5 - Morte a todos os reis
Asiri
A primeira batalha verdadeira nunca é esquecida por um guerreiro. Para Asiri, anos se passavam e aquela noite ainda era nítida em todos os seus sons, cheiros e feridas. As tropas de sua célula caminharam silenciosamente usando as rochas como esconderijo, doze destinadas à batalha, entre iniciantes e experientes, dez que ficaram destinadas a proteger o acampamento e onze para o caso de um resgate.
Aquela noite estava sem vento, em plena estação seca, onde o solo quente parecia sugar o ar de seus pulmões. Asiri teria um aliado a menos nessa batalha. Tentava não usar os ruídos da ecolocalização, baseando-se apenas no canto das cigarras e a conversa dos guardas colidindo com as paredes, escondida junto a metade de seus colegas no interior escavado de um tronco próximo com buracos difíceis de serem vistos à noite. Toda aquela região era permeada por esconderijos para eles. A entrada da masmorra era como a boca de um monstro escondido no sopé da montanha, um arco protegido por lanças e soldados armados com mosquetes e canhões.
No espaço onde os assassinos subiam apertados um em cima dos outros, Maypan cutucou o braço de Asiri algumas vezes formando um código. "Flauta". A aprendiz retirou de seu cinto a flauta esculpida pelas bruxas de Illapa e a tocou. Seus magioglifos usaram a própria música de oferenda e fizeram o som sair na direção oposta à da árvore num feitiço de ilusão. Barulhos de passos sobre folhas secas, conversas baixinhas e metal batendo contra metal. Os sons falsos que ludibriaram metade dos guardas a andarem até a armadilha, com seus passos sobre o solo seco denunciando sua localização. Som de flechas sendo disparadas, quatro barulhos de carne sendo dilacerada por suas pontas. Cinco dos Assassinos dispararam de dentro de tocas secretas sob círculos cavados na grama que se abriam como tampas de jarros para desaparecer logo em seguida.
Mais dois soldados chegaram para tentar socorrer os primeiros. A distração estava feita. Abaixo de Asiri, Iva desceu até as raízes e pegou o arco e aljava dos compartimentos na terra. Ela só precisava abrir um pouco da toca para mirar com os ouvidos e disparar. Asiri ouviu de cima um guarda ser acertado e gritar que estava sendo amarrado. As sombras envolveram seu corpo como cipós, depois um disparo de flecha errado e outro acerto, mais a carne rasgada por adagas na região das tocas. Eles não estavam dando tempo para que os soldados chamasse reforços. Entrada neutralizada, hora de agir. Asiri ouviu os cinco soldados nas tocas correndo em disparada até a boca do monstro para ver se já podiam atacar ou se deviam bater em retirada. Dentre eles, Viacha lançou duas flechas no tronco ao invés de duas. A entrada estava segura.
Cinco assassinos saíram do tronco da árvore seca pelas tocas entre as raízes e correram para a entrada. Não tinham tempo a perder, precisavam encontrar uma forma de se esconder antes que mais soldados viessem ver de onde vinha o grito. Asiri cortou os pavis dos quatro canhões com um punhal tomando cuidado para não pisar nos corpos estrangulados pelas sombras e não ser puxada por elas.
"Os quatro, ataquem na frente e limpem o terreno", ordenou Maypan em Subsônica apontando, "O resto vai atrás."
Asiri, Naia e Uyuni atacaram escondidos atrás de frestas, estalagmites e caixas de minérios e apunhalou três soldados com as adagas que voltaram às suas mãos sob o feitiço de sangue. Não havia como fabricar talisãs de invisibilidade para ajudá-los naquela região sem a madeira e seiva da quase extinta castanheira sangrenta. Asiri cortou a garganta de mais dois com a adaga curvada. Uyuni quase foi percebido e agarrado, mas conseguiu decepar o braço do adversário com um golpe da adaga. Mais alguns punhais de sombras nas costas dos oponentes e o caminho estava livre. Asiri pôde ouvir o resto da equipe vindo logo atrás disparando flechas contra os capatazes restantes e saltando entre as estalactites. O cheiro da querosene contornava os túneis e curvas da masmorra imitando uma serpente, e os assassinos seguiram para cortar a sua cabeça: as câmaras de mineração.
Caminhando com as sandálias de solas macias para não emitir ruídos, a equipe se escondia nas frestas mais estreitas e sombrias para fazer o reconhecimento do local sem que os guardas os vissem. Os caminhos por onde passariam os carros de mão com minérios estavam vazios, aguardando o nascer do sol para levarem aos trens de Hefesto, mas o sofrimento dos nativos não podia aguardar o amanhecer que nunca encostou naquela caverna. Os choros, gemidos e gritos de cegos trabalhando até a exaustão lutavam para sobressair as picaretas e as ordens dos capatazes. Asiri sentiu a poeira arder em seu nariz, mas precisava se lembrar dos treinamentos em que os professores assopraram areia em sua face para que ela não repetisse o mesmo que os trabalhadores cegos lá embaixo: a tosse. Muita tosse, como na época em que ela vivia nas masmorras. Aquilo ironicamente apertava seu coração mais do que o choro. Eram anos de vida sendo carbonizados, pulmões endurecendo como rocha, veias carregando veneno industrial. Asiri sentiu a corrente de toques em código vindo de Maypan e passando por quatro assassinos antes de chegar ao braço dela.
"Atirar, recuar para outro túnel".
