da Noite entregou em suas mãos a adaga curvada com a qual a kahinense cortou seus dedos e pintou um magioglifo sobre uma das placas de metal com o próprio sangue, mordendo a língua para não gritar. A face distorcida de um fantasma.

- Huayta - Malindi virou-se para o mago - Você pode recarregar o cajado depois, mas agora eu preciso de mais oferenda.

O cassandrino fincou a ponta de quartzo no monte de sucata e descarregou contra ele toda a luminosidade dentro do cajado. Feixes de energia brotavam como relâmpagos no céu entre o cadáver de aço e o cabo de madeira. Daquela pilha sem vida, uma figura se projetou ao apagar dos raios. Um corpo translúcido de ferro, o fantasma de um autômato. A face ameaçadora de Ancara se abriu numa expressão tremendamente humana.

- Não é possível. Gustav.

Os corpos mecânicos ao redor de toda a sala circundam seu colega falecido, incluindo Daiane e Elias. Em poucas vezes dos seus serviços de necromancia, Malindi viu tanta consideração e camaradagem vinda de humanos com coração de carne.

*****

Ao redor da fogueira, Elias enquanto ele olhava para o chão com claro desprezo com a engrenagem partida em dois ao redor de suas costas. Isso seria como um mago usando uma máscara dos Caçadores de bruxas. Malindi observou a dupla metálica se alimentando de pedaços de madeira e carvão para abastecer seus corpos enquanto tocava o oud. Lá longe, o mar ardia em bioluminescência e era rasgado por saltos de peixes e golfinhos, mas com tentáculos enormes de seres desconhecidos acariciando as ilhotas aqui e ali. Malindi repassava os passos do plano em sua cabeça enquanto tocava as notas.

"Nós precisamos dos trajes e objetos de soldados Nokken mortos na última batalha para gerar um feitiço de ilusão.", dissera Huayta, "A Malindi pode me ajudar com a necromancia e eu fico com o feitiço mental. Vamos marchar até o porto disfarçados e nos infiltrar no navio".

"Eles nunca me viram por essas bandas", interviu Elias, "Com todo o nojo que eu tenho desse tipo de lataria, mas se eu fizer as pinturas de um autocida, eles podem acreditar em mim."

"E nós podemos te acompanhar", acrescentou Daiane, "Fingindo ser prisioneiros de guerra, como se a batalha tivesse sido vitoriosa para eles".

"E então, o ataque" dissera Ancara "Vocês causam confusão por dentro do navio, distraem os Nokken e nós atacamos pelo sul. Uma esquadra da Medusa deve partir para a batalha esse horário pelo que nossos informantes disseram. Vai ser um massacre para os Nokken."

- A Asiri e a Daiane não está demorando muito não? - perguntou-se Huayta limpando as mãos sujas de látex e sangue de insetos esmagados com que pintara o magioglifo nas roupas roubadas para o feitiço de ilusionismo.

- Não seja por isso. Olha as duas ali.

Malindi parou de tocar o Oud e apontou para a assassina e a autômata vindo da escuridão abaixo. Pela direção, estavam voltando do porto, compartilhando uma com a outra informações sobre seus povos e trazendo em seus ombros, Daiane pela enorme garra e Asiri pelas patas, um monumental caranguejo do tamanho de uma carroça.

- Foi uma garra dessas que tentou arrancar minha cabeça hoje de manhã.

- Então quer dizer que vocês usam pedaços do corpo dos seus mortos para construir seus filhos? - questionou Asiri.

- Não é quase isso que vocês fazem? - respondeu Daiane atirando o crustáceo ao chão - Vocês comem pedaços de outros seres orgânicos que alimentam seus corpos e depois engravidam e geram filhos com as proteínas deles.

- Tudo bem, acho que você me venceu dos argumentos. Falando em precisar comer, chegamos com a janta.

Pedindo uma adaga da assassina, Huayta gravou um magioglifo em forma de fogo dentro de uma gota de água na parte mais mole da carapaça do caranguejo. Com um pouco de água, a criatura cozinhou por dentro e sua carapaça se desfez deixando um perfume pelo local. Malindi, Huayta e Asiri logo partiram para o banquete com tanto afinco que queimaram as línguas no calor. Aquele lugar quase não tinha comida para os humanos e o trabalho pesado ao longo do dia os deixou famintos.

