3 - Os mortos não te deixam ir

Malindi

"Por que vocês não calam a merda da boca?", protestou em silêncio a bruxa de olhos prateados sentada sozinha em sua cela. Ou talvez nem tão sozinha. As crises de necrolalia se tornaram mais frequentes desde que Malindi foi presa há três semanas pela polícia de Deméter em seu humilde comércio, acusada de bruxaria, necromancia e estelionato. Este último ítem era o que a mais revoltava, pois, como dissera no júri:

- Que eu pratiquei bruxaria eu não tenho como me defender, mas estelionato? Modéstia parte, eu sou uma prestadora de serviços exemplar, mas eu não posso fazer os mortos dizerem o que o cliente quer ouvir, se o meu produto são respostas, ninguém tem como reclamar se ele não sai como desejado. Inclusive, meritíssimo, não é por nada, mas tem o espírito de um servo que morreu construindo esse edifício chorando no seu ombro agora.

A bruxa deu sorte que as autoridades a pegaram antes do tribunal popular. Se fosse uma vila pequena, a própria população teria jogado seu corpo na fogueira. Malindi tentou se controlar para não rir sozinha ou gritar dentro da cela sem janelas. Tinha que tomar cuidado com qualquer ação sua diante do que era bizarro para todos ao redor e comum para ela: vozes de pessoas mortas o tempo inteiro falando na sua cabeça, às vezes uma ou duas, às vezes dezenas durante a necrolalia, algumas sem rosto algum, outras com rostos que mesmo translúcidos, transmitiam todo o horror de sua condição fantasmagórica, quando não eram desfigurados pela causa de seu falecimento. Em sua pequena moradia infestada de cupins nas ruas poeirentas de Deméter ou na tenda de necromancia de sua família, ela poderia mandar aquele monte de espíritos calarem a boca em voz alta, gritando furiosa como um dono que viu o cachorro rasgar o sofá inteiro e urinar no tapete, e geralmente funcionava. Porém, naquele lugar, com os olhos dos vivos a cercando por todos os lados, falar "sozinha" ou qualquer ato fora do comum poderia levá-la a um destino muito pior do que aquela prisão: o complexo de manicômios do Parietal em Cassandra. Se era para enlouquecer com seus vinte anos, preferia que fosse com os berros dos mortos e não dos vivos.

Mesmo entre aqueles choros, lamúrias e conversas em línguas que não entendia e quando entendia, já nem se importava mais em prestar atenção, Malindi conseguiu ouvir as celas sendo abertas e os passos dos prisioneiros pelo corredor acompanhando o que parecia o canto de uma ave nas dezenas de trombetas de um exército. Um barcávis. Atrás dos vultos transparentes de almas perturbadas, as paredes de tijolos negras eram perfeitamente visíveis, assim como o guarda meio-púrpura que atravessava o corredor com as chaves balançando em seu bolso. O quadrado com as grades no portão de ferro eram altas, mostrando apenas o busto do indivíduo corpulento se afastando sob os raios de sol. Malindi se levantou cambaleando e desviando da latrina fedorenta e da beliche em sua cela humilhantemente apertada. Havia mais uma bruxa que dividia com ela o colchão puído e cheio de insetos, mas ela foi executada com outros prisioneiros rebeldes que tentaram uma fuga. Além de bruxaria, ela foi acusada de participar de uma rebelião de camponeses na Capitania das Colheitas, a região das Grandes Plantações, da qual Deméter era capital.

- Oi! - gritou Malindi para o guarda em Sucelliano com seu inconfundível sotaque kahinense - Aqui!

O guarda virou seus olhos para dentro da cela e Malindi precisou se pendurar nas grades para ter seus um metro e cinquenta vistos. Aquela prisão fedia a dejetos humanos, chamarizes para moscas, baratas e Detritívoros abafados pelas paredes sufocavam mais do que a fumaça de um trem.

- O que você quer comigo de novo, menina insuportável?

- Por que eles estão saindo e eu não? - Malindi sorriu, curvada como um sapo com os pés no batente da grade e as mãos nas barras enferrujadas - Só a título de curiosidade, sem nenhum interesse prévio, sou uma mulher que gosta de adquirir conhecimento.

- Qualquer dia desses você vai pra forca igual sua amiguinha da turma do facão - disse o guarda se aproximando, fazendo referência à arma símbolo das revoltas camponesas - Uma general cassandrina chegou aqui ordenando o recolhimento de prisioneiros para serem mandados à Capital de barcávis. Mas essa cela não estava na lista.

- Sabe por que estão fazendo isso? E por que de barcávis e não de trem.

- O motivo eu não faço ideia. Agora, os trens estão todos obstruídos, há soldados do Exército Dourado bloqueando todas as linhas.

"Cassandra", dizia a mente de Malindi enquanto suas ideias começavam a se conectar. Ela já não conseguiria voltar aos seus negócios sendo procurada em Deméter, mas talvez uma outra cidade pudesse ser não só uma chance de recomeçar como, talvez, de algo mais ambicioso: salvar seus pais dos manicômios do Parietal, se é que ainda estavam vivos.

- Qual o seu nome mesmo?

- Juan do lado sucelliano. O nome nativo não interessa. Por que?

- Não precisa ter vergonha, colega. Eu tenho uma proposta para você.

Juan a olhou de cima abaixo de forma sugestiva e guardou as chaves no bolso encarando sua anca.

- Não, obrigado. Sou muito bem casado.

- O que? Acha que eu me rebaixaria assim? Não era isso que eu tinha em mente.

- O que mais você poderia me dar em troca então? Você devia estar numa lavoura, prateada. Se tivesse ficado, lá não teria sido presa.

- Tá se achando o maior dourado de Deméter? Olha a cor dos próprios olhos no espelho, amor. Escuta, você perdeu alguém que você ama, talvez recentemente, e isso não foi uma pergunta e sim uma afirmação. Todo mundo nesse continente maldito perdeu. Estou certa ou estou errada?

O guarda encarou a parede com tinta laranja descascando por um instante, bufando enquanto os tensionamentos de raiva em seu rosto se desfaziam dando lugar a um semblante de luto e vazio, como se suas muralhas saíssem com o ar pelo nariz.