A câmara de mineração era muito mais alta e larga do que os túneis anteriores da masmorra. As adagas não eram mais tão eficazes da distância onde estavam os carrascos. Asiri alargou o estilingue até ele voltar a ser um arco e atirou seis flechas da aljava. Os treinos de velocidade e reflexo fizeram efeito. Todos os alvos foram abatidos, denunciando sua localização por suas broncas escandalosas. Haviam poucos adversários para reagir quando os tiros começaram a disparar, e os Assassinos da Noite recuaram para os túneis anteriores, prontos para um ataque surpresa pela outra entrada. Sucre conseguiu atingir um soldado que chegou perto demais com uma adaga de obsidiana. Pela queda de peso do talismã, Asiri conseguia ver que seu estoque havia acabado.
O ataque estava sobre controle, fazendo os carrascos correrem como ratos para fugir de um predador invisível, até o erro fatal. Na virada dos túneis, uma rajada de tiros de arcabuz pegou os assassinos de surpresa.
- Acertamos dois! - gritou um dos atiradores.
Reflexos treinados e os assassinos conseguiram desviar da maioria dos tiros e contra-atacar antes deles recarregarem as armas de fogo, mas três acertaram o alvo em cheio, um no joelho de Alcalá, cujo um princípio de grito ouvido por Asiri ameaçou se formar em sua garganta e denunciar a localização deles. E os outros dois fizeram o som característico de balas penetrando a carne de um tórax humano.
Asiri colocou as mãos sob a cabeça do corpo caído no chão. Tentou sentir o pulso ou seus batimentos cardíacos na esperança em vão de que eles indicassem o contrário da realidade dura como as paredes daquela masmorra.
Viacha estava morta.
*****
- Asiri, acorda - disse Huayta cutucando-a - Chegamos.
Ela ergueu sua cabeça confusa após senti-la em um ombro alheio e os braços num tronco esguio com a mão direita. Asiri havia adormecido no desconfortável e puído banco do trem, apoiada em Huayta.
- Você dormiu a viagem inteira, Asiri. Já está de noite.
- Onde estamos? - perguntou, logo em seguida bocejando e se espreguiçando.
- Na Ostrea, a última cidade da Baía dos Lampiões que ainda não foi tomada pelos Nokken - disse Elias - Os trens que vêm de Cassandra costumavam parar aqui antes dos Nokken porque, bem... Néftis é uma ilha. E o solo dos arredores é muito cheio de pântanos e manguezais.
"Levantem-se", gritou a general Louise nos cabofones. "Vocês chegaram ao destino."
- Ah, que mulher insuportável! - rosnou Malindi se levantando. Depois dela, Elias, e então Asiri e Huayta. Os vagões se abriram e os grupos rebeldes caminharam para fora da estação, onde os sons das conversas contornavam militares armados.
"Os soldados de Ostrea responsáveis pelo toque de recolher foram advertidos a não atacá-los a não ser que vocês desobedeçam as regras", prosseguiu Louise, a voz cada vez mais distante tal qual as dos mercenários rivais que se dispersaram pela estação e rumo à cidade, "Não causem tumulto na cidade, não ataquem tropas da Guarda, poupem suas armas para os Nokken. Uma boa missão para vocês."
Um clima de medo pairava na Ostrea como neblina. Asiri conseguia ouvir o vento que vinha do mar à nordeste contornando os casebres e as tropas com seus canhões e cavalos. As moradias de madeira rangiam enquanto os moradores fechavam suas portas e janelas. Os pequenos cochichos que se ouviam dos poucos cidadãos ainda fora de suas casas comentavam do aumento repentino de forasteiros, e alguns até propunham queimar os que eram claramente magos e bruxas. Balançavam sinos no vento tanto nas janelas para espantar maus espíritos quanto no pescoço de bois e vacas. Asiri sentia as sandálias dos pés afundarem nas ruas de terra e barro úmidas, permeadas pelos focos de grama.
- O toque deve ser por causa dos Nokken, imagino.
- Para trás! - ecoou um grito masculino de sotaque sucelliano ao lado de Asiri. Ela podia sentir o calor do soldado alto e corpulento e o deslocamento de ar da baioneta na ponta de um mosquete chegando a centímetros de seu pescoço. Com uma reação quase automática, ela bloqueou a lâmina da baioneta com uma adaga curvada.
- Abaixa a arma - disse outro militar ao lado - Eles vieram da estação, só atacamos se eles saírem da linha. Ordens do governo central.
O soldado permaneceu por pouco tempo parado e bufando enquanto ainda empurrava a baioneta contra a adaga, talvez encarando o quarteto com ódio, antes de abaixar o mosquete e se afastar sob o eco agudo das lâminas raspando. Os quatro apenas seguiram seus caminhos pela pequena cidade sitiada.
- Só não fiquem perambulando por aí de noite - disse.
- Precisamos de algum lugar para dos abrigar - sussurrou Malindi - Pelo menos até termos um plano de como agir.
- Eu conheço um cara que pode nos ajudar - disse Elias - Um velho amigo meu que tem andado por essas bandas. Se é que ainda não mataram ele. Me sigam.
*****
- Não, não, não - Asiri não conseguiu conter a angústia que queria escapar de seus ossos, mesmo que isso significasse quebrar a furtividade dos assassinos em batalha. Ela passou a mão pelo rosto de sua amiga. Tudo do peito ao queixo estava coberto de sangue - Viacha...
