2 - Agulhas Rastejantes

Huayta

Os frascos multicoloridos com seiva de vermes cavernícolas, espalhados pelas paredes e estalactites em toda a Cidade das Formigas, refletiam na carapaça de metal cinzenta do "Besouro" em um caleidoscópio de ódio. Huayta já tinha ouvido falar da mais nova máquina a vapor da Guarda Imperial, mas era a primeira vez que ele a via pessoalmente e em ação, uma abóboda de aço quase tão alta e larga quanto o próprio túnel de dez metros nas duas medidas, correndo sobre seis poderosas pernas de metal curvadas como foices e movidas por pistões que nublavam a cidade subterrânea com o vapor sufocante. Na sua dianteira, exibia o brasão da Guarda Imperial, uma coroa cravejada de diamantes dentro de um losango de espadas, acima de duas janelas como olhos pelas quais os pilotos conseguiam ver os túneis. O Exército Dourado para assuntos de guerra e a Guarda Imperial para a repressão aos civis. Tudo o que houvesse à sua frente era esmagado, arremessado ou fatiado ao meio pelas patas e mandíbulas cortantes avançando mais velozes que um cavalo furioso. Os transeuntes das ruas subterrâneas gritavam e corriam enquanto bares, barracas, colunas e carroças puxadas por lagartos eram estilhaçadas. Houve até algum rapaz genial que decidiu escapar passando por debaixo da máquina, tendo a frente do corpo inteiramente arrancada como manteiga pelo metal quente. Huayta sentia os ruídos ininterruptos das patas batendo no chão e dos pistões rangendo como uma besta esmagarem seus ouvidos para dentro do crânio.

Nas paredes de pedra dos túneis, os símbolos coloridos de fractais, insetos e formas geométricas gravados na pedra remetiam ao antigo e enigmático povo formiga que, segundo as lendas Apuinti, construiu e habitou esses quilômetros de entranhas subterrâneas há milhares de anos, até que os deuses deram-lhes a iluminação que os fez sair de debaixo da terra e se tornarem os ancestrais da humanidade como a conheciam. Esse lugar foi considerado sagrado por milênios pelos Apuinti que construíram a imponente cidade de Cassandra sobre ele, até que a proibição da magia e das crenças locais causada pela invasão do Império Sucellus tornou a Cidade das Formigas de ponto de peregrinação à paraíso do crime, prostituição e das escolas de magia que, na clandestinidade, tornaram-se gangues, lutando entre si tanto com cajados e varinhas quanto com as armas de fogo que os invasores introduziram, ecoando seus disparos pelos túneis. Haviam poucos vendedores ou prestadores de serviços mágicos que permanecessem uma semana imunes a quinze tiros nas costas da Guarda Imperial sem se aliar a uma das gangues, ou nativos infiéis à Igreja de Sucellus que viessem rezar nos túneis como faziam seus ancestrais sem pagar alguns Triunfos, a moeda de Sucellus, à organização que dominasse o local sob a ameaça de tomar uma bela surra. A Coruja Negra era a única organização que não ameaçava os religiosos.

O jovem mago meio-nativo e outros quatro membros da Coruja Negra corriam para desenhar no piso de pedra o magioglifo de proteção, um círculo com um escudo e quatro traços centrais feito com tinta negra de larvas da caverna. O escudo de ar enrijecido dos cajados podia aguentar impactos de balas ou flechas, mas não algo tão forte quanto o Besouro por mais do que alguns segundos. Até o momento, três magos morreram tentando. O ataque já durava quase uma hora e um quinto do território da gangue havia sido destruído. As feiras de objetos mágicos agora eram escombros por onde os mercadores corriam tentando recuperar alguma coisa de seus pertences. De um jarro de cerâmica, Huayta jogou carapaças de insetos mortos e pedaços de casca de árvore pelo magioglifo, a oferenda que ativaria o feitiço de proteção. Oferendas específicas quase sempre fazem feitiços muito mais fortes do que oferendas universais como sangue ou água, então o escudo resistiria por mais tempo.

- Para trás! - gritou Alia para o trio tendo sua voz quase abafada pelo barulho do Besouro. Ela jogou uma tocha no chão e correu enquanto a tinta e as cascas eram lentamente consumidas pelo fogo, e então uma parede branca translúcida começou a se projetar do chão até o teto do túnel e se alargar como uma cortina. Aquele era o próprio ar endurecendo até ficar quase impenetrável, uma técnica da Magia Material que Huayta já devia ter feito mais de uma centena de vezes durante os combates na Cidade das Formigas, seja entre gangues de magos, com os Caçadores de Bruxas ou com a Guarda Imperial. Aquela parede luminosa poderia aguentar desde golpes de espada até tiros de canhões a depender do tamanho do magioglifo ou da quantidade de oferenda, mas ela tinha um prazo de validade em que poderia aguentar em pé, e quanto mais potentes os impactos, mais rápido ela se desgastava.

