6. Um Bentinho para um Escobar (ou vice versa)
Que ninguém além de Machado sabe de fato se Capitu traiu ou não, todo mundo tem noção. Mas a nossa história vai muito além de suposições, ela se atém a fatos. E esse fato, era que a bomba havia sido armada, porém, ainda não explodiria: por enquanto.
Na noite da festa, quando tudo pareceu que ia rolar ladeira abaixo, o bom senso voltou a cabeça dos dois logo que Laís acordou de sua soneca e puxou a barra do vestido de Dinha. Na mesma hora, se afastaram, como se um sentisse o fogo que ardia na pele do outro e tivesse queimado por tempo demais; aguentassem as consequências. A Bela Adormecida pediu para que a amiga a levasse para casa e o fez, assim que Laís foi e voltou do banheiro. Naquele tempo em que ficou sozinha com Kadu, a vida real os socou tão forte que chegava a doer.
Se não fosse errado, não teriam se soltado rápido daquela forma.
Tão cedo começou, tão cedo acabou.
― É melhor a gente não seguir por esse caminho ― foram as únicas palavras dele. Dinha sequer hesitou em concordar, sua cabeça aceitou aquilo sozinha.
Pelo menos ainda eram racionais. Isso desacelerava o meu trabalho, contudo, quem disse que ainda estava em minhas mãos? Agora eu era um mero deus do amor que supostamente poderia seguir meu próprio caminho e ir para os próximos na lista; só não sabia que ia querer permanecer pra ver o desfecho. Esse sim, seria um desastre.
Tanto não estava em minhas mãos, que se dependesse de mim, o que aconteceu mais ou menos umas duas semanas (ou foram três?) depois, jamais teria acontecido. As coisas estavam virando uma bola de neve e eu tive certeza disso no minuto em que Conrado chamou Dinha para ir em sua casa, com a desculpa de mostrar sua coleção de HQs (enorme, diga-se de passagem). Afinal, os dois vinham se falando desde uns dias após de conhecerem e ele mencionara sobre também adorar ler histórias em quadrinhos. Eu sabia que para o sem noção não era só isso, mas do que conta minha opinião?
O que complicou mais foi que Dinha sabia que não seriam só as HQs. Não era como se gostasse de Conrado; ele era legal e bonito e tudo mais, o único problema era que... Não era o Kadu. E nada do que ela sentia quando estava perto dele se comparava com o que tivera só segurando a mão de Kadu, olhando em seus olhos, tocando no rosto.
Era um caminho que não seguiria e foi por isso que aceitou o convite ― estava feito.
Se acontecesse algo entre os dois, a bomba atingiria mais gente do que era necessário. A Branca de Neve já era casualidade o bastante, eu precisei interferir. Esse foi o motivo que me levou a empurrar Luiz (que já tinha diploma em intervenções) para a casa de Conrado; não deixaria que ficasse com Dinha. O que não esperava é que ele atrapalharia os planos e chamaria Kadu também. Teria que torcer pelo melhor, mesmo que tivesse que usar meios escusos e desagradáveis. Como os dois se comportariam a partir daquilo já não era mais da minha conta.
O que me divertiu um pouco foi a surpresa de Conrado, quando os dois apareceram com uma caixinha de um jogo que acabara de sair, em mãos, na porta da casa dele. Surpresa maior ainda foi quando Kadu notou Dinha lá dentro, aparecendo no vão da porta da cozinha, atrás de seu amigo. Não saberia dizer qual dos dois estava mais surpreso. Só sabia que apesar de Conrado achar que aquilo atrapalhava seus planos, ficou um tanto animado em atirar na cabeça de alguns zumbis. Animado o bastante para cometer um erro sem sequer perceber.
― Kaduzera, sobe com a Dinha, mostra pra ela onde fica meu quarto. Luiz, vamo pegar uma parada pra comer e beber e aí a gente vê qual é a desse jogo.
Ainda que constrangidos ― por mais que ninguém notasse ―, os dois fizeram o que ele havia pedido. Kadu subiu na frente e ela logo atrás, se arrependendo amargamente de estar ali, cogitando fugir de uma vez. No entanto, nenhum deles fez nada além do que o pedido: a porta do quarto foi aberta e, inconscientemente, fechada logo atrás de Dinha.