O som das adagas penetrando a carne dos reforços e de tiros poderia formar um mapa para a sua fuga ecoando nas paredes, mas Asiri não conseguia se concentrar. Não tinha como dizer que era a primeira vez que sentia um corpo tocado pela morte. Ela perdeu a maioria de seus amigos de infância na mineração e já viu colegas da célula não voltarem das batalhas noturnas, mas de alguma forma, aquela situação de morte trouxe o choque que ela não sentia há anos. Uma companheira de batalha, morta ao seu lado em combate. Asiri encostou o seu rosto na pele fedendo a sangue e suor do pescoço de Viacha e derramou lágrimas sobre ela.
"Asiri" disse Naia em Subsônica enquanto praticamente a chutava. O tremor de seus ecos denunciava que também estava a beira de uma crise de choro "Pelos deuses, sai daí, eles vão te matar".
- Assassinos - ordenou Maypan - Corram para o outro túnel. Eu sei como vocês estão se sentindo, mas precisamos terminar a batalha ou não conseguiremos nem mesmo dar um fim digno ao seu corpo.
Asiri escutava sons de ossos quebrados e gargantas cortadas vindas da mesma direção. Maypan fazia soldados caírem aos montes como um jaguar sanguinário, partindo para a violência total num combate que já perdeu o fator das sombras. Ela emitiu um eco e percebeu o braço de sua professora sendo penetrado por uma baioneta antes que ela a arrancasse e usasse a arma para atirar no soldado. Saltando na direção do caminho que deveriam seguir, ela prosseguiu.
- Não podemos deixar a morte da Viacha ter sido em vão.
Asiri e os assassinos atiraram adagas e bumerangues nos soldados restantes para limpar sua retaguarda dos últimos perseguidores, e então seguiram sua mestra pelo túnel. Naia carregou Alcalá, que não conseguia mover sua perna, e Asiri carregando o cadáver de Viacha. Os ecos das botas inimigas serpentearam a parede, mas ainda havia tempo de atacar. Novamente, estavam nas minas, a garganta com guelras em forma de túneis daquele peixe maldito por onde entravam e saíam trabalhadores carregando minérios. Os carrascos foram pegos de surpresa por uma rajada de flechas vinda de um túnel oposto ao do ataque anterior, muito mais rápida do que seus revólveres lentos de carregar. Até mesmo Alcalá disparava de cima das costas de Naia. Em menos de cinco minutos, a zona das minas estava neutralizada.
- Cegos de Illapa! - convocou Maypan da boca do túnel, falando alto pela primeira vez desde que planejaram a invasão - Essa é a sua chance de libertação. A Ordem dos Assassinos da Noite veio ao seu resgate. Peguem suas picaretas, pás ou qualquer objeto que puder ser usado como arma e vamos marchar até os calabouços e libertar aqueles que restam nessa masmorra. Eles te convenceram que vocês são fracos, mas são muito mais fortes do que aqueles que têm o mundo corrompido pela visão. Eles são poucos, nós somos centenas. Morte ao Império!
Com um cadáver curvando suas costas, Asiri não teve ânimo para ser contagiada com os gritos de alegria daqueles homens, mulheres e crianças que agora não precisavam mais colher pedras de buracos nas paredes. O resto daquela batalha pareceu não ter emoção, ímpeto de vitória ou sobrevivência, apenas ódio e luto, um resquício da energia que precisava para seguir no automático. Para os carrascos, o que se seguiu foi um massacre. Mais de vinte que ainda restavam administrando aquela masmorra, das celas ao refeitório que servia alimentos podres e cheios de doenças, todos massacrados por flechas, adagas e picaretas em um banho de sangue. Maypan empalou um deles vivo em uma estalagmite. Vindo de uma professora que geralmente dava preferência para métodos menos brutais e mais elevados de assassinato, Asiri não conseguia tirar da cabeça que a morte da aprendiz também a afetara, por mais que não quisesse admitir. Poucos soldados e carrascos dourados conseguiram fugir da invasão à masmorra naquela noite, e tanto Asiri quanto Naia tinham certeza pela voz, que foi o homem que atirou em Viacha.
*****
Aquela era, até agora, a maior casa que eles haviam encontrado na mo Ostrea, e talvez a maior construção, com exceção da Igreja Sucelliana no centro do povoado cercada por praças e estátuas de santos. Asiri emitia ecos para ter um panorama melhor da moradia. Dois andares, nove fileiras de portas e janelas sob um telhado que se projetava em varandas e colunas, o tipo de casa que se esperaria de um comerciante dourado próspero que ainda não era tão rico quanto os nobres sucellianos ou os Mapeadores, mas já se achava no direito de pisar sobre a cabeça dos pobres. Porém, algo naquele lugar não encaixava. Em duas das varandas, haviam canhões apontados para baixo. Atrás dos muros cercados de lanças e arames, uma respiração profunda e bestial e profunda ecoava junto ao som de passos pesados. Quando Elias bateu a aldrava de metal do enorme portão de madeira, aquela coisa entre a casa e os muros emitiu um rugido tão potente que Asiri conseguia senti-lo vibrar em suas veias.
- Mas que desgraça é essa? - disse Malindi.
- Pelos deuses, Elias, isso é um mapinguari? - questionou Asiri.
- Bom, digamos que esse cara tenta se precaver de todos os jeitos que não vão apagá-lo do mapa.