O besouro colidiu com o escudo com tanta força que fez as próprias paredes do túnel tremerem. Ondas se formaram no escudo, parecendo a superfície de um lago atingida por uma pedra, e a carapaça de metal foi amassada junto a um barulho ensurdecedor. As patas que não paravam de se mexer mantinham o escudo tremeluzindo como se o escavassem.

- Essa barreira não vai durar muito tempo - afirmou Alia apontando para Huayta, Hugo e Sara - Vocês três, tentem atacar essa coisa por trás. Eu e o Alvarez vamos fazer outro escudo na frente desse. Os reforços estão a caminho. Vão!

Os três pegaram seus cajados e correram para um dos muitos túneis menores e finos que margeavam o principal como as guelras de um peixe. A Cidade das Formigas era cortada de uma ponta a outra por túneis e trabéculas secretas eficientes para a logística de transporte, ventilação natural e para a fuga. Huayta não queria passar um segundo sequer ao lado de Hugo ou Sara, mas não teria como questionar a decisão de Alia, ainda mais naquela situação de urgência. Com a cabeça saindo da bata com listras verdes e vermelhas, a cobra preta pintada em suas costas bronzeadas a colocava numa posição de comando mais alta do que os beija-flores no pescoço dos três ou a pequena roseira na bochecha de Alvaro: ela era do Terceiro Nível na escola de magia, líder daquele batalhão, tornando-a uma dos poucos dourados a lutar do lado das gangues. Acima deles, só os professores com uma ave de rapina comendo a cobra ou os líderes com uma coruja inteira pintada no peito. Alguns tinham pinturas que indicavam suas conquistas, como os dois canhões, duas máscaras de corvo e um escorpião nos braços de Huayta que representavam, respectivamente, soldados da Guarda, Caçadores de Bruxas e um mago rival que ele derrotou em combate. Hugo era todo coberto de pinturas como essas. Porém, todos traziam o rosto de uma coruja na nuca, indicando sua fidelidade à escola de magia e à gangue. Outras organizações tinham outros animais símbolos, de jaguares a borboletas. O nível de domínio da magia e méritos de batalha de Huayta e do casal já era próximo ao de Alia há alguns meses, mas confirmar sua consagração para o Terceiro Nível só aconteceria daqui a uma semana, durante as festas da Chuva de Jade, como mandava a tradução Apuinti. Isso se a escola não tivesse que adiar as consagrações depois de ser destruída. Após anos de erros desgastando a relação dos três, o contato de Huayta com Hugo e Sara não era dos melhores. Ambos tinham heterocromia como Huayta, com o olho dourado de um Sucelliano e o púrpura de um nativo, ou seja, mestiços.

- Tenta não estragar tudo dessa vez de novo, Homem Agulha - disse Hugo. Huayta sabia que se deixar levar pelas provocações dos colegas poderia pôr tudo a perder. A Dor das Agulhas rastejantes que rendeu-lhe o apelido era uma doença crônica rara nas terras de Itzamna. Ativada pelo frio ou calor extremo, pelo estresse ou por grandes impactos e lesões, as crises de dor alastravam-se por todo o seu corpo, consumindo-o lentamente até desmaiar, andando pelo corpo como insetos em suas veias. Algumas crises eram mais fracas, outras fortes o bastante para por combates inteiros a perder. Huayta andava sempre com um talismã gravado com magioglifos de proteção à dor, mas nenhum deles era capaz de curar sua doença, apenas atenuar seus sintomas, e após tanto tempo de combate, Huayta via que o brilho do talismã estava se esvaindo. Precisava recarregar sua oferenda e não tinha como.

Eles saíram do outro lado do túnel alguns metros atrás do besouro, tossindo com a fumaça saída dos pistões e grudando a pele dos trapos e batas pelo suor. As patas já haviam desacelerado até parar, talvez porque os controladores perceberam que seguir era uma idiotice. Comércios e estruturas destruídas se intercalavam com cadáveres e pessoas vivas, tanto feridas quanto aquelas vindo a seu socorro. Muitos magos com a pintura da folha vinham ajudá-los com magia da cura.