Quem sabia o que dizer no momento? Não Kadu, muito menos ela. Um silêncio constrangedor se propagou até se tornar sufocante demais para ser suportado. Com essa razão, o rapaz abriu a boca, por mais inseguro que estivesse do que falaria.
― Por que você está aqui? ― ele perguntou, mas uma expressão de dor foi sua única resposta. ― Por que veio até a casa do meu melhor amigo?
Por uma eternidade, Lurdinha ponderou. Não sabia o que dizer, ainda que também não tivesse ficado sem falar nada.
― Eu só vim. Ele me chamou pra ver a coleção de quadrinhos que ele tem ― o derrotismo se fez em um dar de ombros; as íris tristes pareciam piores. Supus que estariam mais infelizes ainda se Dinha olhasse nos olhos daquele pobre menino.
https://youtu.be/shP_1RoIfho
― Você é tão ingênua assim? ― foi o que questionou, só que eu sabia que a real vontade era saber se ela estava ali para beijar seu melhor amigo, como era o que vinha cogitando. E que provavelmente se fazia verdade.
― O que você quer que eu faça? ― então, Dinha o encarou, de verdade. Sem aquilo que a segurava, com os olhos vidrados, inconsequentes, nos dele; o fogo que lutava contra as chamas. No fim das contas eram uma coisa só. Suas palavras apenas tornaram aquilo mais difícil; não. Impossível. ― Quem eu queria beijar de verdade eu não posso.
Por um mísero segundo, Kadu cogitou tentar ouvir a resposta pela boca dela. E quem você gostaria de beijar?, ainda que fosse ideia em sua mente, para que precisava de uma resposta que já sabia? Sabia pela expressão de Dinha tudo que se passava e tudo o que não passaria. Conrado não tinha chances, por mais que ela se enganasse um pouco que talvez aquilo fosse funcionar. Quem ela queria estava ali, na sua frente, de pé, fixo nos olhos castanhos, longe e perto demais, perdido bem longe de qualquer razão que pudesse interferir no que estava sentindo no momento.
Naquela manhã, quando acordou, lembrava-se de todos os detalhes do sonho que tivera madrugada adentro. A pessoa que havia amanhecido em seu inconsciente estava tão próxima que parecia irreal. Teve medo de que se a tocasse, viraria névoa de novo e se espalharia pelos quatro cantos do mundo, bem distante dele. Mas ela não era feita de areia e sonhos, Dinha era uma mulher de carne e osso que não conseguia parar de pensar em Kadu, por mais que não quisesse. E ele não conseguia parar de pensar nela, nem quando dormia mais.
O que me chocava era que eu já não tinha mais poder nenhum sobre os dois; o que Kadu sonhou pertencia só a ele. Eram as coisas que tinha medo real, não um temor inserido por uma entidade imortal: tratava-se de um desejo concreto.
Foi assim que percebi que a bomba explodiria. O castanho no castanho, um passo a frente. Um aroma de tentação que rodeava o ar que respiravam ― feromônios em ativos e passivos, apenas vendo o desenrolar daquela cena, como eu. Vi Carlos Eduardo tocar o pescoço de Lurdinha e as pálpebras dela se fechando, incapaz de manter o foco quando sentia o calor da pele dele, na sua. A cabeça pendera para trás com a carícia e o silêncio foi um escudeiro fiel; dos lábios entreabertos, o pedido mudo viera com um me beija jamais pronunciado.
E numa obediência fora do comum, detonou. Tudo voou para os ares, levando qualquer coisa que estivesse por perto. O calor da combustão nuclear se propagou por todos os cantos, queimando vivos os corpos e a sensatez humana. Apenas fogo, destruição e morte sucederiam. Quem não havia sentido a chama, sofreria as consequências em forma de radiação; agora eles eram tóxicos e acabaria assim.
Kadu a segurava como se alguém fosse a tirar dele a qualquer segundo. Sentia que perdera tempo demais e que nada seria o suficiente. Já Dinha tinha os dedos circulando o pulso do pobre rapaz, incapaz de se mover, de acreditar que aquilo acontecia mesmo.