- Já vi líderes de gangues menos paranóicos.
Asiri ouviu o ranger de uma das janelas lá encima abrindo e fechando e depois passos percorrendo o jardim. Uma portinhola se abriu passando uma rajada em miniatura de vento frio, e logo depois, um cano metálico de um mosquete com a lâmina quase cortando o braço de Asiri.
- Eu estou obedecendo o toque de recolher! - gritou uma voz masculina velha e rouca do outro lado.
- Sou eu, Jacques. O Elias.
- Ah, Elias? Quanto tempo, meu velho amigo. Como anda essa sua lataria, hein? Deixe-me ver quem veio com você.
Um por um, Huayta, Malindi e Asiri o cumprimentaram desconfortavelmente através da portinhola, convencidos a revelar suas armas.
- Ah, sim, apenas jovens desviados do caminho do Império. Só um minuto.
- Ele age desconfiado assim com você sempre? - cochichou Huayta. O barulho das fechaduras no portão parecia durar uma eternidade.
- Não o julguem precipitadamente - disse Elias - Ele... já foi traído por pessoas que se diziam camaradas. E eu também.
Os portões opressivos abriram-se para trás, deixando uma rajada de ar frio passar junto ao rugido da madeira que acompanhava os da fera do outro lado.
- Podem entrar, queridos - disse o senhor, falando claramente como um Dourado de alta sociedade.
- Perdão, senhor - disse Malindi recuando - Você parece muito simpático, mas o seu cachorrinho não está tão receptivo para visitas.
- Ah, a Alice? Não tenham medo, ela sabe que eu não traria ninguém de má índole para dentro de casa, não é, minha linda? Além disso, eu deixei ela acorrentada por enquanto. Só não pisem no gramado, podem ativar armadilhas. Vem aqui, grandão - disse Jacques, e Asiri percebeu o calor totalmente distinto dos dois corpos se envolvendo num abraço.
Asiri sentiu Huayta e Malindi segurarem suas mãos, guiando-a pelo caminho pavimentado de terra.
- Gente, muito obrigado, mas eu consigo saber onde tem grama, o cheiro é dif...
- Shh, nós sabemos, Morceguinha, mas por enquanto ainda não estamos numa masmorra de Illapa.
- Ei - disse Huayta - Eu tô acostumado a receber ajuda por causa das minhas dificuldades. Não custa nada eu ajudar alguém quando eu posso, não acha?
- Eu... Ah, obrigada.
- Deuses - Malindi tremeu nas mãos de Asiri - O que é aquilo?
O corpo da besta revelava seus contornos sem precisar dos ecos de ecolocalização, apenas com seu calor, seu cheiro selvagem e o barulho das correntes que a prendiam. Mais de quatro metros de altura cobertos de pelos e com os braços e pernas potentes de um primata terminando em garras ceifadoras, mas uma cabeça baixa que aqueles que enxergavam diziam possuir apenas um olho e uma bocarra abrindo-se no meio do seu peito num abismo de dentes afiados e tripas. Esses predadores eram raridades em Itzamna pela caça esportiva sucelliana, a morte de suas presas e a perda de seus ambientes naturais para cidades e plantações. Muitos foram mandados para zoológicos da alta sociedade, mas Asiri já teve a oportunidade de testemunhar um mapinguari livre nas estepes de Illapa, mesmo seu habitat mais comum sendo as florestas. Ela nunca esqueceu o dia que aquele animal passou pelo acampamento de sua célula e a mestre Mayapan pediu que todos os assassinos se recolhessem para a caverna mais próxima se quisessem sobreviver. Porém, a fêmea que guardava a casa do Dourado parecia lentamente voltar a adormecer enquanto diminuía seus ruídos.
Asiri sentiu que pisava sobre um chão mais sólido e seus ecos a revelaram uma escada até a guarnição da porta principal
- Oh, desculpem-me a falta de educação, jovens - prosseguiu Jacques com um barulho de fechaduras na porta - Como se chamam? Apresentem-se, não precisam dessa timidez.
Os três disseram seus nomes enquanto a porta principal revelava o interior da casa. O cheiro de lamparinas de querosene unia-se com o de incensos para aromatizar o local. A ecolocalização de Asiri revelava uma sala alta cercada de colunas largas e escadarias para os andares superiores. Uma lareira, um grande sofá, mesas e assentos de madeiras provavelmente caras e uma cozinha de mármore.
- Então, Elias - perguntou Jacques fechando as portas - Como têm andado as coisas em Cassandra? Fiquei preocupado com você quando soube no periódico que a Academia te expulsou.
- As coisas melhoraram ou pioraram dependendo da sua perspectiva, Jacques. Perdi todo o prestígio, voltei aos guetos e fui perseguido, mas pelo menos voltei a fazer o que sempre deveria ter sido o meu dever: ajudar o meu povo.
- A última vez que vi uma casa dessas por dentro foi quando a gangue decidiu orquestrar um furto - zombou Huayta baixinho para Malindi, apoiando o cajado na parede.
- Eu vejo direto - ela respondeu - Nas memórias de gente morta, mas vejo direto.
Asiri ouviu um reverberar estranho vindo de um de seus ecos e deu pequenos socos na parede ao lado para ter certeza.
- Essa parede é oca - ela encostou o ouvido e bateu mais algumas vezes - Parece que... tem muita coisa armazenada. Armas, provavelmente. Cheiro de pólvora.