- Minha mãe. Minha família por parte dela é quase toda da Baía dos Lampiões e... - o tensionamento em seu rosto voltou - Os Nokken a mataram. Na invasão à Néftis no mês passado, os pescadores dos vilarejos vizinhos tentaram se rebelar. Um navio nokken disparou tiros de canhão nas palafitas, tudo foi reduzido à cinzas. A Guarda Imperial mandou uma carta a todos os membros das Forças de Defesa que perderam algum parente próximo na invasão. Eles disseram... - lágrimas começaram a se formar dos seus olhos, sem escorrer ainda - Eles disseram que encontraram o corpo dela totalmente desfigurado no manguezal preso em pedaços da própria casa. O que não estava carbonizado estava sendo devorado por gaivotas e caranguejos. Não conseguiram mandar o corpo para ser enterrado porque os Nokken encheram a divisa de tropas.

Malindi se sentia mal por não se sentir mal o suficiente com a história, o paradoxo da compaixão dos necromantes. Eram tantas mortes brutais, corpos destruídos das maneiras mais repulsivas e toneladas de sentimentos morbígenos que chegavam a seu conhecimento, muitas vezes sem que ela pedisse, que aquela história era só mais uma.

A invasão dos Nokken na Baía dos Lampiões já durava quase dois anos e, para a maioria dos habitantes da Itzamna longe do mar aquilo não afetava mais do que algumas histórias tristes, soldados recrutados à força deixando suas famílias, a ausência de produtos de origem marinha nas prateleiras ou uma pequena queda de lucros dos Mapeadores, os grandes donos de terra que dominavam a capitania. Talvez, se ainda estivesse na Sangue e Prata, Malindi teria visto imigrantes parando de chegar. As exportações e importações entre Sucellus e a sua colônia estavam despencando, com os navios tendo que deixar portos cada vez mais ao sul e tremendo serem capturados por piratas Nokken, mas para os pobres do continente, quase tudo o que consumiam era plantado e produzido em Itzamna. Porém, um medo garoava sem parar de norte a sul do continente, a apreensão constante de que "os Nokken estão chegando", vinda do oceano junto ao vento e aos soldados voltando mutilados. Sucellus já era um invasor conhecido, uma chaga que estava no continente há mais de duzentos anos e havia alcançado todos os cantos de Itzamna com exceção de algumas aldeias isoladas na Floresta da Lua ou as inabitáveis Cataratas do Esquecimento. Ninguém que estava vivo conhecia um mundo onde o Império não era soberano. Porém, os Nokken eram envoltos numa névoa de mistério, odiados e odiadores de sucellianos, nativos, e prateados. A magia também era proibida para eles? Diziam os boatos que eram invasores principalmente marinhos, menos eficientes em terra apesar de imbatíveis no combate naval, mas e se desistissem de atacar a costa para avançar ao interior?

- Se você pudesse dar um último adeus à sua mãe...

- Por que você está perguntando isso?

- Porque eu posso falar com ela.

- Tá brincando com a minha cara?

- Você sabe por que eu fui presa, Juan?

Ele ergueu uma sobrancelha ao retorcer da cabeça que conectava os pensamentos.

- Você pratica magia necromântica?

Malindi sorriu. Já chegara em uma fase da vida onde enxergava que ter essa habilidade era uma maldição, mas às vezes poderia ser bem útil.

- Bem, você só vai descobrir se eu sair daqui.

- Eu não te deixo sair enquanto não falar com a minha mãe. A conversa vai ser dentro da cela.

- Com a chave nas minhas mãos

Juan parou para pensar, e encaixou a chave no cadeado. Malindi pulou de volta para o chão e viu a porta se abrir, revelando o corpo inteiro do guarda, a farda azul, amarela e verde e a cinta com um revólver e uma espada que ele poderia muito bem usar para deixá-la ao lado dos mortos que conversavam com ela. Era uma estratégia arriscada, mas para alguém que atuou fora da lei abriu mão de qualquer sanidade para fugir da servidão, os riscos eram parasitas que ela já se acostumara, tal qual os fantasmas. Já conseguia sentir a necrolalia se dissipando, mas os fantasmas não desapareceriam de vez. Eles nunca desapareciam.

Malindi pegou uma tigela de barro no canto da beliche que usara para comer alguma das sopas com gosto de lama oferecidas aos prisioneiros. No fundo dela, um magioglifo com forma de dois braços se segurando, um deles cortado por linhas transversais, foi gravado com uma parte pontuda da colher enferrujada e horas de esforço. O tédio leva os humanos às ideias mais criativas e idiotas.

- Você mantinha isso aqui dentro?

- Acha que eu nunca planejei dar o fora daqui desse jeito? Acontece que num dia normal eu teria que subornar umas dez pessoas até sair da prisão para talvez conseguir fugir de volta pra cidade sem ser vista. Mas vamos ao que interessa, eu preciso do seu sangue, de preferência com as suas lágrimas.

- O que?!

- O ideal seria alguma parte do corpo dela para atrair o espírito através da Barreira. Se tivéssemos o corpo inteiro ou ela tivesse morrido por aqui, poderíamos até fazer o seu fantasma ficar visível e você falaria direto com ela sem essa minha carinha linda e perturbada como intermediária, mas já que não temos, podemos usar partes do corpo de alguém que tinha uma forte conexão emocional. A mistura também serve de oferenda para manter o feitiço funcionando.

- Eu não vou dar o meu...

- Você quer falar com a sua mãe ou não?!

Juan permaneceu estático e pensativo antes de desembainhar a espada e fazer um pequeno corte nas falanges de dois dedos da mão esquerda. Malindi só se sentiu segura para aproximar a vasilha dos dedos e coletar o gotejamento vermelho quando Juan guardou sua espada chorando baixinho. Imediatamente, ela encostou o objeto de barro na bochecha do soldado, esperando as gotas salgadas se dissolverem no vermelho, e passou alguns segundos alternando entre o sangue das mãos e as lágrimas no rosto.

- Acho que é o bastante. Você tem algum objeto de conexão emocional com ela? Ajuda a chamar a alma através da Barreira.

Juan abriu a farda e vasculhou nos bolsos da camisa branca até retirar de um deles um colar feito com pequenas conchas de moluscos. Ostras, mexilhões e búzios, descascados e esbranquiçados pelo tempo como as paredes daquela prisão. Ele a entregou o colar de cabeça baixa sem dizer uma palavra, parecendo ter vergonha do objeto, e Malindi sabia o porquê: as pulseiras transmitidas em forma de herança familiar eram uma tradição de quase todos os povos nativos de Itzamna, e ela já recebera dezenas delas de clientes que queriam falar com os parentes mortos. Para os que viviam próximos à água doce ou salgada, as conchas eram quase sempre dadas pelas mães. A feiticeira pôs a pulseira dentro da vasilha, molhando-a com a mistura de água e sangue, escutando vozes tão distantes e distorcidas que pareciam ventos definindo-se aos poucos vindas do horizonte da morte. Era uma mulher falando.

