4. Grafite em papel

- Talvez seja você quem tá me seguindo, porque eu não tô fazendo nada.

Naquele momento, já não fazia mais nada, nem esperava. Somente tratei de observar os dois em uma dinâmica muito melhor comparada a primeira vez em que se viram de fato. Torci muito para que não precisasse intervir para o bem de ambos e do jeito que estavam as emoções emanadas, duvidava muito disso.

Mais uma vez, um mergulho de olhares que se durasse muito, os levaria ao afogamento - nunca quis tanto algo em minha longa vida.

- Provavelmente é uma coincidência - uma muito boa, por sinal, ela pensou isso, supus. Porque se havia algo acontecendo era a nossa sintonia. Dinha queria a mesma coisa que eu, estava mais claro do que nunca.

Vi como os olhos dele faiscaram antes de reprisar o sorriso que ela também tinha nos lábios. Foi um momento adorável que durou antes de uma ideia ótima surgir na mente de Lurdinha.

Aquela menina tinha o meu respeito, quem sabe a colocaria como minha suplente, se precisasse. Talvez ela desse uma boa aprendiz de Cupido.

Em todo caso, Dinha tirou o caderno de rascunhos da bolsinha transversal e por um momento pensei que iria mostrar os desenhos que fizera dele. Ledo engano, a realidade era muito melhor do que a ficção da minha cabecinha. Mas não na parte dela.

Quando pigarreou, não teve só a atenção do futuro namorado; a minha também. Nós éramos seus pelo momento, ao menos.

- Eu sei que posso parecer muito estranha por perguntar isso, mas - ela colocou um mecha de cabelo atrás da orelha de uma forma um tanto fofa. Não fui o único a reparar. - você se importa em posar para mim?

Não, ele não se importa, inclusive quer e muito, quis responder por ele, no entanto nem eu era tão poderoso assim para reagir por ele. De todo modo, não me decepcionou. Kadu pareceu confuso por um instante e ainda assim, não saiu do estranho encanto que ela estava lhe causando.

- Se isso foi uma cantada, eu estou lisonjeado, mas não acho que eu seja um bom modelo. - debochou. Eu quis rir e entrar no papo, mas nenhum deles me via. Então só ri e continuei prestando atenção com muito gosto daquele encontro ser o primeiro que me parecia levar a algum lugar.

- É só ficar parado do jeito que eu mandar, vai ser bem rápido. - por um momento ela pareceu ponderar. Franziu o nariz e abriu o caderno em uma página em branco, em várias outras eu sabia que já estavam as imagens dele ali, feitas com o mesmo grafite que em breve seguraria nas mãos. -É porque você tem um nariz muito bonito.

Bem, cá estava uma coisa que eu jamais suspeitaria: Dinha gostava do nariz de Kadu? É, a vida tem umas curiosidades estranhas e inusitadas. Um nariz seria o meu último chute se tivessem me perguntado qual parte dele eu achava que aquela garota doida gostava mais.

Enfim, vamos de volta ao que importa. Ele.

- Mais cantadas? - eu sabia que era uma brincadeira, contudo, pela cara que a bonitinha fez estava bem claro que ela achava que passara dos limites. Quem disse que tinha? Eu jamais colocaria limites para os dois! Por mim podiam já estar se pegando desde que se conheceram, pena que eu não tinha "jurisdição" para certas coisas.

- Ai, desculpa se tô te constrangendo. Esquece que eu pedi. - ela deu um muxoxo que o fez sentir mal e com a necessidade de esclarecer tudo bem rapidinho: - É brincadeira. Acho que estou te devendo por você ter abrido mão do Sandman pra mim.

Eu só faltava dar piruetas de alegria.

Aquilo estava dando tão certo e tudo que eu precisava fazer era só sentar e olhar meu lindo projeto de anos tomar seu próprio rumo. Me senti tal como um pai orgulhoso ao ver sua prole caminhando do modo correto; talvez não fosse a melhor analogia. Mas de todo modo, finalmente um fio de esperança me trazia a certeza de que algo aconteceria entre eles - e eu não era o único.

Porque o jeito como Dinha sorriu... Havia algo de malicioso, que deixaria Kadu no pó. Eu não mentira quando dissera que ela não era um anjo, ainda que ele devesse vê-la de tal modo há uns anos. Aquela metade da laranja era a coisinha mais decidida que havia entrado no caminho dele. De lá, não sairia.

- Sim, você me deve. E pode me pagar ficando paradinho do jeito que eu te mandar.

