4 ‐ Está no nosso sangue
Ela estava bem guardada dentro de uma caixa que Hugo havia trazido de viagem. Ele a segurava entre os dedos como uma preciosidade. Achava que tinha ficado melhor até mesmo da que havia tirado para os Baltimore; enquanto a foto da família evidenciava a preocupação em passar o ar de soberania e poder, a de August era um registro de simplicidade e pureza.
Ele sorria para a foto quando uma batida na porta o despertou do transe. Depois de quase uma semana sem notícias de August e sem o vê pelas ruas, ele finalmente havia ido a sua residência como havia prometido.
Várias perguntas perturbaram a cabeça de Hugo durante esse curto tempo longe do amado. Será que ele havia detestado o encontro na taberna? Será que foi demais tê-lo beijado ferozmente naquele beco que fedia a mijo e álcool? Não, August com certeza gostou, Hugo pensara, se não ele não teria o puxado de volta e colocado a mão nas calças dele.
A porta continuava a bater. Hugo escondeu a foto atrás de si, para que August perguntasse o que ele estava escondendo e ele pudesse ver o sorriso de August quando lhe mostrasse a foto. Mas não era o rapaz escritor que estava lá fora. O homem não se parecia com um escritor. Com um chapéu coco perfeitamente colocado em cima de sua cabeça e o bigode cobrindo o local onde deveria estar uma boca, mais estava parecido com um ditador. Seus olhoa eram sombrios, com bolsas escuras e profundas de quem não descansa há dias.
— O senhor é o Hugo? — O homem perguntou.
— Sim. Sou eu mesmo — Hugo respondeu, meio aturdido.
— Então é você mesmo. Peço que me acompanhe, por favor. E por favor, traga sua câmera com você.
— Não estou entendendo, senhor... — Hugo esperou o homem dizer o seu nome, mas ele não fez.
Seus olhos continuaram encarando Hugo.
— E para onde estamos indo?
— Ora rapaz, só me acompanhe, tudo bem?
— Não, só quero entender o que está havendo. E por que preciso levar a câmera?
Hugo estava apreensivo. Como aquele homem havia encontrado a sua casa? E se era para realizar algum trabalho, por que não foi até o estúdio?
De qualquer maneira, curioso, Hugo entrou, guardou a foto no lugar onde pertencia, vestiu um casaco e arrumou sua câmera. Não se preocupou em estar tão arrumado, pois a palpitação em seu peito demandava uma urgência de sua parte.
— Como achou o endereço da minha casa? — Hugo questionou.
Stuart demorou alguns segundos para responder, enquanto olhava para o relógio que se aproximava ao temanho de sua mão.
— Precisamos nos apressar. — Foi o que ele falou.
A negação do homem e a agitação das ruas contribuíram para que Hugo ficasse cada vez mais nervoso. Sua pele, apesar de estar sob camadas de tecido caro e grosso, estava elétrica. Seu coração crepitava, da mesma maneira como foi quando aproximou os lábios nos lábios de August.
August.
Ele não saía da cabeça de Hugo. Do jeito que ele era brincalhão, aquilo com certeza tinha algo a ver com ele, Hugo pensou, e logo em seguida sorriu. Hugo pensou que toda essa confusão fosse apenas para impressioná-lo e ele estaria o esperando de braços abertos. Hugo escreveu dentro de sua própria mente as palavras que August lhe diria quando visse, de modo que ele conseguiu ouvi-las vindo de algum lugar. Era como se, por um momento, August estivesse ali por perto. Hugo sentiu seu hálito quente, o perfume, o...
— Chegamos — o homem avisou, em um tom de voz sério e calmo.
Hugo deparou-se com uma casa bem simples, do tipo que todas classe operária possui. Um teto capaz de obrigar no máximo quatro pessoas. A porta tinha algumas marcas, como se alguém houvesse raspado uma faca ali. Hugo ficou tempo o suficiente encarando-as até que uma senhora com um pano preto sobre a cabeça abriu a porta.
— Ainda bem que vocês chegaram — ela disse, olhando admirada para Hugo. Ela fez um gesto com a cabeça, indicando que eles podiam entrar.
Foi como se Hugo houvesse esquecido como respirar. Seus olhos só conseguiam encarar a imagem de August na sua frente, largado em uma cadeira feito um boneco de pano. Ele estava arrumado, mais vem vestido do que em vida.
— O que... — Sua voz falhou. Uma dor desconhecida atropelou qualquer coisa que ele pretendia dizer.
Agora ele entendia.