- Sai daí, garota - reprimiu Jacques, como se os três fossem crianças fazendo bagunça enquanto os adultos discutiam um assunto sério - Voltando ao assunto, por isso você voltou para a Baía? Sabe que as coisas não são mais as mesmas aqui, não é. Os Nokken tornaram o que já era uma tortura um banho de sangue. Bom, pelo menos para os mais desfavorecidos, admito que apesar de tudo ainda estou numa situação relativamente confortável.
- Bem... na verdade, não foi por isso...
Enquanto Elias explicava a operação dos mercenários do Governo Central, Asiri pôde ouvir um armário se abrindo no canto da sala. Ela sabia identificar Malindi sem a ecolocalização só pelo perfume das ervas de Sekhmet que usava, comum entre os prateados, e conseguiu perceber o som da rolha da garrafa sendo removida e o forte odor de aguardente.
- Mal! - protestou Asiri indo em direção à prateada e segurando suas mãos antes que ela levasse a garrafa à sua boca - A gente vai enfrentar um exército de piratas, você tá maluca?
- Como você me encontrou aqui?
- Ainda vai se acostumar a não conseguir se esconder de mim.
- Você realmente me ama, não é, cabide de adaga? - brincou ela de uma maneira forçada para logo depois beber o aguardente.
- Você já bebeu demais hoje de manhã - disse Asiri arrancando a garrafa das mãos de Malindi e derrubando parte do líquido nas duas.
- Malindi - Huayta se aproximou - Ela tem razão. Precisamos nos reservar para o ataque.
- A gente pode literalmente morrer amanhã.
- Mal - interrompeu Asiri. A prateada permaneceu em silêncio até pegar a garrafa e tampá-la.
- Eles não param de falar - disse Malindi, mas sem o tom irônico ou animado tradicional, e sim com uma voz baixa e abatida - Eu não vou conseguir dormir direito, eles só param de falar quando eu bebo. Me entorpecer deixa minha guarda mais baixa.
- Quem são eles? - perguntou Huayta.
- Os mortos. Os mortos não me deixam em paz.
- Mal, eu consigo fazer um talismã ou uma poção...
- Por acaso você sabe o que se usa de oferenda para inibição de necrolalia? Pedaços do corpo do próprio necromante, Huayta. Se fosse meu sangue, duraria quinze minutos ou eu teria que perder sangue demais. Pra ser minimamente viável, eu teria que arrancar um dedo. Igual... - a voz da necromante começou a falhar - Igual minha mãe começou a fazer antes de virar uma alcoólatra e depois uma Ensandecida e então ser levada até os manicômios do Parietal. Quer saber porque a Papa-Sombras não está num manicômio, Meio-à-Meio? Talvez ela seja muito boa em fugir, mas ela também é uma Dourada. Para gente como nós é que sobra toda a falta de empatia que eles têm a oferecer.
- Eu sei disso, Malindi, mas vamos voltar ao problema de agora. Uma poção de sono então? Já faço há muito tempo quando a minha dor atrapalha na hora de dormir. Eu sei como posso te ajudar. Estamos combinados?
Malindi pôs a garrafa de volta no armário.
- Combinado então.
- Jura que não vai beber mais nada enquanto estivermos atrás do Jansen? - perguntou Asiri.
- Olha, jurar é algo muito sagrado para um prateado.
- Para um Assassino da Noite ídem - Asiri deu um soquinho carinhoso no ombro de Malindi -, baixinha.
- Como assim, Elias?! - a voz de Jacques ressoou furiosa do outro lado da sala nos sofás onde eles se sentavam - Você está se aliando à Coroa? Não, eu não vou perder outro companheiro de batalha para esses vermes de novo como aconteceu com o Sebastian.
- Não fale dele de novo na minha frente - esbravejou a voz mecânica de Elias - E eu não estou lutando como um aliado. Estou ganhando tempo, talvez os anticitéricos consigam driblar o Império com um acordo de paz. Esperar a guarda baixar para então atacar, entende?
- Sebastian - sussurrou Huayta.
- Sabe quem é? - perguntou Asiri.
- Infelizmente sei.
- Mas você não entende o que isso representa? A caçada pelo crânio, mesmo que vocês não o encontrem, é a manutenção da velha ideologia, da velha estrutura, do falso direito de sangue.
- "Ela entregou sua vida para não entregar o Império, e fez milhares entregarem as suas para erguê-lo das cinzas."
Asiri não sabia dizer como, mas a voz de motor de Elias parecia cabisbaixa e arrependida.
- Se você me permite a pergunta, senhor - Malindi se aproximou -, do que exatamente você está fugindo? Quem está atrás de você para que você precise deixar essa casa tão protegida? Porque nessa cidade não são os Nokken e, com todo o respeito, mas de onde viemos, quem tem que se preocupar com ser perseguido e assassinado não mora em casas tão luxuosas e geralmente não tem os dois olhos dourados.
- Mas é com todo o prazer que eu lhe explico isso, minha jovem. Eu e meu irmão Sebastian, que infelizmente trocou de lado nessa guerra, fomos os fundadores do Movimento Independentista pela República Democrática Popular em Sucellus do Sul.
- Uau - ironizou Malindi - Entendi absolutamente tudo. Parece muito perigoso, estou até arrepiada. Modéstia parte, mas a Sangue e Prata com todos os problemas tem um nome mais chamativo.
