5 - O fogo de ontem ou Epílogo
Dizem que as coisas sempre acabam do mesmo jeito para todo mundo, a partir do momento em que você fecha seus olhos e repousa para sempre. É uma coisa que você começa a se dar conta bem cedo, quando ainda está tropeçando nos próprios pés ou aprendendo a empinar pipa. As pessoas evitam falar disso, pois ficam amedrontadas. Elas temem o desconhecido. Mas um dia tudo acaba mesmo. Essa é a vida. Parece tão óbvio, mas as pessoas passam todos os dias de suas vidas distraindo-se do fato de que um dia não estarão mais aqui, de modo que a morte acaba se tornando algo desnaturalizado.
A finitude das coisas é apavorante mas necessária.
Antes que Hugo morresse, dei a ele o tempo suficiente para que terminasse o que havia começado. Sentado na assento do trem, perto de uma janela, banhado pela luz solar, ele folheava o caderno de August, estudando quais partes ele deveria juntar e se usaria todo o material.
Hugo não conseguiu manter-se mais que dez minutos concentrado. Uma raiva misturada com pena brotava feito uma planta venenosa em seu peito. O sonho do estúdio na Inglaterra foi destruído pela epidemia. Ele acha que fez uma escolha inteligente em partir, pois seus sintomas estavam cada vez mais evidentes, e ele não queria terminar seus dias longe da família. Em casa haveria quem cuidasse dele enquanto terminava sua missão, mesmo sabendo como seria o seu fim. Cuidar nunca será demais. Isso é uma das coisas que mais admiro no ser humano.
Hugo já havia lido muita coisa, então sua bagagem literária e sua sensibilidade ajudariam na tarefa.
***
Hugo não lembrou da última vez que chorara, mas parecia que havia passado muito tempo. As lágrimas há muito guardadas finalmente haviam encontrado a hora de romperem. Seus familiares estavam a sua espera, vestidos em trajes especiais. As medidas na França para conter a doença já estavam sendo colocadas em prática.
Naël, o pai de Hugo, ajustou a máscara no rosto e correu para abracá-lo. Pareceu um abraço que estava guardado por muito tempo. Sete meses longe de casa não seriam recuperados naquela troca de afeto. O pai de Hugo demorou para soltá-lo, mais pelo medo de que ele fosse embora outra vez do que por saudade.
— Não sabe como eu senti sua falta — ele disse.
Hugo não disse uma palavra, pois sabia que se abrisse a boca começaria a chorar. Tudo que ele fez foi abraçá-lo outra vez. Não sabia qual seria a última vez que faria isso.
Parecia que Naël havia avançado sete anos a mais que todo mundo, Hugo notara. O olhar bravo que Hugo lembrava antes de ir para a Inglaterra agora parecia ter perdido o viço. A pele estava ressecada, como a de quem passa o dia inteiro no sol. Sua voz também estava alterada, indicando que havia voltado a beber. Hugo quis questionar, mas não era o momento para fazer interrogatórios desnecessários. Ele havia voltado para casa por um motivo. Era ele quem estava precisando de cuidados.
Depois foi a vez de Antoine e Hubert, os gêmeos de quinze anos. Se não fosse pelo corte de cabelo e a personalidade distintos, seria muito mais fácil confundi-los. Eles estavam esperando Hugo dentro de casa e correram para abraçá-lo quando o avistaram, mas o pai deles logo os alertaram para soltar Hugo, dando um sorriso para o rapaz que dizia "você sabe como as coisas estão".
Hubert sempre pareceu o mais comprido e o mais distante dos gêmeos. A cara do Hugo, o pai costumava dizer. Antoine era o mais saltitante, que por vezes era reprimido por Naël devido ao comportamento. Segundo o pai, o mundo lá fora não entenderia o jeito dele e que seria melhor ele se comportar. As pessoas julgam muito as coisas que elas não entendem, Naël disse certa vez olhando nos olhos de Antoine.
Quando Hugo tinha dez anos de idade, ele ouvira as mesmas palavras saindo da boca do pai. Na época, antes da mãe mudar-se para o outro plano, piscou o olho para ele e disse que ele estava bêbado demais e não sabia o que estava falando. Mas Hugo pensou naquelas palavras por dias, questionando-se se estaria naquela situação se tivesse escutado o conselho do pai.
De qualquer jeito, era bom estar de volta em casa. Nem que fosse por um tempo muito curto.