- Se subirmos nele e alcançarmos a cabine, talvez consigamos tomar a máquina para nós - disse Huayta.

Sara pegou um pedaço de madeira que fez parte do que há alguns minutos atrás era a barraca de um comerciante que agora mancava ensanguentado. Ela atirou o toco na traseira do Besouro, mas máquina abriu suas costas ao meio em dois grandes segmentos curvados e projetou duas lâminas com o formato e o batimento de asas, soltando o barulho agoniante de dezenas de facas sendo amoladas na de um trem. Sob a carapaça de metal, revelaram-se metros de canos, pistões e caldeiras vazando a luz vermelha do carvão em chamas e o vapor de suas frestas, as tripas de um corpo em vivissecção. O toco de madeira cortado em dois foi repelido de volta e acertou Hugo no peito largo e forte, enquanto a máquina fechava suas asas cortantes. Atacar por trás era uma sentença de morte.

- Vamos explodir esse pedaço do túnel com esse maldito dentro - disse Hugo levantando do chão - Já mandem todo mundo evacuar o local. Vamos fazer um magioglifo atrás dele.

- O que?! - interviu Sara - Isso é insano! Você é idiota, Hugo?

- Que sugestão melhor você tem? Eles já destruíram esse trecho inteiro.

- Feitiço de resfriamento, imbecil - disse Huayta - Se os mecanismos congelarem e o carvão parar de queimar, o Besouro não funciona.

- E onde vamos arrumar pinheiro ou mercúrio para o feitiço? Quer gastar toda a oferenda do cajado pra ver se os soldados nos pegam desarmados?

- Você quer pagar pra ver se uns três túneis embaixo da gente não desabam? - gritou Sara - Vai matar mais gente do que a merda desse inseto de metal.

- Acham que vamos congelar isso tudo com só três cajados? Deve ter ido um quarto do estoque deles quando estávamos defendendo os portões da escola.

Huayta olhou para uma pilha de panelas de metal esmagadas à sua direita. Imediatamente, imagens vieram à sua cabeça. Imagens e sons. "Todos vocês, pro quarto agora!". O ritmo da panela de metal batendo e para formar o escudo, e então os tiros. A batida do sacrifício. Huayta pegou a panela e desenhou o magioglifo em forma de floco de neve com o caldo de frutas derramado no chão da barraca.

- Música, Hugo. Música.

O Besouro avançou mais alguns metros quando o escudo de ar enrijecido finalmente se desfez, colidindo novamente contra o escudo seguinte de Alia e Alvaro. Aquele era o momento certo para atacar, enquanto a barreira ainda estava forte. Os três magos avançaram soltando feitiços de congelamento pelo cajado. Os cabos de madeira de um metro circundados em cipós mumificados e ranhuras espirais com um brilho branco que mudava conforme o feitiço terminaram numa ponta piramidal de quartzo comum naquelas cavernas. Cajados guardavam em seu interior alguma oferenda universal, geralmente uma mistura de água e sangue, ou ouro, prata e ametista para os mais abastados, e permitiam ao seu portador conjurar energia mágica apenas com a própria vontade sem precisar de magioglifos. Porém, tal qual os talismãs, sempre precisavam ser recarregados com oferenda, e o fim de seus brilhos indicava quando paravam de funcionar. Com a máquina de guerra ainda desacelerando suas patas após atacar em vão a barreira mágica, as rajadas de ventos gélidos saindo das pontas de quartzo serpentearam por detrás do Besouro, formando flocos de neve e granizo. A neve era raríssima no continente de Itzamna, permeado de florestas tropicais, pântanos e desertos, existindo apenas nas suas terras mais meridionais do antigo Império Taranis, atual República de Símon.

O besouro abriu suas asas de lâminas cortantes para se defender em vão, deixando a ventania gélida adentrar em seus circuitos. Películas brancas começaram a se formar sobre os canos e as lâminas travaram em lentidão e rangidos. Litros de água pingavam numa poça do tamanho da máquina enquanto o vapor condensava e o gelo derretia sobre o calor que ainda emanava da caldeira. Aquilo não era o suficiente.

- É bom você começar a tocar essa porcaria, homem agulha - gritou Sara - Ou você quer mesmo gastar todo o estoque dos três cajados?

- Quer que aquela asa corte fora a minha cabeça?