- Ah, ideias podem ser muito perigosas, garota. Sabe do que está acontecendo além da fronteira? A República de Símon? A derrota do Império Taranis?
- Acredito que quase todos saibam - respondeu a necromante puxando uma cadeira para sentar-se ao lado da lareira.
- Bem, eles colocaram em prática o que eu e meu irmão estávamos tentando organizar ao norte deles há décadas, desde quando fomos estudar nas universidades de Veles, eu física e ele engenharia, e conhecemos essas ideias novas. O Partido Independentista era minúsculo aqui em cima, mas desde a vitória da Revolução das Adagas de Gelo que botou o Império Taranis para correr no sul do nosso continente e instaurou a primeira nação independente de Itzamna em séculos, ele tem crescido.
- Já vi as cedes deles em Cassandra, mas nunca me envolvi - disse Huayta dirigindo-se à cozinha, provavelmente fazendo a poção de sono para Malindi - Eles rejeitam as gangues. Dizem que alguns caçadores de bruxas são de lá.
- Propaganda, querido. De fato rejeitamos as gangues, mas nunca seríamos a favor do assassinato de inocentes. Sabe o que defendemos? Uma democracia.
- Que seria...? - questionou Asiri sentando-se ao lado de Malindi.
- Imagine um modelo de sociedade onde o povo pode escolher seus próprios governantes - prosseguiu Jacques empolgado - Onde todos têm direitos iguais perante a lei, sem privilégios de sangue ou de etnia, onde ninguém seja obrigado a seguir uma religião de estado, com cada um livre para cultuar seus próprios deuses, escolas para todas as crianças, direitos para os trabalhadores rurais e urbanos... e onde não haja reis ou imperadores. E é por isso que eles querem me matar.
- O que?! - Asiri levantou-se da cadeira.
- Sim, garota. "Poder a todos os povos, morte a todos os reis".
- Você tem noção do que está defendendo? Quer dizer, tudo o que você disse é nobre e necessário, até a parte de...
- Não haverem reis ou imperadores?
- Mas é claro! Não tem noção das implicações disso? Esse tipo de ideia só poderia vir dos dourados...
- Eu entendo que possa parecer radical para nós que crescemos a nossa vida inteira sem conhecer outra forma de sociedade. Eu mesmo, quando ouvi isso a primeira vez, talvez mais jovem do que você, achei que parecia um absurdo. Nós não conhecíamos um mundo onde reis não existiam ou em que famílias não permanecessem séculos no poder comandando um povo que não tivesse outra opção além de arriscar a vida em uma revolta se seu governante fosse um tirano. Mas agora nós temos, Asiri. Os reis de Taranis tremem em seus tronos com a força da revolução no sul de Itzamna, para eles só sobrou o comércio de óleo de baleia no Arquipélago de Bahamut, e logo, logo, centenas de outras famílias reais sentirão o mesmo.
- Mas e a lealdade? Precisamos de um líder escolhido pelos deuses para liderar nações tão gigantescas. O que você acha então? Que os Sucellianos estavam certos quando tentaram matar Quetzal?
- Claro que não. Eles não a mataram para libertar um povo, e sim para escravizar milhares. Acontece que essa época ficou para trás há mais de duzentos anos. É hora de pensarmos em algo novo. Inclusive, eu estudei a organização dos Assassinos da Noite por conta própria fora das minhas obrigações acadêmicas, e vocês elegem os seus representantes dentro das células, não é? Se um líder de uma pequena comunidade pode ser eleito, por que não o de uma nação.
- Mas... são coisas totalmente diferentes.
- Asiri, quase todas as organizações rebeldes do continente admiram os Assassinos da Noite, seja pela sua bravura e perseverança ou por sua estratégia e organização quase imbatíveis. Vocês são um inimigo do Império que se recusa a cair. Entretanto, nós somos seres humanos e todas as organizações são falhas por mais nobres que sejam. Sabe qual é o principal problema dos Assassinos da Noite, Asiri?
Jacques levantou-se com sua bengala e aproximou-se da assassina.
- É que vocês acham que líderes podem estar acima da razão. Vocês levam a lealdade ao líder até as últimas consequências. Nós compreendemos que, quando os líderes ultrapassam os limites, os liderados têm o direito de trocá-los - Asiri só conseguia lembrar da voz furiosa de Naia dizendo "Nós saímos da linha, mas pelo bem dos nossos líderes. Fomos mais leais do que muitas das vezes em que seguimos as ordens." - Ninguém deveria ter tanto poder quanto os reis têm. Me diz, se os Nokken conseguissem encontrar o Crânio de Quetzal, você juraria lealdade a eles também? Inclusive, eu gostaria que perguntasse à sua amiga prateada se ela, vinda de outro povo tão distante, com outra história e outra crença, se identifica com qualquer coisa que a Quetzal represente para os púrpuras.
Asiri virou-se para Malindi, que estava surpreendentemente quieta e atenta ao seu lado. Asiri a ouvia dedilhando aleatoriamente o oud.
- Eu não sei, Jacques - disse ela ainda tocando o instrumento - Sinceramente, só embarquei nessa porque talvez possa salvar meus pais. Mas... - Malindi tocou um rápido solo -, "Poder a todos os povos, morte a todos os reis" me parece uma ideia bem interessante. Eu tenho um pouco de dificuldade de seguir qualquer ideal por razões que eu não quero falar, mas quando eu e minha família mais precisamos, um movimento em que a gente confiava nos deixou de lado.