- Segura a minha mão.

- Se você estiver armando alguma coisa ou se outro guarda vir a gente fazendo isso aqui... - disse Juan seguindo o pedido de Malindi e, com a outra mão, retirando o revólver do coldre - ... vai conversar pessoalmente com o capitão Nokken no Inferno.

Malindi precisava ignorar as ameaças e focar no feitiço. Repetindo de olhos fechados o mantra em sua língua de Sekhmet, ela tentava afastar as interferência de outras vozes mortas se aproximando. "Eu sou uma só com a Barreira, eu sou uma só com a Barreira". Ao ver a silhueta translúcida de uma senhora pescadora à beira-mar, a bruxa encostou a vasilha em seus lábios e bebeu toda a oferenda com apenas um gole, sentindo as conchas encostarem nos dentes e a pulseira cair em seu rosto. Sob efeito do feitiço agindo, o líquido desceu ardendo pela língua e garganta, a sensação de engolir fogo. Com ele, veio a náusea, os músculos do corpo inteiro se contraindo, a visão escurecendo e a dor de cabeça de trinta socos antes de sua percepção ser invadida por uma avalanche de imagens, sons e cheiros que nunca havia testemunhado antes da sua vida. Paisagens da Baía dos Lampiões, seis filhos crescendo até um deles se tornar o guarda que Malindi acabou de conhecer, redes de pesca e manguezais, os cidadãos do vilarejo correndo para se esconder em casa ao anoitecer, e é claro, a água do mar brilhando à noite, os lampiões que nomeavam aquele lugar. Ela viu bestas aquáticas, piratas, navios disparando canhões e o fogo devorando pescadores inocentes. Quando Malindi abriu os olhos, sentiu não ter controle do próprio corpo, enquanto observava seus próprios braços de pele retinta e corpo esguio com o mesmo vestido vermelho do dia em que fora presa, agora sujo e rasgado, analisando cada parte de si como se não pertencesse a ela. O coração disparou e o ar em seus pulmões congelou ao ver o guarda, como se não tivesse o conhecido há apenas alguns dias e descoberto seu nome há minutos. O feitiço de necromancia funcionou. A mãe dele estava dentro de seu corpo.

- Mas.... não é possível - disse o corpo da prateada com a voz de uma senhora Apuinti - Filho...

- Mãe.

Na condição de uma micro-pessoa presa dentro de seu próprio crânio e observando o mundo através das lunetas chamadas olhos, Malindi percebeu o corpo aproximar-se do guarda e abraçá-lo com toda a força que podia extrair de seus músculos. As lunetas estavam embaçadas de lágrimas. O abraço de Juan não tinha desprezo pela sua origem ou maldade em suas mãos, e ela pôde escutar o truculento soldado de Sucellus que espancava prisioneiros chorando como uma criança indefesa. Ele sabia quem realmente estava no controle daquele corpo agora.

- Mãe, você não sabe o quanto eu senti sua falta.

As palavras dos dois pareciam cada vez mais distantes para a "mini-Malindi" conforme a oferenda se esgotava. O ácido de seu estômago ameaçou vazar enquanto a garganta queimava, mas ela não deixou a dor tomar conta de seu corpo possuído. Já havia passado por aquele processo centenas de vezes antes e com almas, rituais e clientes muito mais traiçoeiros. Não soube dizer por quanto tempo o meio-púrpura e sua mãe conversaram antes que o estoque da oferenda acabasse totalmente e ela sentisse uma vontade incontrolável de vomitar. Já não havia mais energia mágica para bagunçar a Barreira entre os vivos e os mortos, e aquela alma precisava voltar ao lugar de onde ela veio. Malindi vomitou tudo o que havia em suas entranhas ao mesmo tempo que voltou a ter controle total de sua máquina de carne e falar com a própria voz. O feitiço estava feito.

- Já?!

- Nunca viu ninguém fazer um ritual desses, não é? - questionou Malindi cambaleando - Quanto mais longe está a pessoa que morreu, seja no espaço ou no tempo, mais difícil contatar e mais oferenda é gasta para falar menos tempo. São as regras da Barreira. E aí? Fizemos um combinado, não é? Prateados não descumprem sua palavra, e imagino que os púrpuras também não. A não ser que você deixe seu lado dourado vencer.

Juan ainda estava com os olhos vermelhos quando pôs a chave no cadeado e tirou Malindi de sua cela. Eles apertaram as mãos hesitantes uma última vez antes que a bruxa desaparecesse na multidão de presos se esbarrando em direção à saída.

Deméter se estendia por quilômetros do lado de fora com suas casas de madeira, barro e tijolos marrons ou avermelhadas circundando arenosas ruas de terra laranjas. Cactos e árvores ressecadas, equinos e bois magros ao redor dos poços, tudo enquanto os fantasmas daqueles que morreram de fome, caça à bruxas ou nas brigas de bêbados mais imbecis concebíveis vagavam rumo a lugar nenhum sem que ninguém além dos necromantes os vissem. A zona baixa, poeirenta e cravejada de balas da cidade, não muito diferente dos pequenos vilarejos de beira de estrada, sangrando entre os gramados das Grandes Plantações e as mansões luxuosas da Deméter rica onde os Mapeadores desfilavam com seus monóculos de ouro em carruagens movidas a vapor tal qual locomotivas. Mas aquela paisagem já era familiar para Malindi, uma terra sem lei onde famílias pobres descarregavam as mercadorias plantadas nas fazendas para os trens que as vendiam continente afora e eram assombradas por Pistoleiros e bandidos, onde cidadãos fiéis à Igreja de Sucellus que levavam os filhos para assistir a queima de bruxas pagavam Malindi e antes dela, sua mãe, para falar com os mortos quando não haviam olhos alheios para testemunhar sua hipocrisia. O que segurava seus olhos e os de dezenas sob os chapéus de abas largas que protegiam os rostos do sol eram os titãs emplumados que vieram à cidade.