"Você que é um idiota quando deixa eles te tirarem do sério", pensou o mago, "Apenas foque no que está fazendo." Huayta abaixou seu cajado assim que as asas pararam de bater, encerrando seu feitiço, e pulou sobre as entranhas metálicas da máquina. Segurando em um dos cabos para não escorregar, ele bateu a panela contra o aço em compassos rítmicos. Já ouvira aquele bater animado em tambores e chocalhos de diversas festas e comemorações Apuinti, de aniversários a bares, servindo de base para muitas letras e melodias. E claro, no dia em que sua mãe... "deu o último de seus muitos sacrifícios". A música era uma das mais eficazes entre as seis oferendas universais, se o mago ou a bruxa soubessem usá-la. Enquanto outras oferendas queimam e se esgotam para fazer o feitiço funcionar, a música gera energia mágica sem parar enquanto estiver tocando, mas uma quebra no tempo ou instrumentos desafinados e o feitiço para e demora para se recuperar. Em dois minutos, o gelo tomou conta do que sobrou da superfície da máquina como um fungo e imobilizou a arma do Império.

Com a máquina paralisada de asas abertas, os três combatentes escalaram sua carcaça aberta usando a ponta dos cajados como lanças para perfurar os canos e circuitos mais frágeis. Com o frio e o esforço físico acima do normal, Huayta já começava a sentir pontadas nas articulações, sentindo-se ele mesmo uma máquina a vapor começando a travar. Ele conferiu o talismã de estanho com magioglifos de proteção, e o brilho estava apagado. Com a pouca água que pingava do gelo em derretimento, ele preencheu um pouco mais de oferenda para o talismã, mas sabia que aquilo não duraria por mais que alguns minutos.

Passando pela apertada brecha entre os dois segmentos da carapaça, eles chegaram à cúpula de vidro. Com o teto do túnel quase batendo em suas cabeças mesmo agachados, eles observaram a grande máquina por dentro.

Sob o vidro quase inteiro rachado devido à mudança brusca de temperatura, dois soldados uniformizados da Guarda Imperial tossiam com o vapor que saía da caldeira similar a de um trem, o rosto e o cabelo sujos de poeira, carvão e graxa. Se antes aquele espaço era tão quente que precisaram tirar as fardas amarelas e azuis da Guarda e os trapos abaixo, agora seus troncos sem a camisa estavam à beira de uma hipotermia. Um lampião que iluminava a sala escura devia ser a única fonte de calor lá dentro, e uma característica deles bagunçou as águas de remorso em Huayta: seus olhos não eram dourados como os dos sucellianos, e sim púrpuras. Eram dois nativos, a pele escura e os cabelos cor de cobre como os de Huayta e da maioria dos Apuinti. Aquilo que não era incomum nas forças armadas do Império. Se a maior parte da população de Sucellus do Sul era composta de nativos, imigrantes de Sekhmet e mestiços, um exército que não tivesse a participação desses povos seria facilmente derrotado pelas organizações rebeldes. A maioria desses militares púrpuras eram convertidos pelos missionários da Igreja de Sucellus que dedicavam-se a destruir a magia que seus próprios ancestrais criaram em nome da igreja do invasor, quando não eram vítimas de escravidão por dívida ou mercenários traidores. Mesmo sabendo de tudo isso, Huayta sentia culpa por lutar contra nativos de seu continente, como sua família, como sua mãe.

- Anda logo! - gritou Sara derrubando a cúpula estilhaçada com apenas um golpe de cajado. Os soldados correram em vão tentando não serem atingidos pelos cacos de vidro, e com os braços cortados e sangrando, um deles carregou um mosquete e apontou para Sara. A bala passou raspando o ombro da bruxa e rasgando sua pele, arrancando dela um grito visceral. Huayta sentia a Dor das Agulhas Rastejantes aumentar e sabia que ficaria pior com o frio, mas agora era um caminho sem volta.

Os três pularam para dentro da cabine e desceram suspensos em redemoinhos, deslocando o ar com os cajados e jogando os adversários para as paredes. Tendo sido pegos de surpresa pelo ataque do besouro durante um treinamento, eles não estavam em posse de suas armas de fogo, proibidas de serem usadas dentro das escolas de magia. O soldado com o arcabuz foi atirado contra o painel de controle da máquina, manchando de sangue as engrenagens, alavancas e válvulas permeadas por canos que lembraram os tentáculos dos Detritívoros. Sua arma caiu e escorregou pelo piso úmido e gelado. O brilho opaco dos cajados indicava que os estoques estavam para acabar, e aquele era o momento preciso para deixar os soldados indefesos.