- Todos os movimentos falham em algum momento, Malindi - prosseguiu Jacques - Humanos são falhos, humanos erram. Mas, quando temos ideais pelos quais lutamos, nós aprendemos a não fugir dos nossos erros, e sim usá-los para nos tornarmos mais fortes.
Huayta veio da cozinha com um frasco em mãos e o deu a Malindi. A bruxa bebeu o líquido e, em questão de segundos, despencou no piso como uma pedra.
- Acho que ela pode dormir no sofá para não corrermos o risco de acordá-la - disse Jacques - Temos quartos para os três passarem a noite. Só peço que pensem no que eu falei. Usem o poder que vocês têm em suas mãos para lutar contra quem os destrói.
- Elias - perguntou Asiri - Você concorda com ele?
- Poder a todos os povos - respondeu o autômato - Morte a todos os reis.
Asiri não queria mais discutir. Precisava de paz. Paz para pôr em prática uma vontade que a consumia desde o dia do enforcamento.
- Jacques - perguntou -, tem argila?
- Ah, tenho, gosto de trabalhar com escultura de vasos no tempo livre. Por que a pergunta?
- Posso usar um pouco?
*****
- Irmãos e irmãs, cegos e cegas - o chamado de Maypan ecoou pelas montanhas e encostas ao redor daquele vale raso e contornou os corpos de quatro pessoas sobre um altar de pedras empilhadas na forma de uma lua crescente - Nós tivemos fracassos e vitórias na batalha dessa noite. Libertamos quase duzentos inocentes que eram torturados naquela masmorra, que agora têm a chance de ser livres e, se desejarem, integrar as fileiras das nossas células. Porém, como em quase todos os combates, nem tudo se trata de vitórias. Quatro bravos guerreiros morreram essa noite, três que estavam presos dentro das minas e foram covardemente assassinados pelos carrascos armados... - a muralha que era sua voz embargou por um segundo, uma vontade reprimida de lamentar com lágrimas como todos os que estavam ali presentes - ... e a irmã Viacha, uma das minhas mais fiéis aprendizes.
Os primeiros raios de sol começavam a esquentar a pele de Asiri. Toda a célula de Maypan estava reunida no funeral, junto com os parentes daqueles que perderam a chance de ver o mundo fora da masmorra, num canto de lamúrias que faria um estranho questionar a fama dos Assassinos da Noite como guerreiros do silêncio, com músicos tocando tambores e flautas para a passagem dos espíritos. A irmãzinha de Viacha abraçava as rochas do altar, alto demais para ela subir. Asiri abraçou Naia e ouviu as lágrimas de Alcalá pingarem na estrutura de madeira que segurava em suas mãos, sua mais nova parte do corpo. O guerreiro precisou amputar sua perna.
- Está tudo bem, crianças - sussurrou Cali abraçando os soldados um por um - Ela está em um lugar melhor agora.
- Os deuses guiarão suas almas para um lugar melhor, como os guerreiros sofridos e honrados merecem - prosseguiu a mestre - Eles nunca deixarão os nossos corações. Seus espíritos sempre estarão conosco, guiando nossas flechas, despertando nossos corpos para o combate e permitindo, como todos aqueles que vieram e se foram antes de nós, que nossos mundos não precisem ser corrompidos pelos nossos olhos para lutarmos pelo futuro. Que os deuses os protejam. Vida longa, aos Assassinos da Noite!
- Vida longa... - gritou Asiri junto à multidão, sentindo-se viva pela primeira vez desde aqueles tiros - ... aos Assassinos da Noite.
Com um o soar das Flautas dos Espíritos, o momento mais simbólico dos funerais de Assassinos da Noite era anunciado. Dos vales às montanhas, as cavernas que cortavam Illapa cuspiram hordas nas proximidades do altar. Pequenas criaturas voadoras emitindo milhares de ecos, agindo como um redemoinho atraídas pelo instrumento ultrassônico que correspondia à comunicação da sua espécie. Morcegos.
Asiri ouviu os bandos de morcegos giraram ao redor dos cadáveres numa perturbadora massa de informações sonoras. A Ordem acreditava que aquelas pequenas criaturas podiam levar a alma de um guerreiro à outros planos de realidade, a um paraíso dos Assassinos da Noite. Quase uma hora se passou antes que os bandos se dispersassem para carregar o legado junto às memórias daqueles que um dia amaram os mortos, e quando os últimos mamíferos voadores iam embora, tochas foram atiradas ao altar para queimar o que restou dos guerreiros cegos. Aquela não seria a primeira perda de Asiri de amigos em campo de batalha. Algum dia ela se acostumaria e aprenderia que essa era a regra da guerra. Mas não naquela noite. A adolescente Asiri deixou uma estatueta de argila com o rosto de Viacha ao lado do altar.
- Eu vou vingar você.
*****
Asiri não precisava das luzes de uma lamparina para revelar o mundo enquanto o resto da casa dormia. Deixara a porta aberta para a entrada do ar. Seus dedos percorreram as estruturas de argila ainda molhadas sobre a mesa no quarto que Jacques separou para ela. A sensação da substância fria e frágil sendo moldada à sua vontade a relaxava, mesmo que precisasse amarrar um lençol no corpo para não sujar as suas roupas. Olhos, narizes, braços, pernas e cabelos. Eram quatro pequenas estatuetas, uma para cada um de seus fantasmas. As tranças de Uyuni, o antebraço de madeira de Sucre, as cicatrizes no rosto de Maypan. Ela sentiu que uma presença vinha dos andares abaixo, fazendo as frágeis escadas rangerem e deixando o baque de passos pelos ladrilhos do piso. Mesmo já tendo o conhecimento que algo a espreitava, não pôde evitar dar um pulo para trás e se sujar mais com a argila.