Àquela hora, quase todos os autômatos dormiam, ou "deixavam a lataria esfriar", como disseram. Só os cinco contemplavam a água brilhante, longe dos monstros.

- Eu estou com medo - disse Elias depois de mastigar madeira - Não quero falhar com eles de novo. A Ancara ainda não me perdoou. E eu mesmo não me perdoaria.

- Você vai fazer ela engolir as palavras dela, Elias - disse Malindi colocando a mão em seu ombro - Confie em mim. Você é um dos caras mais corajosos que eu já conheci, não importa o que ela diga. Não teríamos sobrevivido sem você. Durma bem, cabeça de lata, resfrie essas engrenagens para a batalha de amanhã.

*****

Dezessete anos. Foi a idade em que Malindi teve sua primeira vez. Naquele ponto, ela já se lembrava de ter constantes crises de necrolalia e ver fantasmas quase todos os dias, mas a intensidade era bem menor, ao ponto que uma noite como aquela que lhe fizesse feliz e acordar de manhã na cama apertada ao lado da garota que fazia seu coração palpitar afastava qualquer visão translúcida e cadavérica. Malindi apreciou os traços do sorriso e os olhos prateados de Núbia com os corpos cobertos até o pescoço para se proteger dos mosquitos na estação de chuvas. Estavam na célula da Sangue e Prata mais próxima de Deméter, com centenas de barracos e alojamentos para abrigar os imigrantes prateados fugitivos da servidão ou que não conseguiram arrumar um lar após pagar as dívidas com seus respectivos mapeadores. A cortina fechada que mal conseguia barrar a luz do dia era quase como uma desculpa esfarrapada que davam a si mesmas para não terem levantado até agora, e Malindi quase esquecia que todo o perímetro do lugar onde estavam era cercado por guerrilheiros armados e magos desassociados das gangues com sangue nos olhos para repelir o próximo ataque dos Pistoleiros.

- Então me conte as novidades, Mal - disse Núbia acariciando os cachos sobre sua testa. Com famílias vindas de reinos e línguas diferentes em Sekhmet, tinham que dar um jeito de se comunicar em sucelliano, e Malindi achava o sotaque dela tão delicioso de ouvir... - Como vai a situação da sua família?

- Ah, podemos voltar a falar de culinária?

- Malindi... - disse encarando de maneira julgadora e brincalhona ao mesmo tempo. A jovem necromante hesitou em sua resposta.

- As coisas ainda não estão muito bem, mas podem melhorar. Se tudo der certo, minha mãe conseguirá o dinheiro pra pagar a dívida de terra do meu pai e meus irmãos antes da Chuva de Jade.

- Por que você tá falando de um jeito tão vacilante, Mal?

- Nada, só é um assunto que me deixa triste.

- Você nunca ficou assim conversando sobre isso. Aconteceu algo mais que você não está me contando?

Malindi não soube o que responder e Núbia fechou a cara e sentou-se agarrando o travesseiro.

- Ela está fazendo serviço para a Guarda Imperial de novo, não é? Ou para algum Pistoleiro?

Malindi suspirou.

- Para as gangues. Ela precisa falar com onze mortos num tiroteio, sete magos e quatro soldados. Nem lembro o que aquele chefão bunda mole quer dessa vez, talvez descobrir o ponto fraco do quartel general ou se tinha algum infiltrado na gangue, sei lá. Essa guerrinha deles é complicada demais.

- Malindi, sua mãe sabe que se a Sangue e Prata pegar ela cometendo mais uma infração ela será expulsa, não?

- Ela cometeu infrações a vida inteira sob risco de ser morta pelos Pistoleiros do nosso Mapeador. Acho que isso já nem importa mais pra ela. E se expulsaram a minha mãe, eu voluntariamente saio junto e não quero nem saber.

- Malindi, pelos deuses das estrelas às cavernas - disse Núbia com as mãos em seu rosto - A célula vai conseguir libertá-los, basta dar tempo ao destino.