Huayta correu na direção da arma de fogo enquanto Hugo e Sara nocauteavam o militar do outro lado da cabine com golpes de cajado. O soldado no painel foi mais rápido, levantando e pegando o arcabuz quando Huayta estava há poucos centímetros dele. Com dificuldade em mover os braços, cada vez mais travados como alavancas emperradas, o jovem golpeou o servo de Sucellus na têmpora com o cajado, derrubando-o no chão e pegando o arcabuz. Tudo o que ele precisava era render o soldado e obrigá-lo a explicar o funcionamento daquela máquina de guerra, então o ergueu do chão pela gola do traje e ouviu o oponente xingá-lo de todas as coisas mais obscenas permitidas. Em Apuinti.

"Não posso fazer isso", pensou o meio-nativo, como se pudesse sentir seu sangue púrpura arder, mas ele não tinha outra opção. Aquele soldado havia dilacerado dezenas de corpos pelas ruas da Cidade das Formigas e seus olhos púrpuras não tinham a inocência de seus primos mortos pela Guarda Imperial, confundidos com assaltantes ou membros de gangues.

- Fica calmo aí - disse Huayta em Apuinti com o mosquete quase encostando em sua cabeça - Se você colaborar, nada vai acontecer. Só mostra como funciona essa coisa e a gente liberta você e o seu colega. E sem armadilhas pra cima da gente, senão...

Huayta não precisou completar a frase para que o militar nativo entendesse. Já se sentia imundo só de pensar nessa possibilidade. Enquanto o soldado levantava ainda trêmulo e ofegante, Sara afastava-se do capanga nocauteado.

- Vou avisar os reforços que capturamos o Besouro - disse usando o resto da magia de seu cajado para mover os ventos e levitar.

O soldado apontava para as alavancas, dizendo cada uma de suas funções em sucelliano, diferenciando as que avançavam, aceleravam ou freavam, ativavam as asas ou as mandíbulas. Lutando para se concentrar, a dor nas articulações de Huayta aumentava como se seu corpo fosse aquele painel, alavancas rangendo na superfície congelada. Ele mordia a língua e os lábios ou rangia os dentes quase involuntariamente, como se isso fosse uma válvula de escape da tensão que a dor provocava. As pontadas caminharam pelas fibras dos músculos, abocanharam as cartilagens como tubarões e um singelo brilho cinza acompanhou a peregrinação da dor através de suas veias. Huayta sentia como se estivesse sendo petrificado.

Sara pulou de cima da cúpula e aterrissou com segurança e precisão acrobática, apoiando-se no cajado.

- Chegaram mais tropas - ela disse - Os reforços estão lá fora lutando contra a Guarda Imperial.

A arma nas mãos de Huayta tremeu ao enrijecer das falanges dos dedos e caiu no chão. Como uma reação automática, ele tentou abrir o talismã para usar o sangue do guarda como oferenda, nem que fosse por alguns segundos, mas ficaria sem coordenação motora fina para isso até o fim daquela crise. Trêmulo e paralisado, o mago caiu no chão.

O soldado recuperou seu mosquete caído no chão e se preparou para atirar em Hugo, seu segundo alvo mais próximo. O mago tentou desviar, mas não conseguiu evitar que uma bala adentrasse seu quadril, fazendo-o gritar de dor. Huayta não sabia se fora poupado por não oferecer ameaça ou por algum nível de pena e compaixão, mas de qualquer forma, não conseguia fazer nada além de assistir os magos e soldados lutarem dentro da cabine enquanto a dor o paralisava. Cinco soldados da Guarda entraram na sala de controle do Besouro jogando esferas-flores que se abriram soltando fumaça e o estoque dos cajados apagou-se com a luz.

- Você fodeu tudo, Huayta! - gritou Hugo - Você sempre fode tudo!

A última coisa que Huayta viu foram as botas de couro do soldado se aproximando junto com a coronha de uma arma de fogo. Um impacto forte em sua cabeça, e então o mundo desmanchou em gotas de orvalho até ficar totalmente preto.