Mesmo já tendo visto os barcávis algumas vezes antes, Malindi não conseguia evitar ser afetada por aquela criatura magnífica. Eram três barcávis, dois machos e uma fêmea, aves de vinte metros de altura desde suas patas dotadas com garras que poderiam rasgar uma carruagem se fosse ameaçado até a cabeça totalmente negra no topo de um pescoço longo e curvado em S, trazendo um proeminente papo vermelho, um longo bico como o de uma garça e um topete de penas vermelho-sangue e de um azul-escuro, espelhando o leque de penas em seu rabo, esvoaçando como cabelos e contrastando com o resto das plumagens que alternavam entre beges, amarelas e brancas, imitando as areias de um deserto. As fêmeas eram mais modestas, sem os penachos ou detalhes vermelhos. Apesar de ser um colosso com pernas vermelhas tão largas quanto colunas de um palácio, a composição vista de longe era a de uma ave esbelta e graciosa, um gigante gentil que observava os humanos com não mais do que curiosidade por esses seres tão pequenos e ainda assim tão engenhosos.

Não era comum que os barcávis fossem usados pelo Império Sucellus, sendo muito mais amigáveis com os nativos que os domesticaram e entenderam seu comportamento por séclos, e eram muito mais usados por comerciantes e às vezes organizações rebeldes. Alguns deles traíram seus povos e se aliaram aos Sucellianos e haviam até os que os usavam para saquear vilarejos como piratas de terra firme, mas suas aves não poderiam ser culpadas. Ainda eram animais, inocentes e dependentes das ordens humanas. Sobre as costas das aves, enormes estruturas de madeira semelhantes a navios sem vela acompanhavam o formato de seu corpo, com conveses movimentados, janelas para as câmaras internas, cordas e correntes. Nas janelas inferiores, quem estava do lado de dentro poderia ver as penas de suas asas incapazes de alçar vôo bloqueando a luz como cortinas, e na cabeça do barcávis, uma plataforma de madeira enorme semelhante a uma gávea conectada ao barco por uma corda trazia os domadores púrpuras que guiavam o animal pelos quilômetros de Itzamna. Seria uma cena comum de se encontrar antes da Grande Invasão, não fosse os canhões ou os brasões de Sucellus pendendo do convés.

Os prisioneiros foram empurrados até as plataformas circulares de madeira penduradas nas correntes que subiam e desciam ao giro das engrenagens. Malindi se sentia no balde de um poço e o vento assoprava os cachos de seus cabelos junto à poeira lá embaixo. As engrenagens e plataformas soltavam esguichos de fumaça quando se acoplavam ao corpo principal do "navio" e abriam suas portas por onde os prisioneiros eram empurrados mais uma vez, circundadas pelas penas com mais de dois metros. Cada um recebeu uma algema e uma corrente ao redor dos pés

- Acha que aqueles caras no trem estão realmente a mando do Elias? - perguntou um guarda dos andares inferiores ao colega. A estrutura era permeada por câmaras e níveis, conectadas com escadas que interrompiam o piso dos corredores, tudo iluminado a partir das aberturas como janelas nas laterais e abaixo de um convés.

- Eu não engulo essa história - respondeu o colega. Malindi podia ver tropas tentando conter uma briga ou um motim dentro de uma das celas da câmara de paredes marrom-claras - Acho que tem algo a ver com aqueles generais insubordinados.

- Algo sobre o harém do rei, talvez - propôs um terceiro soldado enquanto Malindi se esforçava para ouvir a conversa em meio aos gritos do motim. Desarmados, os prisioneiros foram rapidamente contidos. Era uma garota que tentara espancar um colega de cela com uma das pernas feitas de madeira.

- É um motivo fútil demais para uma revolta militar, mesmo com todo o escândalo - propôs o primeiro. Os olhos cinzas sem as vendas e as marcas em forma de Lua em relevo nos pescoços denunciavam à Malindi: seus colegas da cela ao lado eram todos Assassinos da Noite. De vez em quando, eles apareciam pelas Grandes plantações, não muito distantes das montanhas de Illapa. Já atacaram trens e até conseguiram matar um mapeador e o prefeito de uma cidadezinha.

- Será que é coisa da cabeça do... - Malindi foi praticamente jogada dentro da cela junto a outros prisioneiros, entre ladrões e rebeldes camponeses, e só teve tempo de ouvir uma última palavra antes das vozes ficarem distantes demais: - ...Hallstatt?


*****

A servidão humilha, causa dores de trabalhos exaustivos e punições sádicas em pelo corpo, emagrece pela fome, mas acima de tudo, ensina a negociar sua paz e seu sofrimento, já que nenhuma dor parece machucar o bastante. Malindi lembrava-se da mãe passando noites acordada, sob efeito de ervas estimulantes, do pouco café que conseguia pegar dos senhores de terras ou de poções que, se fossem descobertas, a levariam para a prisão. Tunis andava com seu burro carregando os materiais mágicos pelas estradas perigosas e vigiadas por assaltantes e sequestradores até os vilarejos e cidades pequenas ao longo das zonas rurais, chegando até mesmo em Deméter, tudo para oferecer seus serviços de necromancia. A maioria dos servos, como o próprio pai de Malindi, tentava vender suas galinhas ou verduras de suas pequenas hortas nos casebres que lhes eram destinados para talvez décadas de esforço depois, pagar a dívida que atava os laços da servidão. À noite, os poucos que se aventuravam eram os que tentavam arrecadar sua grana como Pistoleiros contratados, assaltantes, prostitutas ou bruxas.

Com tão poucos necromantes, demanda era o que não faltava, como Malindi conseguiu ver das vezes em que a acompanhou. Os clientes queriam falar com parentes ou amigos assassinados a mando dos Mapeadores, das revoltas camponesas ou por criminosos comuns, pessoas que morreram de doença, fome, exaustão ou executadas pelo próprio governo, mesmo que, naquela região, sua autoridade valese bem menos do que a dos donos de terra locais. Tunis também não distinguia se os clientes eram éticos ou não. De membros das gangues de Deméter que queriam retirar informações de companheiros ou rivais mortos à soldados da Guarda Imperial atrás dos planos de ataque de camponeses conversando com militares executados, ela aprendeu e ensinou à sua filha que, quando o mundo é sujo, não temos como sobreviver permanecendo limpos. Cada centavo de Triunfo, independente de quem viesse, era um passo rumo à libertação.