- Olha só a dorminhoca acordada de noite - brincou Huayta. O calor da lamparina quase ofuscava o de seu corpo - Ah, desculpa, eu te assustei?
- Não, tudo certo. Só não esperava que você estivesse acordado a essa hora.
- Acordei com dor - disse o Apuinti - Precisei encher o talismã de novo, aí ouvi o barulho aqui em cima e vim ver se não tinha nada de errado. Dormir com isso é uma porcaria, mas não tem jeito. Agora estou melhor, a dor tá quase parando. E você, tá bem?
- Sim, claro, é só porque eu funciono melhor de noite. Fui treinada para isso, dormir de noite e acordar de dia bagunça um pouco o minha mente. Bem, está no nome da ordem, não é? Não somos os Assassinos do Dia - brincou, percebendo que os músculos de sua face se erguiam.
Huayta deu uma curta risada
- Em dois dias essa é só a segunda vez que vejo você sorrir. Gosto de ver você feliz. Digo, eu mal te conheço, mas eu sei do que você passou esses últimos dias e realmente sinto muito.
- Você não sabe nem um décimo, amigo. Mas muito obrigada.
- Posso ver o que você está fazendo? São esculturas?
- São. Maypan, Sucre, Uyuni e Iva. É para homenagear as pessoas que perdemos.
- É tradição da Ordem também?
- Não. É só algo que eu gosto de fazer mesmo. Às vezes tenho dificuldade de saber o quanto dentro de mim é Asiri e o quanto é só a Assassina da Noite. Isso é uma das poucas coisas que me faz sentir única. Não que isso seja necessariamente bom.
- Bom? Isso é ótimo, Asiri. Você é uma artista. Essas esculturas são tão... reais. Como você fez isso sem...? Enfim.
- Não precisa disfarçar suas perguntas, Huayta, eu sei que sou cega e me orgulho disso. Bem, se eu sentir o rosto de uma pessoa com as mãos eu consigo guardar com precisão como é a superfície. Sabe como fazemos o mapa de uma masmorra pelo som? É como se eu pudesse ter o mapa de um rosto pelo tato - ela limpou a mão direita no pano e a ergueu na direção de Huayta - Inclusive, você me deixa... tocar no seu rosto?
- Hum, claro - respondeu Huayta estranhado. Asiri sentiu cada centímetro do seu nariz, das orelhas, dos cabelos que caíam sobre a testa.
- Você é bonito, Huayta. Ainda quero sentir o rosto da Malindi, ela também deve ser. O do Elias também, só talvez seja um pouco mais difícil de entender por... motivos óbvios.
- Obrigado - o tom de voz sem graça de Huayta era para Asiri o que ela ouvia a respeito de bochechas ficando vermelhas dos que enxergavam - Eu te conheço muito pouco, mas gosto quando você não está... sabe, sendo uma assassina. Entende? O que você disse pra Malindi é porque você se preocupa com ela, mesmo que não saiba.
Asiri pensou que, talvez agora, ela estivesse "vermelha", seja lá o que isso significasse.
- Eu sou fraca, Huayta. Eu não consegui salvá-los, não morri com eles e não tive coragem de vingá-los como a Naia.
- Você é muito mais forte do que imagina. Só por ter passado por tudo isso e ainda estar aqui, sem ter desistido. Eu entendo um pouco de como você se sente. Pessoas que eu amava morreram ao meu redor. Duas das mortes foram em parte culpa minha. Não quero falar muito sobre isso. Não tenho como dizer para você não se sentir mal se eu mesmo não descobri até hoje como, mas a vida segue, Asiri. Todos nós somos maiores do que isso.
- Eu não sou maior do que a Ordem, Huayta. Eles me salvaram. Era para eu estar cavando pepitas de ferro com picaretas agora, engolindo pedras.
- Não é a Ordem, Asiri, é o Império. É tudo o que eles nos fizeram perder. No final das contas, tentando nos enfraquecer, eles só nos deixam mais fortes. No fundo sabemos disso, só precisamos pôr em prática.
- Você acha que o velho Jacques tem razão? Poder a todos os povos com certeza, mas...
- Morte a todos os reis? Acho uma frase bonita. Na verdade, com todo o respeito, acho que concordo sim.
- Então porque está procurando o crânio de uma rainha?
- Anistia e dois milhões de Triunfos.
Huayta conseguiu arrancar mais uma fraca risada de Asiri.
- Eu não aguento você e a baixinha.
Interrompendo a conversa, um ruído chamou a atenção de Asiri. Trotes de cavalos distantes vindo aos montes, e muito mais rápido do que uma simples patrulha do toque de recolher.
- Tá ouvindo isso?
- Isso o que?
- Alguém está se aproximando.
- Me desculpa se não tenho audição sobre-humana, mas não escuto na...
A fera rugiu. A fêmea de mapinguari pôs um ponto final no debate.
- Eles vão mesmo quebrar as regras da Louise - disse Asiri - Alguém quer invadir a casa.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top