*****

Huayta lembrava-se de quando essas crises de dor eram menos intensas. A vida nunca foi tranquila para nenhuma pessoa pobre que habitava Sucellus do Sul, especialmente de família nativa, e desde criança, Huayta testemunhou a sede por violência que espreitava em cada rua de Cassandra. Ele já passara fome três vezes ao longo de sua infância e juventude, viu dois de seus sete irmãos morrerem da Praga das Moscas Vermelhas e testemunhou centenas de assassinatos, tanto pelas guerras das gangues de magos quanto pela Guarda Imperial, mais os latrocínios, crimes de ódio étnico e outras razões ainda mais idiotas. Da primeira vez que ouvira quando criança as notícias de uma vendedora de frutas que alvejou um morador de rua com tiros de garrucha porque ele a deu constantes calotes ou de um vendedor de talismãs que foi enforcado com os cordões dos próprios produtos por um cliente insatisfeito, Huayta ficara chocado. Da vigésima vez que ouviu ou testemunhou histórias semelhantes, elas já não o impressionavam mais. Conheceu os Ensandecidos que cometeriam qualquer crime por alguns gramas a mais de poções ou os Caçadores de Bruxas que atacavam à noite para matar qualquer um suspeito de usar magia, sem a burocracia frequentemente desrespeitada da Guarda Imperial de prender o criminoso a não ser em situações de combate. Porém, mesmo em meio a essa guerra constante, ele sentia que a infância era mais fácil, com menos responsabilidades ou mais pessoas que o ajudassem em seus piores dias, sem a corrida constante das gangues de magos. E o mais importante: sua mãe estava lá.

Lembrava-se de uma vez específica entre muitas das que a dona Camiri tratava de seu filho durante as crises de dor, preparando chás de ervas medicinais e desenhando em sua pele com óleos os magioglifos de cura que poderiam levá-la à cadeia por bruxaria. O Huayta de sete anos, repousando na rede da sacada em sua torre-cortiço, fez uma pergunta que era muito novo para saber que a machucava tanto quanto as Agulhas Rastejantes:

- Por que você nunca fala sobre o papai?

A mulher parou atônita encarando o filho com a chaleira no fogão à querosene. Huayta lembrava como ela era linda, mas o labor incessante deixava rugas e olheiras sobre seu rosto de pele morena. Os ondulados estavam sempre presos para que não atrapalhasse seu trabalho na companhia de dedetização de Detritívoros, arrancando seus tentáculos, dissolvendo seus corpos assimétricos e cheios de olhos com ácido e limpando seus resíduos gosmentos das casas abandonadas de onde os tiravam. Ainda estava com seu uniforme marrom e branco, fedendo a lixo e encardido.

- Por que essa pergunta, filho?

- Você sempre falou sobre o pai dos meus irmãos que morreu quando eu era bebê e nunca sobre o meu. E sempre que eu pergunto você muda de assunto ou diz que não quer falar sobre ele. Por que só eu tenho um olho dourado?

Camiri andou de cabeça baixa da minúscula cozinha até a sacada, de onde os dois podiam ver o labirinto de torres-cortiço do Frontal. Sobre antigas casas de pedra e barro do Império Apuinti, os trabalhadores das fábricas vindos de todo o continente após serem expulsos de suas terras pelos Mapeadores construíam moradias com a sucata das fábricas e qualquer material descartado que pudessem encontrar, de troncos de árvores a carruagens quebradas. O resultado eram labirintos de casas precárias empilhadas com dezenas de formatos e cores a depender do que eram feitos, salpicados por rodas, engrenagens, placas e cascos de barcos, de onde pendiam cordas e escadas improvisadas para os moradores subirem e descerem de seus lares altos demais, pontes entre as torres, roupas estendidas nos varais e, dos mais ousados, talismãs de proteção ou armas e canhões. As casas do meio eram as mais disputadas, pois nas de baixo, o dia inteiro sentia-se o cheiro de esgoto e latrinas, e nas de cima, da fumaça das fábricas misturado à neblina da úmida Planície dos Grandes Lagos. Volta e meia, uma pilha inteira desmoronava ou então um incêndio consumia centenas de casas, e quando chovia, todos os andares sofriam de infiltração. Em muitos pontos do Frontal, era quase impossível ver a luz do sol. Acima das casas, acompanhados por bandos de garças, ratos, urubus e macacos-planadores que buscavam resíduos no lixo entre as vielas e córregos nas calhas e telhados, os balões de gás do tamanho de vagões de trem flutuavam vagarosamente enquanto eram empurrados por hélices e velas como as de navios que mudavam conforme o vento. Com o formato de castanhas, sustentavam plataformas de madeira movendo habitantes e mercadorias pela cidade. Um tentáculo rosa de um Detritívoro pingando baba e se alimentando dos resíduos de fuligem e gordura dos prédios pendeu de janelas um pouco acima.

- Meu amor - disse ela acariciando o rosto de Huayta, agachada ao lado da rede - Seu pai não era uma pessoa boa. Ele era só mais um desses dourados horríveis que nos xingam, nos batem, roubam os lugares onde a gente mora. Ele era um soldado, Huayta, daqueles muito bravos.