***
O médico viria dentro de algumas horas. Enquanto isso, Hugo estava empenhado em terminar de organizar os textos de August. Ele estava em um quarto isolado já havia quase uma semana; essa foi a decisão da família. Qualquer lugar menos o hospital. Lá Hugo seria esquecido no meio de muitos outros e não haveria um último momento com os amados.
Houve uma batida na porta. Era Naël.
Hugo largou o lápis em cima da cama e virou-se. Uma bandeja com pão e pasta de nozes deslizou pela brecha da porta. Em seguida uma maçã embrulhada em um plástico e uma garrafa de suco de pêssego.
Ele caminhou para pegar sua refeição e a porta foi fechada imediatamente. Não questionava mais o silêncio de seu pai.
Quando Hugo apanhou sua comida, ouviu suspiros do outro lado. Ficou encarando a porta até que seu pai soltou um "eu te amo" vestido de lamúria.
— O médico deve estar vindo — disse Naël logo em seguida, de um jeito mais firme, como se estivesse envergonhado do que havia dito.
— Tudo bem — respondeu Hugo, encostando a testa na porta.
Ele ficou ali parado, com a comida na mão, e só saiu quando ouviu as botas pesadas do pai fazendo a madeira do piso ranger ao longe, dando sinal de que ele já havia se afastado.
Foi a primeira vez que ouvi ele dizer eu te amo, especialmente para mim, Hugo pensou.
Enquanto mastigava o pão e bebia com dificuldade um pouco de suco, várias coisas passavam pela cabeça de Hugo. Não imaginava o que o médico contratado para cuidar dele diria. Da última vez, disse que o melhor a se fazer era levá-lo ao hospital, pois lá ele teria mais recursos e evitaria que mais pessoas na casa fossem acometidos pela doença. Você sabe que está sendo pago para fazer isso, não sabe, soltara Noël, erguendo uma nota que havia pegado do bolso de seu casaco. O olhar do médico exalava uma sensação de desamparo, como se ele estivesse dizendo que Hugo só pioraria dali para frente. Mas não houve uma palavra sequer. Hugo já estava aos poucos aceitando a realidade.
Ele olhava com encanto para a foto que havia tirado de August no dia em que se conheceram. Quando ele olhava para ela, podia sentir a frieza e a insalubridade das ruas da Inglaterra, mas também lembrava do cheiro do perfume de cereja e avelã de August.
Hugo queria morrer com August nos seus últimos pensamentos.
***
Os escritos foram deixados nas mãos de Albert, um amigo de Hugo que sabia como publicar no jornal local. Albert analisou os textos e achou interessante o tom lúgubre e obscuro da escrita. Falava muito com o momento em que as coisas se encontravam.
Hugo havia organizado a versão em inglês e traduzido boa parte para francês. Não consiguiu fazer tudo o que queria, pois já estava muito cansado. Por favor, eu quero que faça isso por mim, ele implorou para Albert. O rapaz concordou com o pedido do amigo. Disse que as memórias ali contidas seriam lidas pelo mundo todo. Isso fez com que Hugo sorrisse.
Foi o último sorriso que ele deu em vida.
***
Foi o último pedido que ele fez em vida: que a foto de August fosse queimada junto com ele. E assim foi feito.
— Parece que está dormindo — disse Antoine em frente ao caixão do irmão.
Hubert, o gêmeo, estava mudo desde que encontrara Hugo imóvel na cama do quarto onde estava isolado. A pedido do pai, ele havia ido recolher a bandeja com a comida do irmão. Mas ela estava intocada e Hugo estava gelado. A pele parecia que estava se descascando. Os olhos vidrados e sem vida.
— Vamos, afastem-se agora — Naël alertou os garotos.
Antoine começou a berrar, como se tivesse cinco anos outra vez, dizendo que não queria ver aquilo, o que fez com que Naël o levasse para fora do crematório. Antoine nunca mais havia chorado como daquela vez.
Hubert tinha uma personalidade totalmente diferente. Naël sempre o comparou a Hugo, dizendo que ficaria igualzinho a ele quando ficasse maior. Hugo sempre foi muito assertivo e cheio de um espírito aventureiro. Hubert sentia que queria ser desse jeito também. Sentia que era disso que precisava para encarar o mundo lá fora.
De frente ao caixão do irmão, Hubert teve um desejo enorme de estar ali ao lado dele. Saber como seria a sensação de estar queimando. Queria saber se era desse jeito mesmo que as pessoas retornam ao pó, assim como aprendera na catequese que frequentava aos sábados. Talvez devesse perguntar ao pai, mas não achou que ele pudesse respondê-lo.
Hubert teria que descobrir sozinho.
1515 palavras
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top