8. Intrínseco
Quando Dinha levantou da cama naquela manhã, estava disposta a entender. O que andava acontecendo com sua vida?
A última vez que viu Kadu foi o momento mais constrangedor da sua vida. O remorso de ter sido parte importante para que um relacionamento se destruísse a fazia sentir fisicamente mal. Por quase dois dias, ficou entocada em sua própria existência miserável antes que pudesse sair de casa e encarar o mundo. Parecia que aquilo estava virando um hábito e ela definitivamente se sentiu uma pessoa horrível por não saber como explicar para as amigas o que a deixava daquele jeito. Faltava coragem para admitir que errara, assim como me faltava coragem para tentar ajudar e remendar os pedaços que sobraram daquela história. Pelo menos ela havia conseguido ser honesta...
Que Cupido inútil, certo?
Mas o que Dinha queria entender era bem mais complexo do que palavras podiam explicar. Como saberia que seu tropeço era uma artimanha de uma criatura que ela sequer imaginava que pudesse existir? Eu dei inicio a faísca, por mais que não tivesse controle das consequências dela, quem havia começado tudo aquilo fui eu. Eles podiam estar pré-dispostos a se envolver, só que nada teria acontecido se não tivessem se encontrado, em primeiro lugar.
Ainda assim, do que adiava chorar o leite derramado? O estrago estava feito, as pessoas estavam machucadas e os estilhaços daquela bomba ainda teriam de ser removidos para que as feridas pudessem cicatrizar. Tudo que aconteceria já estava fora do meu controle. E foi por esse motivo que não me surpreendi tanto ao ver Lurdinha com o perfil de Kadu no Shell aberto, incapaz de fechar e trancar aquela porta.
No fim das contas, não precisaria.
* * *
As três semanas que se passaram para Kadu foram de uma meditação intensa do que fazer com sua vida. Manuela lhe era um caminho sem volta e que não queria percorrer. O que fizera com ela já era carma o bastante para uma vida; seu problema mesmo era Dinha que ainda o deixava completamente confuso. Ela não era a única a conferir perfis...
Os primeiros sete dias foram o luto pelo fim de seu namoro. A semana seguinte recolher os pedaços, tirar o status de namorando sozinho, tentar entender o que o levou a fazer aquilo. Mas jamais saberia. Algumas coisas simplesmente não tinham respostas e também não precisavam delas. Sua necessidade imediata era decidir: ficar sozinho? Seguir em frente com outra pessoa? Concluir o meu plano inicial e ir atrás de Dinha? Aquela era a grande questão que sintetizou sua terceira semana pós término.
Até em tarô online Carlos Eduardo buscou alguma iluminação e, ainda assim, saiu insatisfeito com as sete respostas diferentes. Depois de perceber que a vidência via Internet não ajudaria em nada na sua vida, resolveu que o tempo diria. Contudo, quem disse que o destino não tinha seu próprio relógio? Havia um limite para as coisas acontecerem e meu prazo estava se apertando. Por mais que o estrago feito pelos dois não fosse se ajeitar, o dano causado um no outro eu ainda podia arrumar. Foi esse motivo que me levou a levantar a bunda do sofá e fazer meu bendito trabalho uma última vez.
Não os obrigaria a ficarem juntos emocionalmente, no entanto, eu ainda podia trabalhar na proximidade física. E para Kadu e Dinha, às vezes isso era tudo que bastava.
Foi por isso que quando os amigos dele o chamaram para ver algum filme de comédia idiota no cinema, subitamente, Lurdinha ficou com vontade de tomar um milkshake. Bom, metade do trabalho feito: os dois estavam no mesmo local, na mesma hora. A última coisa que esperariam era a sorte de se encontrarem ali. Mas eu sou um Cupido bondoso e claro que os ajudei naquilo.
Nem preciso dizer o quão feliz fiquei quando o grupo em que ele estava passou pela mesa em que Dinha conversava tranquilamente com Laís. Naquele dia, minha vontade de derrubar tetos foi nula, inclusive pensei em passar Conrado antes na lista de casais a serem formados; foi ele quem reparou na garota e a cumprimentou. Nem parecia que falava com aquela que havia saído fugida de sua casa.
Aí estava uma pessoa que sabia lidar com um fora.
— Lurdinha! — ele abriu os braços, como se esperasse que ela o tomasse em um abraço. Mas tudo que Dinha fez foi perder a cor no rosto e encarar Kadu, atônita. Tudo que vinha dela era desespero, nervosismo, saudade. E a incapacidade de formular uma resposta para aquele que já não esperava mais nenhuma. Pelo contrário, Conrado parecia processar lentamente a informação nova. Os olhos passaram da garota, para seu melhor amigo e tudo que ele conseguiu dizer depois disso foi um sonoro: — Caralho!
Porque se Dinha parecia mal... Ah, Kadu definitivamente estava mil vezes pior. Fisicamente, pareciam em pé de igualdade, só que os sentimentos que fluíam dele me fizeram até questionar se forjar tal encontro tinha sido a melhor escolha.
Bem, cagada já estava feita. Eles que se limpassem.
— Eu quero que você me explique o que tá acontecendo depois de você conversar com ela. Porque, cara, vocês parecem que tem muito pra falar um com o outro — Conrado sussurrou o mais discreto que podia, e ainda assim, assustou o amigo. Kadu sabia que ele era um cara compreensível, mas não tivera coragem de explicar tudo que aconteceu. Ser um babaca não estava em seus planos. — Vou te quebrar essa. Gente, tô varado de fome. Bora comer um negocin? Boa sorte, Kaduzera. — No entanto, antes de ir embora com os outros dois caras que os acompanhavam, o rapaz cutucou a amiga de Dinha e torceu para que ela entendesse a deixa. — Laís, né? Você também tá convidada a se juntar a nós.
E foi assim que Carlos Eduardo e Lurdes Reginalva ficaram sozinhos pela primeira vez desde que se beijaram. Isso se esquecermos todas as pessoas que estavam na praça de alimentação do shopping.
Quando os dois se olharam então, após uma longa conferida para ter certeza de que o grupo estava longe o bastante, eu finalmente entendi. A compreensão de que era inevitável, de que Kadu não poderia lutar, não conseguiria escolher outro caminho. Dinha muito menos. Não importava que estivessem a quilômetros de distância um do outro; que ele vivesse na Terra e ela em Plutão. Sentimentos não fazem morada fixa em lugares com código postal. Eles encontram seu cantinho nas pessoas e as habitam de formas diversas — às vezes escondidos, em outras escancarados. Esse era caso dos dois, tão claro e certo como olhar para céu de noite e saber que as estrelas estão ali.
Se Cupidos pudessem dar mortais ou fazer breakdance de tanta alegria, aquele seria o momento em que eu estaria mostrando todas as minhas habilidades como dançarino e ginasta. Porque no instante em que Kadu sentou na frente de Dinha, todo o medo que os dois sentiram do confronto que estava por vir, se dissolveu feito açúcar na água. E antes mesmo dele abrir a boca para conversar com ela, eu já sabia o resultado daquela equação: o que os unia era uma questão que eu mesmo não entendia. Podia ainda não ser amor, podia ser um feitiço. Mas a verdade era que o que se encontrava enlaçando os dois era algo tão profundo que parecia natural.
Com um suspiro e um alívio imenso, dei um passo metafórico para trás. Meu trabalho estava feito.
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