Camiri forçou uma expressão caricata de fúria, quase como se quisesse ver seu filho rindo da careta. Porém, ele não exibiu reação alguma. Camiri não saberia dizer se era por causa da dor, ou porque ele, mesmo criança, via em seus olhos que aquilo era uma tentativa de esconder que algo não estava bem. Huayta se lembraria anos depois daquele jeito infantil de abordar um assunto sério como perturbador.

- Mas por que você ficou com ele então?

- Eu não fiquei com... - Camiri fechou os olhos e inspirou profundamente, antes de segurar o tecido da rede como se quisesse rasgá-lo, e reabriu os olhos agora levemente marejados - Filho, quando os Dourados chegaram há mais de cem anos atras, eles trouxeram várias coisas boas e várias coisas horríveis para a nossa terra. Uma dessas coisas horríveis são as armas de fogo. Claro que as espadas, lanças, o arco e flecha, todos matavam milhares antes, mas as armas de fogo são diferentes. Um homem com uma delas na mão se sente poderoso para fazer qualquer coisa, acima de qualquer deus. E sente-se no direito inclusive de... forçar uma mulher a ir contra a sua vontade para sentir poder sobre alguém. Mesmo que depois do que ele faça com essa pessoa, ela prefira ter morrido. Mas não posso explicar isso para você, não agora nessa idade. Quando você crescer, vai poder ouvir a explicação inteira, e acredite, vai ter visto muita coisa até lá.

- Que tipo de coisas...

- Não vem ao caso.

Naquela época, Huayta não entendia uma palavra do que ela dissera. Era uma criança, afinal. Mais velho, ele entenderia pelo que sua mãe passou. Infelizmente, ele entenderia.

- Só não seja igual a essas pessoas, Huayta - ela prosseguiu -, porque muitos de nós estão se deixando corromper pela ganância.

- As outras crianças da fábrica disseram que não sou um deles. Quer dizer, que não sou um Apuinti de verdade.

- Não deixe a opinião deles definir o que você pensa de si mesmo. Você é de família púrpura, criado como um de nós, luta e trabalha como um de nós e é odiado como um de nós. A cor de um olho é o que menos importa. Sabe o que importa, meu filho? Isso aqui...

Ela tirou de um pequeno saco de tecido uma pulseira carregando dezenas conchinhas como as que às vezes encontravam à beira do Lago Etmóide. Aquilo era uma tradição milenar dos Apuinti. Uma pulseira de conchas vinda da mãe, uma de dentes de algum animal vindo do pai e uma de penas vinda de irmãos ou primos.

- Mas já? Antes da Chuva?

- Você merece, amor. Com todas as dificuldades que todos nós passamos, e ainda carregando as suas próprias, e você está aqui. Você é uma criança incrível, Huayta, e tem um futuro brilhante pela frente.

O menino estendeu o braço para sua mãe colocar a pulseira, e os dois se abraçaram por alguns segundos antes que a mãe voltasse a fazer o chá. Mesmo que por um curto instante, a dor pareceu não existir mais, ou pelo menos, não importava tanto assim. "Um futuro brilhante pela frente". Pelos anos seguintes, Huayta lembraria daquela frase um milhão de vezes, geralmente acompanhada do olhar de desprezo de Camiri quando viu os caminhos do filho e percebeu que estava errada. E mesmo assim, ela se sacrificou por ele.

*****

Huayta acordou e não estava mais em sua rede. Tinha vinte e dois anos novamente, e o chão em que deitava era duro, o cheiro era de graxa e urina e vinte de seus colegas magos do batalhão de Alia com a pele coberta de ferimentos e calos encaravam as grades e o vazio com expressões entre a tristeza e o ódio, iluminados pela tenra luz do sol que penetrava nas paredes de pedra negra vinda das duas janelas quadradas altas e pequenas demais. Não estavam mais na Cidade das Formigas, e sim na Cassandra da superfície, onde quem mandava era Sucellus. Aquela era a Prisão das Bruxas, no Parietal, de onde Huayta já tinha ajudado no resgate de companheiros de gangue. Pelo menos a dor havia se dissipado. Agora as agulhas eram em forma de olhos, e a mais perfurante delas era a de Hugo, cruzando os braços musculosos com pinturas de escorpiões.

- Olha só quem acordou - disse - O soninho estava tão bom que carregarem a gente até uma carruagem não o perturbou, seu merda?

- Hugo - disse Huayta levantando-se do chão - Eu não tinha como controlar...