Viajando sobre o burro à noite com sua mãe pela primeira vez aos nove anos, Malindi tinha muitas dúvidas a tirar com ela enquanto viajavam rumo ao maior vilarejo da região, apenas com as estrelas, a lua e o fedorento lampião nas mãos da criança iluminando a estrada de barro. A pequena prateada sentava-se no colo da mãe, e atrás delas, balançavam tocos de madeira enrolados numa tenda vermelha junto a sacos com frascos de poções, tambores, talismãs e um Oud. Longe dos grandes centros urbanos, era possível ver os enormes aglomerados de cactos-do-ar, plantas que se uniam em colônias na forma de balões e flutuavam pelas planícies com os corpos cheios de gás. Haviam dois únicos aglomerados flutuando distantes e quase invisíveis a noite se não fossem pelo tamanho, inofensivas, mas que aumentavam o medo da pequena filha de imigrantes, imitando monstros à espreita

- Eu também vou ter que trabalhar com isso, mamãe? - perguntou. A vida inteira falando com sua família na língua de Kahina, o reino de origem deles, moldou em sua voz um sotaque quando falava sucelliano, mesmo nunca tendo colocado os pés em nenhum lugar de Sekhmet.

- Se os deuses forem piedosos, não, minha filha. Só estou te ensinando para o caso de... qualquer coisa que aconteça comigo, você poder ajudar a tirar nossa família dali.

- Mas o que você faz é ruim? Você ajuda as pessoas.

- Não, amorzinho. Em Kahina, eu ajudava as pessoas. Nós tínhamos uma sociedade de necromantes organizada, uma tradição de mulheres que ajudavam o nosso povo a ter contato com quem eles amavam, com um limite de rituais por mês para que nenhuma se tornasse uma Ensandecida, um povo que celebrava a vida, mas entendia que a morte era parte de um processo, de um ciclo. Aqui só há sangue e sede de poder, gente morrendo sem paz por armas e doenças. Eu vejo eles todos os dias, sofrendo. Alguma hora eu vou perder a sensibilidade para a morte e a violência e... isso me assusta.

- Você quer dizer que enxerga fantasmas?

- Ah, deuses das estrelas às cavernas - resmungou ela o ditado repetido por quase todos os povos de Sekhmet - Eu não devia estar falando disso com você. Existe uma Barreira que separa o mundo dos vivos e dos mortos. O lado de lá é, digamos, espelhado no nosso, como se os dois convivessem nos mesmos lugares e nos mesmos tempos, mas não no mesmo plano. Todo o trabalho de um necromante envolve enfraquecer essa Barreira em algum ponto para fazer contato entre os dois mundos. Algumas coisas tornam esse processo mais fácil ou mais difícil. Quanto mais tempo faz que alguém morreu, mais espessa fica a Barreira e mais energia mágica é necessária para penetrá-la. Se ela morreu com assuntos mal resolvidos do lado de cá, ou com uma conexão emocional muito forte com um lugar ou um objeto, ela ainda fica mais ligada ao nosso mundo por mais tempo. Agora eu te pergunto, sabe por que bruxas como nós são tão raras, Malindi? Por que a magia necromântica, das Cinco Áreas da Magia, é a menos praticada?

A garotinha permaneceu sem responder, brincando com os cachos da mãe segurados por uma presilha esculpida na forma da boca de um crocodilo, uma das lembranças que trouxe de seu continente de origem.

- Porque, quando você viola a Barreira muitas vezes, você sofre as consequências. Ela começa a ficar mais fina para você sempre, e as visões e vozes do lado de lá passam todas para o lado de cá. O tempo inteiro. Você começa a perceber que todos os lugares são mal assombrados. Por isso, vou lutar para que você nunca precise chegar a esse ponto, mas como a única filha mulher, você é quem têm o direito pela tradição de Kahina de herdar o posto de necromante quando eu partir. Só espero que todas as dívidas estejam pagas até lá e que você não precise atravessar a Barreira todas as noites.

- Pelo menos, eu vou poder falar com você mesmo depois que você for embora, não é, mamãe?

Malindi viu Tunis apertar as rédeas do burro e bufar, mas aquilo não parecia uma forma de expressar raiva e sim, talvez, extravasar tristeza. Ruídos estranhos de mato pisado podiam ser ouvidos nos arredores, e não eram do burro e nem de pequenos animais da planície.

- Lembra que eu falei que há coisas que dificultam a comunicação com certos espíritos? Que deixam a Barreira mais espessa? Ser necromante é uma delas. Quando você passa a sua vida do lado de cá dedicada a falar com o lado de lá, o lado de lá reivindica a sua alma quando finalmente a possui. Os mortos não te deixam ir. Silêncio - sussurrou fazendo o burro parar de andar.

Os sons dos galhos e plantas se mexendo chegavam mais perto em meio ao vento noturno. Malindi olhou para o chão e seu coração disparou quando viu uma pegada deixada por ninguém, o formato da ferradura de um cavalo. Ela tentou chamar sua mãe, mas foi repreendida com um indicador entre seus lábios e colocada do lado de trás. A mãe deu três toques em uma bolsa que pendia da cela do burro, algo que elas já haviam conversado sobre. Malindi tirou de lá uma garrucha que sua mãe escondia dos fiscais do Mapeador, obtida com algum vendedor escuso em Deméter caso precisasse defender seu comércio da Guarda ou de Caçadores de Bruxas.

- Podem se mostrar que eu percebi vocês! - disse Tunis em sucelliano com toda a potência que podia tirar de sua voz.

De dentro das sombras, dois olhos de fogo vermelhos sobre uma superfície de metal pareciam ter vindo do absoluto nada, uma face fantasmagórica que se agarrou nos pesadelos de Malindi sem que ela sequer precisasse dormir. Era a cabeça de um cavalo de metal com olhos de querosene, soltando vapor pelas frestas ao som de um relincho que mais parecia dezenas de placas de aço rangendo em fricção. O burro empacou e andou lentamente para trás, acuado.

Três cavalos, cada um com dois homens de chapéu de aba larga e balaclava, revelaram-se da escuridão ao cair de seus talismãs de invisibilidade. As duplas desceram dos animais apontando suas espingardas ou tirando revólveres dos coldres, cercando as viajantes por todos os lados. O mais alto deles desembainhou um sabre curvo e enferrujado e fez um sinal nem um pouco sutil passando o lado sem fio pelo pescoço. Dois cavalos eram de carne e o terceiro era um autômato, um animal inteiramente feito de metal movido a vapor. Engrenagens e cabos percorriam as frestas de seu corpo segmentado com a cor entre o cobre, o cinza do aço e a ferrugem, e na sua cela, um cilindro de metal com uma alavanca em cima. Aquilo era um lança chamas.