A mulher, cujos os olhos já estavam lacrimejando, apoiou-se sobre o peito de um homem que Hugo só percebeu a presença quando desviou por algunas segundos olhar da imagem de angústia na sua frente.
Se tinha algo que Hugo queria fazer por aquela família era eternizar a memória de August. Enquanto ele encontrava uma posição adequada e arrumava a câmera, o homem e a mulher ficaram ao lado de August.
— Não muito perto, Fredie. Não queremos que essa doença horrível acabe com o resto da família. Vamos rápido com isso — a mulher falou, ajustando a luva que estava na sua mão direita. Ela pegou na mão de August, molenga e sem vida, e a deixou sobre o braço da cadeira.
— Quando quiser, rapaz — disse o homem, gélido e inexpresivo.
Depois de muito esforço, Hugo conseguiu tirar a fotografia. Não era uma das mais belas, mas ele lembrou que August havia dito que até a monstruosidade pode ser bonita de algum jeito.
— Estavam dizendo que esse negócio de tifo está virando uma epidemia — o homem disse a Hugo.
— Mas a força da nossa fé não foi o suficiente para nos previnir dessa praga — a mulher falou dessa vez, ainda com a voz chorosa.
Hugo não disse uma palavra. Ele não queria acreditar que aquela era uma despedida. Não queria aceitar de maneira alguma.
Ele procurou pelo homem que o acompanhou até a casa de August, mas ele não estava mais lá. Hugo não se perguntou o motivo, só queria sair dali o mais rápido possível.
— Vai levar uns dois dias até que a foto esteja pronta. Preciso ir para o estúdio agora. — Foi a primeira frase inteira que Hugo quando chegou ali.
Quando ele se virou para ir embora, o Fredie pediu para que ele esperasse. Em segundos, ele entrou em um corredor e Hugo achou ter ouvido o barulho de uma gaveta abrindo e fechando. Fredie voltou com um caderno em mãos. O caderno de August.
— August nos fez um último pedido. Queria que você fizesse isso por ele que ficasse com isso. São as memórias dele, rapaz. Então estou lhe entregando a alma do nosso garoto.
Hugo não hesitou em pegar o caderno. Agora ele parecia mais pesado do que na primeira vez em que o pegou.
— Obrigado — Hugo disse.
Ele não sabia o que estava sentindo ao saber que teria para sempre os escritos de August. Era como se houvesse uma corda presa no seu peito e que ele não sabia ao certo se ela estava ficando cada vez mais presa ou afrouxando.
— Eu gostaria muito que você viesse para a cremação hoje a tarde, senhor — a mulher disse. — E para a cerimônia de sete dias. Seria uma honra tê-lo aqui.
Hugo concordou com a cabeça.
— Sabe — a mulher chegou mais perto, tirando de uma vez por todas o véu que já pendia no seu rosto —, sabemos muito bem você e eu que isso tudo já estava previsto para acontecer. Não há muito o que fazer quando o pecado já está no sangue, a não ser olhar pra cima e pedir muito para que nada de ruim aconteça, mas sempre acontece — a mulher olhou para cima e fez o sinal da cruz. — Aconteceu o mesmo com o tio dele anos atrás. Todos sabíamos a vida que eles levavam no escuro, rapaz. Sabíamos as coisas sujas que eles faziam quando achavam que ninguém estava olhando. Mas eu amava meu filho de qualquer maneira. O amor salva, não é?
Hugo não respondeu, apenas colocou a mão no ombro da mãe de August e virou-se para ir embora.
***
Você acha que eu sou um escritor romântico, Hugo? Acreditaria em mim se eu dissesse que quis você no momento em que te vi?
Eu achei que de alguma maneira ter você nem que fosse por um breve momento pudesse me salvar da morte mas, para ser sincero, ninguém no mundo está salvo de encontrá-la, nem mesmo os mais belos monstros. Meu corpo estava queimando naquela noite, crepitava cada vez que se aproximava de você. Eu te queria tanto, precisava tanto de você assim como os drogados precisam do seus estímulo para sobreviver...
A página estava marcada quando Hugo começou a desvendar o caderno. Ele o levou consigo para o crematório. Ele folheava as páginas e lia cada palavra com afinco, como se estivesse tentando entalha-las na sua cabeça para que elas nunca mais pudessem escapar. Hugo com certeza teria belas memórias de August. Ele. olharia para aquela foto todos os dias e sentiria a presença do rapaz onde quer que ele estivesse. Com o caderno em mãos, Hugo poderia desvendar a mente de August e quem sabe publicar alguns textos de forma póstuma. Mas isso era algo que Hugo teria que pensar com calma.
1530 palavras
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