- Vendendo galinhas, banana e cordas de viola pra meia dúzia de vilarejos que não querem queimar nossas bruxas? Nem em uma década. Dinheiro rápido só vem com serviço sujo nesse continente.

- Se não for pela via legal, vai ser pelas armas e cajados, Malindi. Podemos cortar a cabeça de cinquenta pistoleiros num dia se for necessário, mas não vamos dar um centavo de Triunfo a quem põe nosso povo para morrer nos tiroteios, nos bordéis ou nos becos de Ensandecidos.

- Vai lá e corta então. Na última fazenda que vocês invadiram, vocês levaram foi porrada. Às vezes eu penso que vocês deveriam ficar menos preocupados em serem morais e superiores e mais em fazer a revolução funcionar. Porque do lado dos dourados, eles não estabelecem regra moral nenhuma.

Núbia cruzou as pernas e deixou os lençóis caírem totalmente de sua pele.

- Eu te mostrei o que tem debaixo dessa faixa no meu tornozelo?

- Bem, provavelmente, ao que todas as evidências indicam, um tornozelo.

- Você brinca para fugir do que confronta suas ideias, não é, Malindi? - disse desatando o nó do tecido preto e revelando a marca em sua pele. Era uma serpente ao redor de um coração com uma moeda de um Triunfo. A pintura que as gangues de Deméter deixavam em prostitutas.

- Essas pessoas me fizeram muito mal no passado. Não só a mim, mas a centenas de mulheres do nosso povo. E vocês duas podem não se dar conta, mas fazem mal a vocês também. A gente ouve vocês resmungando com os pesadelos noite sim e noite não. Malindi, sua mãe está driblando o bloqueio de bebidas da Sangue e Prata e virando alcoólatra para conseguir dormir. Isso não deveria ser normal. Eu estou dizendo isso porque amo a Tunis, e porque te amo, Malindi.

A necromante já tinha cada vez mais dificuldade de olhar nos olhos de Núbia. Atrás dela, uma figura transparente e intangível como fumaça sentava-se no banco pequena e inocente demais para não ser perturbadora. Uma lembrança desnecessária do universo de que aquele lugar, antes de ser sede da Sangue e Prata, era mais um campo de servidão de prateados. Uma criança morta.

- Acho que já está na hora de levantarmos e tomar um café antes que a praça de alimentação feche, não é? - disse levantando-se e colocando as roupas - Vamos voltar a falar de culinária.

*****

Se a Casca de Crustáceo parecia arrasada, tanto no plano dos vivos quanto dos mortos, era porque Malindi ainda não tinha visto o resto de Néftis. Nenhuma cidade de Itzamna era bonita fora das áreas ricas, mas Néftis era besuntada de sangue e cadáveres de pessoas de todos os povos brilhando em plena luz do dia, atraindo tentáculos de detritívoros ou bandos de cães, ratos e gaivotas que não tinham o pudor de profanar os olhos das vítimas que mal terminaram de ver seu mundo desmoronar. No caso, desmoronar literalmente, já que tudo o que restava da maioria das casas eram escombros carbonizados obliterados por tiros de canhões. Já não era possível distinguir quais bairros um dia foram de ricos ou de pobres, de dourados, prateados, ou púrpuras, ou até quais deles abrigavam animais como cavalos ou tartarugas gigantes. A guerra tornou todos eles iguais: incensos que deixavam seu cheiro de carne apodrecida sob o sol serem levados pelo vento marítimo e desafiarem carniceiros e funcionários horrorizados da limpeza a encontrarem-nos sob os restos de suas próprias casas.