- Escuta aqui, prateada de merda - disse o homem - Você deve se achar tão inteligente, não é? As bruxas são sempre as mais soberbas a pisarem fora das leis. Quero ver você usar sua magia contra seis de nós. As gangues de magos estão oferecendo uma quantia muito boa por uns produtos desses - completou rindo e apontando para as mercadorias na cela com o sabre.

Tunis não respondeu absolutamente nada, apenas encarou os arredores como se pudesse ver algo além dos assaltantes e dos cavalos, escondido nos quilômetros de pastagens e matagais. Seus dedos amarravam as cordas que formavam a guia do burro.

- Você sabe o que deve fazer - prosseguiu o assaltante - Ou entrega tudo e faz exatamente o que a gente pedir ou morre!

Malindi olhou para as mãos da mãe que permanecia em silêncio e viu o que estavam executando. Escondidas pelo pescoço do equino, elas bordavam um símbolo na forma de um caixão aberto. Era um magioglifo.

Em estradas por onde toneladas de colheita eram levados até a estação de trem de Deméter para serem distribuídas pelo continente e para Sucellus, esses bandos de ladrões da estrada eram comuns e saqueavam qualquer um que encontrassem pelo caminho, mesmo pequenos viajantes com pouca carga. Tunis teria sorte se os ladrões quisessem apenas assaltá-la e não forçá-la a satisfazer seus prazeres noturnos sob a ameaça de cinco armas. Malindi apertou a coronha da garrucha com força como se o objeto quisesse fugir para as mãos do inimigo, enquanto seu pequeno corpo magro de fome que não deveria estar segurando uma arma tremia e suava frio prevendo seu próprio sequestro. Numa época em que fantasmas não a importunavam diariamente, os olhos do cavalo mecânico nas sombras eram aterrorizantes para a criança camponesa. Um dos homens com espingarda encarou Malindi e se aproximou da lateral do burro.

- Olha só, a bruxa prateada trouxe companhia. Ei, coisa fofa, não precisa me apontar essa arma...

- Não mexa com a minha filha! - gritou Tunis.

- Se você colaborar, ela não fica conosco.

- Então tá aqui a minha colaboração.

Malindi viu Tunis retirar um punhal da cintura e cortar as cordas, atirando o caixão aberto no rosto do cavalo de metal. Sob efeito de seus olhos de lamparinas ardentes, a corda entrou em combustão, e ao cair no chão com o sacudir da cabeça do cavalo, começou a queimar o mato próximo. Malindi entendia tão pouco do que estava acontecendo quanto os ladrões, que olharam para as chamas com expressões entre a perplexidade e o deboche, até perceberem que a situação era muito pior do que uma tentativa de ataque incendiário. Num raio de mais de uma centena de metros, espectros brilhantes projetaram-se da terra e alçaram os céus noturnos em espirais. Aquelas coisas eram formas e rostos humanos, translúcidos e distorcidos, imagens dançando como chamas e fumaça, brilhando nas cores de suas peles, cabelos e roupas. Homens e mulheres, crianças e idosos, até alguns animais como burros e bois, pairando sobre os vivos e flutuando rapidamente de um lado para o outro como um enxame de moscas furiosas. E as vozes... Malindi podia senti-las parecendo facas em seus ouvidos. Gritos e choros desesperados de pessoas em pânico, abafando até mesmo o relinchar dos equinos, e algumas frases aterradoramente reconhecíveis.

"Me ajude!";

"Pelos deuses, nas crianças não!";

"Meu braço! Não consigo sentir meu braço..."

- Mamãe, eu tô com medo - gritou Malindi segurando com força as costas dela e manchando o vestido tradicional das bruxas de Kahina com lágrimas. Os fantasmas não paravam de correr de um lado para o outro numa ventania escandalosa.

- Vai ficar tudo bem, filha - gritou Tunis enquanto tentava fazer o burro aterrorizado sair do olho da tempestade - Não é a primeira vez que faço isso, confie em mim.

Ao disparar do lança chamas do cavalo mecânico, o burro tirou do medo toda a velocidade que não teve na viagem para escapar dali. Os ladrões antes ameaçadores e imponentes agora corriam desesperados do enxame de almas atormentadas, gritando e implorando piedade igual crianças enquanto tentavam em vão atirar nos fantasmas. Malindi só teve tempo de ver um deles se queimar no lança-chamas do autômato e outro ser levitado no ar e ter seu pescoço quebrado há três metros do chão, antes que todas as imagens se dissolvessem num borrão de vultos e fogo que ficava cada vez mais distante. A última coisa que ela viu antes que o intenso clarão ofuscador da lua apagasse foi o rosto de um menino. Um menino da sua idade, com olhos prateados, estendendo as mãos para ela na lateral do burro com suas roupas cheias de sangue.

- A minha mãe - ele disse - eles levaram a minha mãe...

E então o rapaz se dissolveu na escuridão, um sopro de fumaça como todas as figuras que morreram junto com ele. Até mesmo as chamas se apagaram, tamanha a intensidade da tempestade de dor. Os piratas da estrada fugiram ou foram carbonizados, deixando apenas a carapaça vazia do cavalo de metal com olhos que não brilhavam mais.

- Mãe, o que foi aquilo?

- Foi o único jeito que tínhamos de derrotá-los, meu amor - disse ela virando-se rapidamente para secar as lágrimas da filha - Sempre que for viajar por essas estradas, passe por algum lugar onde morreram muitas pessoas ao mesmo tempo.

- Mas o que aconteceu com aquelas pessoas, mãe? Aquele menino olhou pra mim. Alguém matou ele, e...

-  Quer que eu realmente te conte? O mundo em que vivemos é tão horrível, minha princesa kahinense.

- Eu preciso saber - disse ela em prantos.

Tunis suspirou e olhou cabisbaixa para a estrada. O burro lentamente voltava a seu passo normal.

- Aconteceu um massacre de camponeses aqui há dois meses. Um líder dos rebeldes camponeses tinha sido assassinado por um Pistoleiro na frente da família a mando de um Mapeador, então o vilarejo inteiro planejou uma vingança. Eles lincharam o Pistoleiro e começaram a marchar até Deméter. Aí, uma dezena de Pistoleiros junto com a Guarda Imperial cercaram a caravana no meio da estrada, e mataram todo mundo. Velhos, mulheres, crianças. Tinham também pessoas acusadas de bruxaria ali no meio que eles aproveitaram para se livrar também. Os poucos que não foram mortos na hora foram forçados a cavar as covas dos companheiros para não deixar os corpos fedendo no meio da estrada e atrapalhando a circulação de mercadorias. E então foram forçados a cavar buracos para si mesmos e se jogar dentro deles. No total foram cinquenta e poucas mortes, contando os animais e os soldados da Guarda.