- Se você não consegue executar um combate simples sem quase morrer, o que você está fazendo na Coruja Negra?! - gritou o mago segurando-o pela gola da camisa rasgada - Todo mundo aqui dentro pode morrer e a culpa é sua.

- Eu conheço os corredores dessa prisão, conheço alguns dos guardas, nós podemos tentar uma fuga...

- Pra você por tudo a perder de novo?! - o berro de Hugo ao lado do rosto provocou um zunido no ouvido de Huayta, que viu as veias de seu colega saltarem na testa.

- Hugo, os reforços da guarda vieram muito de surpresa, ele não é nem a principal razão - disse Alia - Solta o Huayta, agora.

Porém, Huayta sabia que não era isso que compelia Hugo a querer esmurrar sua face todos os dias. Não era puro desprezo por uma condição que Huayta não conseguia controlar. Foi o que aconteceu com o primo de Hugo, Aquin. E naquele ponto, ele tinha razão.

- Você, Huayta, é um inútil. E agora vai ter um gosto do que você nos fez passar.

Huayta teve pouco tempo para ver o punho de Hugo voando em direção ao seu rosto antes que os ossos em seus dedos violentaram sua face. O jovem mago sentiu os sucessivos socos do colega de gangue acompanhados de golpes de joelho na virilha, mas estava desorientado demais para contar quantos foram, sentindo o mundo girar e o sangue de sua gengiva escorrer até o queixo. Conseguia ver que outros prisioneiros vieram para segurar Hugo, incluindo Alia, Sara e Alvarez.

Hugo foi puxado para trás e soltou Huayta, deixando-o no chão antes que Alia conseguisse pegá-lo. Naquele ponto, o bruxo não sabia distinguir se a dor que sentia era apenas fruto da agressão em si ou se eram as Agulhas voltando, mas algo subia através de seu corpo com ainda mais intensidade que sua dor. Um ímpeto odioso e violento. Ele era um barril de pólvora, e a fagulha acabou de sair da garganta de Hugo:

- A Camiri e o Aquin teriam vergonha de você.

Sentindo o gosto do próprio sangue na boca, Huayta se ergueu, fechou sua mão e descarregou toda a sua força como uma bala contra a maxila de Hugo. Depois, cuspiu o sangue em sua boca no rosto do oponente, quebrou seu nariz e chutou sua virilha.

- Parem os dois com essa merda! - gritou Alia segurando Huayta pelo braço antes que ele conseguisse esmurrar mais uma vez a cara do companheiro de gangue - Querem que os guardas espanquem todo mundo aqui por causa da briguinha de vocês?

Hugo e Huayta se encararam ofegantes, rostos e punhos vermelhos em corpos curvados e permeados de suor e ferimentos. Os dois viraram as costas sem dizer uma palavra e sentaram-se no chão. Huayta não sabia dizer se foi por ter descarregado uma vontade que estava dentro de si há muito tempo, mas a dor das agulhas não voltou naquele dia.

****

O jovem mago não conseguiu dormir, manipulando as conchas em sua pulseira e encarando o teto, e foi o único a escutar a chave tremulando nas mãos do guarda. A luz alaranjada da lamparina se misturou à sombra branca da Lua que adentrava a janela.

- Acorda! - gritou batendo o cabo de metal nas barras de ferro.

Os magos e bruxas da Coruja Negra se ergueram cambaleando e colocaram as mãos na cabeça. Estavam desarmados e sem cajados ou oferendas, a não ser que se cortassem e tentassem usar o próprio sangue. No subterrâneo, eles faziam as autoridades quebrarem a cabeça para descobrir como derrotá-los. Ali dentro, eram esmagados como insetos.

- Vocês serão direcionados ao Centro de Operações Especiais amanhã. Ordens diretas do Governo Central e da prefeitura de Cassandra. Serão direcionados até uma cela separada.

Cinco guardas armados vieram acompanhar no deslocamento de presos, e um deles, de íris prateada, olhou diretamente para Huayta e o chamou com os dedos.

- Você, moleque. Você é o cara da salamandra?

"Deuses, ainda nisso? Fazem cinco anos."

- Se eu entendi o que você quer dizer, não foi muito bem eu sozinho, mas por que quer saber? E como você sabia que eu...

O guarda prateado fez um gesto com suas mãos para que Huayta encostasse os ouvidos na grade enquanto os outros guiavam os prisioneiros para fora.

- Não posso falar o porque te chamaram - sussurrou - mas se você chegar lá, lembre-se de um nome. Pelos deuses não esqueça. Hallstatt.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top