Ninguém nunca a beijara daquele jeito, ninguém nunca pareceu querê-la de uma forma tão real e sincera. Aquele era um momento em que nada mais seria igual, e quem disse que se importava? O mundo lá fora sequer existia; Kadu era seu. Tal como Dinha também era de Kadu. Como evitaria? Jamais poderia. Se a bomba já explodira, que continuasse a espalhar seu efeito devastador: as costas dela foram contra a porta de madeira e o corpo dele, de encaixe com o seu.
Os lábios ainda um no outro, incapazes de contenção, de um afastamento nem que fosse para respirar. Lá no fundo sabiam que caso se soltassem, não voltariam a ficar perto um do outro. A realidade era mais dura do que um lapso de loucura momentânea, sempre haveria um depois. Mas por enquanto só tinham o agora. E era isso que aproveitariam.
Ele puxou o seu lábio inferior e tudo o que Dinha mais quis foi puxar o dele de volta. As mãos percorreram dos braços ao peitoral dele, subindo pelo pescoço e descendo de novo até a cintura, a qual a garota puxou, trazendo-o junto a si. Kadu estava tão perto que a deixava zonza. Em um certo momento, realmente achou que desmaiaria; nunca permitira que isso acontecesse. Se tinha Kadu, o teria até a hora de dizer chega.
Uma pena para ela que essa veio rápido até demais, quando sentiu algo em sua coxa e soube exatamente o que era.
Com um empurrão súbito, tão rápido começou, tão rápido acabou. Isso estava parecendo uma espécie de padrão com os dois.
― Olha o caminho que a gente seguiu ― foi só o que Dinha conseguiu dizer, ainda sentindo a dormência nos lábios que não conseguiu evitar tocar. E aquele nem era o efeito mais devastador; tinham piores. ― Pelo amor de Deus, Kadu. A gente não pode fazer isso. Você tem uma namorada.
― Eu... Eu... Eu nem sei o que dizer ― e era verdade, os sentimentos dele estavam tão confusos que sequer me dei ao trabalho de tentar decifrar. ― Isso é errado.
― Muito ― o que me partiu o coração poderia ter sido um mero detalhe, mas era isso aí: Dinha estava chorando. ― Eu não sei o que aconteceu com a gente pra vida empurrar nós dois no mesmo caminho toda hora, eu não pedi por isso, e muito menos você. Mas eu não estou mais sabendo lidar. Isso aqui ― Fez um sinal com o dedo, indicando a si e a ele também. ― não parece ser só coincidência, o jeito como eu te quero e o jeito como eu sei que você me quer... não pode ser só isso. Atração é pouco pra definir o que tô sentindo e eu não pretendo ficar aqui pra descobrir o que é. Por favor, eu não quero mais te encontrar. O Rio de Janeiro é grande demais pra gente acabar parando sempre no caminho um do outro. Pede desculpas para o Conrado por mim, eu não posso encarar ele agora e nem tão cedo. Muito menos você.
Dinha sequer esperou uma resposta. Atravessou a porta do quarto com o vento nos pés, deixando tanto a ele quanto a mim, mortos de preocupação. Depois disso, ficou trancada em casa o máximo que podia por quase uma semana. Sem explicações para ninguém, mas eu sabia o seu porquê: sair significava a possibilidade de esbarrar com Kadu na rua e isso era o que menos queria. Ainda que fosse o que provavelmente aconteceria; meu trabalho havia se concretizado em um nível que eu sequer precisava me meter. Era um dos efeitos naturais dos casais que deveriam estar juntos: em algum momento não precisariam mais de mim para meter o bedelho.
A parte que mais doeu então foi quando Júlia e Laís a arrastaram para fora de casa, com a desculpa de que ela parecia uma morta viva e que precisava ao menos se divertir um pouco; foram para uma loja cheia de jogos que abrira a pouco no shopping. Seria legal, tiraria de sua cabeça um cara que não tinha nem que estava ali em primeiro lugar.
Pena que o tiro saiu pela culatra: Kadu apareceu em seu campo de visão, braços dados com Manuela; Dinha achou que fosse desabar. Aquilo não estava nem um pouco certo e de tão errado que era, o segredo não pareceu mais tão secreto assim.
Foi tão claro, pelo olhar que eles trocaram, que até mesmo Manuela se sentiu desconfortável.
Provavelmente era apenas o prenúncio do que ainda viria ― a radiação começava a fazer seu efeito...
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