Malindi deixou o silêncio falar por si. Não conseguia mais expelir palavras da sua garganta.

- Nós vivemos num mundo de pessoas cruéis, Malindi. Os Mapeadores, os Pistoleiros, os carrascos... Tudo está corrompido. Eu poderia te dizer para não se corromper também, mas não estaria sendo honesta com você e comigo mesma.

Nada nos Mapeadores lembrava remotamente sua função original além de seu nome. Com o declínio e queda do Império Apuinti, a coroa sucelliana patrocinou exploradores que quisessem adentrar o interior do continente para mapear sua geografia em busca de grandes terras férteis em recursos. Alguns eram pobres em seu continente que enriqueceram com os incentivos reais e saques de vilarejos em bandos, outros eram membros da nobreza com exércitos de mercenários e que não encostavam uma manga sequer de suas roupas palacianas extravagantes nos cadáveres das famílias que eles mandaram matar, haviam militares com punho de ferro que dominaram cidades inteiras e, claro, os clérigos e missionários convertendo nativos a mando da Igreja de Sucellus, liderando assim vilas inteiras que os tocavam suas lavouras e minerações. Depois que o Império venceu a Guerra de Illapa contra os Assassinos da Noite, os mapeadores ficaram bem estabelecidos no centro do continente como donos de terras maiores que cidades inteiras. A coroa que antes era sua patrocinadora passou a ser sua cliente e eles tornaram-se as famílias mais ricas e poderosas do continente, integrando a parte da elite de quase todas as cidades, mesmo as que estavam há centenas de quilômetros de suas lavouras. Compraram cada vez mais terras, forçando vilas nativas de agricultores coletivistas a tornarem-se servos ou abandonar suas terras e trabalhar nas fábricas de Cassandra, das quais muitos Mapeadores também eram donos. Para aumentar sua produtividade, convenceram a Coroa a negociar com grandes impérios de Sekhmet e trazer cidadãos como servos. Alguns eram sequestrados ou prisioneiros de guerra, outros vinham atrás de oportunidades de trabalho acreditando que seu futuro seria promissor. De qualquer forma, só a viagem pelo oceano fazia seus bolsos pesarem com o vazio. Eles contraíram uma dívida que quase nunca conseguiam pagar, trabalhando a vida inteira na esperança que pudessem pagar a dívida de seus filhos e tirá-los da servidão. Povos inteiros deslocados de suas terras por mentiras.

As bruxas seguiram em silêncio até o vilarejo mais próximo. O menino prateado assombraria os pesadelos de Malindi por alguns anos, antes que ver fantasmas não fosse mais algo extraordinário.

*****

Cassandra era uma gigante poderosa, capaz de esmagar qualquer um que se opusesse a ela, mas que era consumida de dentro para fora pelas doenças de seu próprio corpo. Uma gigante com câncer. Quando o barcávis subiu o Caminho da Imperatriz até o topo da Serra dos Javalis Gigantes, pouco antes de descer à planície dos grandes lagos Apuinti, Malindi conseguia ver suas imponentes torres se erguendo em meio a uma paisagem marrom-esverdeada de plantações e vilarejos, com chaminés que regurgitavam fumaça rumo aos céus competindo com antigos templos e pirâmides do Império Apuinti o com as pilhas de cortiços para ver quem conseguia capturar o Sol. Quanto mais perto chegava dela, mais nítida ficava a nuvem de fumaça industrial preta sobre a cidade. O sol era escaldante àquela hora do dia, mas o vômito das chaminés nublava o céu junto à umidade que vinha dos lagos. O calor era pesado como os mosquitos que vinham em multidões ao redor de qualquer coisa que tivesse sangue a ser sugado. Malindi sentia as roupas grudarem no corpo suado sem sequer se mexer enquanto os barcávis atravessavam o Maxilar, um labirinto de muralhas protegendo a cidade dos invasores. A imigrante de íris prateada nunca entendera o hábito dos Apuinti de sacramentar crânios humanos, a ponto de que seus antigos imperadores guardavam o crânio de seus ancestrais em seus vestidos e armaduras para absorverem o poder deles. As lendas diziam que a última imperatriz cortou a própria cabeça e a atirou no Rio Chasca, no norte do continente, para não ter seu poder entregue aos invasores de Sucellus. As muralhas já estavam lá muito antes das invasões de Veles, e agora eram remanescentes da arquitetura Apuinti, com torres curvas e segmentadas como carapaças de artrópodes sobre tijolos multicoloridos dispostos em mosaicos vermelhos, amarelos, verdes e laranjas, mas exibindo por canhões, soldados portando mosquetes, engrenagens de máquinas de guerra e cruzes de Veles. Entre as paredes dos muros, Malindi podia ver os fantasmas vagando desde os fossos até o topo das torres. Ali vagavam saqueadores, soldados que deram o azar de cair ou serem abatidos, trabalhadores que faziam a manutenção dos muros, todos mastigados pelo Maxilar.

Do outro lado, a mistura ficava mais contrastante e caótica. Era o conturbado centro comercial da cidade, o Temporal. De cima do Barcávis, era possível ver as ruas afoitas onde comerciantes de diferentes povos de dentro e de fora de Itzamna negociavam em suas tendas ou lojas, empilhadas umas sobre as outras em forma de torres que ficavam mais altas conforme chegavam perto do Frontal, intercaladas com engrenagens e válvulas que abriam e fechavam portões, pontes entre casas e telescópios. Mecânicos, vendedores de frutas e galinhas, soldados que fiscalizavam as praças, todos abriam caminho e encaravam os Barcávis atravessando por entre as calçadas coloridas em forma de mosaicos que existiam desde antes de Sucellus. Cavalos, burros, cachorros e javalis gigantes acompanhavam a multidão. Músicos tocavam seus instrumentos sentados em tapetes sobre as costas de tartarugas gigantes ou carruagens automáticas, tentando ganhar alguns trocados, dos Ouds de Sekhmet à violas de Veles ou flautas-trombetas feitas de chifres em Itzamna, cada um ao som de seus tambores e percussões tribais, uma mistura de melodias que acompanhava a mistura de cheiros de diferentes culinárias. Sanfonas, maracas, filés e frituras de jacarés, macacos, figueiras e moluscos de água doce. Moradores de rua pediam esmolas à frente de bares onde bêbados discutiam e tomavam socos de soldados. Igrejas faziam seus cânticos ecoarem através das centenas de fiéis de todas as etnias ajoelhados diante de suas cruzes e estátuas de bispos e missionários dourados. Acima da cabeça de todos e até do próprio barcávis, balões flutuavam e estacionavam balançando as cordas que usavam para se atracar nos telhados e as velas coloridas que remavam no mar de vapor. Pareciam filhotes perto dos poucos dirigíveis da Guarda Imperial, apontando canhões e lunetas atrás dos inimigos.