Porém, não eram os mortos que mais davam a Malindi vontade de derramar vômito ou lágrimas. Estes ela via todos os dias, e agora vagavam em meio a seus próprios corpos e permitiam à necromante a visão de uma cidade duplicada, onde agora seu principal movimento eram de almas com assuntos não resolvidos que demorariam um pouco mais para se dissolver na Barreira. Os que mais sofriam naquela sopa de detritos de uma sociedade eram os vivos, com seus ossos querendo fugir da pele após a fome causada pelo cerco, assim como as almas queriam fugir das prisões que eram seus corpos. Homens, mulheres e crianças, vagando sem rumo pelos cadáveres do que antes eram suas casas, famílias e amigos, cambaleando e se arrastando para disputar comida do lixo com as aves marinhas, transformados em mendigos andarilhos e Ensandecidos por tiros de canhão com bombas incendiárias e sendo chutados por soldados Nokken e uns pelos outros. O mundo em que viviam não era perfeito, longe disso. Malindi sabia que Néftis devia ser tão brutal quanto Deméter ou Cassandra. Porém, se sua vida chegasse ao ponto que Néftis chegou, ela daria tudo para voltar aos barracos fedorentos dos brejos de Deméter. Daiane estava errada. Os Nokken já fizeram uma hecatombe.

Daiane apontou a garra para oeste, sem dizer uma palavra para não romper o disfarce. Os tecidos das roupas se desgastavam e apodreciam ao redor dos magioglifos, servindo de oferenda para projetar a quem os visse a imagem dos mortos com essas roupas impressas na Barreira. A combinação da necromancia com a magia mental. Aquele plano precisava dar certo.

Caminhando na direção do Porto, os corpos ficavam cada vez mais raros enquanto davam lugar à bandeiras Nokken, casas sendo construídas e piratas Nokken formando seus assentamentos. Eles traziam seus maridos, esposas, filhos e avós para morar onde antes civis como eles foram obliterados. Carruagens automáticas percorriam as ruas e empregados limpavam o lixo que sobrou após não haverem mais cadáveres. Os piratas os cumprimentavam com gentileza e tentavam abraçá-los, vendo seus colegas recém chegados de uma batalha mortal. Os rebeldes tremiam toda vez que olhavam para suas roupas prontas para se desfazer e encerrar a oferenda. E no centro de tudo, o navio.

Centenas de Nokken se juntaram para ver aquela obra. A embarcação erguia-se como uma bela mítica das águas rasas ao lado dos píeres brancos que refletiam o sol do meio dia no casco do gigante. Ele era coberto de uma armadura de metal, cinza com o convés escuro, tão grande que a maior de suas cinco velas com cor de sangue tinha o tamanho de um dos navios comerciantes comuns que circundavam a ilha. Toda a lateral projetava canhões imitando os espinhos de um lagarto, lança chamas, bestas, espinhos que entravam e saíam só para mostrar o que podiam fazer com pequenas embarcações inimigas. Na ponta de sua proa, a estátua de um tubarão. A chaminé que saía do meio da ponte lembraria as fábricas de Cassandra se fosse decadente e enferrujada, mas ela era apenas aterrorizante, um obelisco de metal que cuspia a fumaça de inimigos carbonizados alta o bastante para manter as duas velas atrás limpas. A gávea no mastro central era uma cúpula com um telescópio que parecia feita de ouro, e ao lado do telescópio, um pequeno canhão. Aquela coisa era totalmente diferente de todos os navios que Malindi já tinha visto nas memórias dos mortos que chegaram ao litoral. Sua reação em forma de sussurro não foi épica à altura daquele oponente, mas foi sincera.

- Que porra é essa?

Saindo da multidão onde estavam os rebeldes disfarçados ao som de aplausos, sussurros e populares Nokken resmungando boquiabertos, um homem de quase dois metros de altura com o porte de um touro e longos cabelos, barbas e bigodes ruivos no rosto queimado pelo sol. Fardas vermelhas, pretas e amarelas cobriam a camisa e calça com babados extravagantes, todas presas por um cinto contornado por armas de fogo e um sabre de quase um metro. O chapéu preto do pirata era quase tão grande quanto o da prefeita de Cassandra, mas ele não trazia flores, e sim uma decoração que tinha o objetivo de impor respeito, mas era tremendamente Apuinti: crânios humanos. À frente do navio onde a tripulação subia lentamente em plataformas puxadas por engrenagens como a do barcávis, o pirata pôs sua boca em uma trombeta e disse alguma frase no idioma Nokken que fez os milhares berrarem em festa. E, logo em seguida, ele disse em sucelliano:

E para os inimigos que ainda espreitam entre os escombros dessa terra, seus dias estão contados. Eu sou o Capitão Brunswichk Jansen.

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