Enquanto os vivos cantavam uma cidade cosmopolita, os mortos gritavam seus últimos momentos de overdose, tiroteios, doenças, execuções sumárias, brigas de gangues, latrocínios e acidentes de trabalho em máquinas. O volume e brutalidade desses fantasmas só aumentava junto com a poluição e fedor de esgoto, óleo e fumaça conforme se aproximavam da maior e mais populosa região de Cassandra: o Frontal. Na verdade, tudo o que os Barcávis conseguiam fazer era margear aquelas bandas, tentando não bater a cabeça nas pontes ou nos balões que flutuavam entre as fábricas, onde os operários de todas as idades não tinham opção a não ser continuar trabalhando e ignorar a presença do colosso de penas iridescentes. Se as mulheres precisavam voltar ao serviço mesmo quando engravidavam, o que seria um pássaro gigante para seus empregadores magnatas? O carvão, o cobre e o ferro de Illapa com o látex da Floresta da Lua, a matéria prima têxtil das Grandes Plantações e o sal do Deserto das Ilusões numa alquimia maldita que criava máquinas para fazer aquele sistema funcionar e para exportá-las de volta a Veles, sem que Sucellus do Sul pudesse fazer comércio com nenhuma nação que não fosse sua própria metrópole. Malindi nunca tinha visto uma fábrica pessoalmente e não imaginava que era tão grotesca De um lado, chaminés vomitando os excrementos em forma de fuligem daquela besta selvagem de capitais em uma luta desleal por quem produzia e vendia mais mercadorias às custas da miséria dos povos de Itzamna. Do outro, os lares precários daqueles que faziam essa máquina girar sem receber nada mais do que o abaixo do mínimo para sobreviver: as torres cortiço, cortadas por pontes, cabos, canos de esgoto e varais que às vezes pareciam tentáculos, se confundindo com os tentáculos reais de seres cefalópodes que pendiam das janelas dos barracos suspensos comendo os resíduos que restavam da ação humana como urubus invertebrados. O pó de carvão e fuligem se misturava ao óleo de cozinha, a umidade do ar e a baba dos Detritívoros, formando manchas de massa preta viscosa que escorria pelo labirinto de tijolos e sucata que eram aquelas torres. Aquilo foi tudo o que restou para os descendentes de povos nativos que um dia inovaram na arquitetura: as sombras de suas próprias condições de vida. Foi o que restou da Dinastia dos Apuinti. Mesmo apenas à margem do local, Malindi conseguia ver focos de familiaridade nos bairros de prateados com seus estilos de roupas e tendas estendidas nos varais por onde caminhavam pássaros, saruês e fantasmas mutilados de crianças que provavelmente morreram nas fábricas, imitando suas brincadeiras típicas como se seus fins não tivessem sido trágicos, bem como o perfume de sua culinária saindo de restaurantes no meio das torres. Pedaços inteiros das ruas eram ocupados por multidões desoladas de Ensandecidos, pessoas viciadas e enlouquecidas pela magia que sentiam os efeitos colaterais de usá-la em seus corpos na forma de alucinações, doenças e deformidades. Porém, o que mais assombrava Malindi era o lugar que não via, mas sabia estar escondido além daqueles quilômetros da salada indigesta de tripas carbonizadas. O Parietal. Era lá que seus pais, depois de serem consumidos pela necromancia e ficarem iguais aos Ensandecidos lá embaixo, foram encarcerados, e ela se perguntava se não era para lá onde iria também.

Os barcávis então percorreram a parte rica da cidade, o Zigomático, o Olho Direito e o Olho Esquerdo. As moradias precárias e o caos urbano de milhares de pessoas e fantasmas se esbarrando era dissipada para dar lugar a casas cada vez maiores em ruas organizadas, onde as máquinas não pareciam sempre cheias de ferrugem, óleo e pó e carregavam os abastados em carruagens a vapor bordadas a ouro dirigidas por empregados, e não puxadas por animais como as das zonas pobres. Naquele lugar, os fantasmas ficavam mais e mais raros, sem corpos translúcidos dilacerados por tiros, doenças ou máquinas industriais. Primeiro, as moradias confortáveis de dois andares para donos de comércios médios e políticos de baixo escalão. Depois, Zigomático adentro, mansões cada vez maiores e desnecessariamente coberta de rococós e cores escandalosas circundando as antigas pirâmides de degraus dos Apuinti. As igrejas sucellianas sobre as ruínas de templos Apuinti no Olho Direito e as universidades e casas de cientistas intercaladas com observatórios astronômicos de pedra dos nativos no Olho Esquerdo. No centro de tudo isso, o destino final: um grande lago circundado tanto por edifícios bem pintados ao lado de canoas românticas e pontes de mármore quanto por lamacentos bairros de palafitas sobre pilhas de lixo. O bacávis parou ao lado de um grande palácio, junto a dezenas de carruagens puxadas por javalis gigantes.

- Chegamos ao nosso destino! - gritou a general Louise nos cabos de som levavando sua voz às flores de metal que a cuspiam ao redor de todo pseudo-navio como trombetas - O Centro de Operações Especiais. Levantem-se e se lembrem: qualquer tentativa de motim resultará em punições graves.

Aquela seria a resolução do mistério, talvez um novo começo ou até mesmo a chance de encontrar seus pais. Talvez representasse a sua morte, mas para Malindi, vida e morte já não eram tão distintas há muito tempo. Ela viu os Assassinos da Noite ao lado serem retirados da cela enquanto suas mordaças eram removidas, e duas delas conversaram entre si sob a mira de um arcabuz. Uma com cabelos curtos e enrolados e o nariz protuberante e a outra com cabelos lisos que iam até os ombros, as duas de pele escura e músculos aparentes dos braços e pernas cobertos de trapos totalmente diferentes dos trajes dos assassinos. A de cabelos curtos falou no ouvido de sua colega:

- Não vamos falhar dessa vez, Asiri.

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