- E depois? Eu posso ficar com o desenho? Ou você vai precisar dele pra algo? - ele parecia genuinamente curioso e eu supus que ela lhe daria, afinal, já tinha uma arte dele para si.

- Vou pensar no seu caso - foi a única coisa que ela lhe respondeu antes de fazer sinal para que Kadu sentasse no banco em sua frente. Ele o fez e Dinha sentou ao seu lado, de pernas dobradas.

Eu não esperava que aquela fosse a melhor parte do meu dia. Se eles já se queriam só com um olhar, a coisa piorou (e muito) logo que ela tocou em seu rosto para ajustar o melhor ângulo para o desenho. Não havia uma palavra exata para definir para o sentimento que explodiu de dentro dos dois. Algumas pessoas chamavam de eletricidade, outras diziam que era como um fogo que vinha se alastrando; eu supunha que era entendimento.

Os corpos de ambos agora tinham plena noção que o objeto de seu desejo estava bem a frente, o toque não era um mero toque. Agora era um acordo selado, uma concordância falada em caixa alta; gritada.

EU QUERO VOCÊ

VOCÊ ME QUER

Era tão simples quanto 2-1 ser igual a 1. A matemática da atração tinha então seu resultado. E seria desastroso, se não fosse tão lindo. Bom, era de fato uma receita para o desastre. Mas quem ligava? Não eu. Aparentemente, eles também não.

Manuela não existia para mim tanto quanto não existia para Kadu. As únicas coisas reais eram os olhos de Lurdinha cravados nos seus, tão sóbrios e sinceros; a pele, as pontas dos dedos, tocando como um veludo vivo o seu rosto; e a lembrança. O que veio na mente dele foi o sonho - o modo que a perda dela lhe deixou ao partir, a sensação de uma saudade que nunca esteve ali presente tão intensa. Aquilo tudo chegava a enuviar a razão. A parte mais estranha de todas era a de que o que sentia parecia tão certo que não havia a necessidade desesperada de beijá-la, como eu imaginaria.

Para Kadu o mero fato de que ela estava ali, junto a ele, em carne e osso, soava o suficiente para o momento.

Para o momento.

* * *

Depois de toda aquela confirmação invisível, o mundo voltou a girar quando Dinha arregaçou as mangas e trabalhou no desenho dele. Para quem visse de fora, poderia parecer uma cena cotidiana, mas já não era mais. O destino estava nos trilhos e quem comandava esse trem era eu.

Tempos depois (quando você vive eternamente, para de contar as horas e minutos; ocasionalmente eu pararei de contar os dias também), o grafite dava os seus últimos ajustes sobre um rascunho - muito bom, por sinal - das feições de Kadu. Antes de se dar por vencida, Dinha esfumou as partes que lhe cabiam, tentando deixar o desenho o mais ajeitadinho possível.

- Pronto. Vê o que acha - ela passou o caderno para as mãos dele que tomou uns minutos para analisar a obra. Um sorriso foi o que bastou para a satisfazer.

- Parece mesmo comigo- Kaduzinho gargalhou, como se tivesse pensado em uma piadinha besta. -Dã, sou eu.

- Se eu tivesse tempo, faria algo mais detalhado, mais estilizado, não sei. Enfim, eu vou te dar o desenho, mas deixa eu tirar uma foto dele antes pra poder ter salvo. Quem sabe depois eu tento fazer um desenho mais completo?

Ele ficou prestando atenção em cada minimo movimento dela enquanto a minha linda desenhista pegava o celular e fotografava a imagem ali. Me perguntei por uns instantes se ela colocaria como papel de parede; sonhar não custa nada.

- Se você fizer, como eu vou ver? - e ele realmente estava curioso. Não era rotineiro que alguém o desenhasse do nada e ainda tão bem, principalmente quando acontecia o que aconteceu entre os dois.

Quem era Manuela na fila do pão?

Por um momento, achei que Dinha lhe daria seu número do telefone. Seria uma forma fácil, mas havia uma parte dela que ainda se preocupava: foram muitos caras escrotos em sua vida. Era melhor se certificar que esse não seria mais um - o último a obrigara a trocar seu número. Não arriscaria desse jeito e minha garota tinha táticas melhores.

- Me adiciona no Shell, é só ir atrás de uma Dinha Alcântara com a minha cara na foto do perfil e você me achou - ah, o mundo tão conectado pelas redes sociais... ao menos se ele fosse um idiota, poderia bloqueá-lo e nunca mais precisar se preocupar. Sorte a sua que essa era uma das poucas coisas na vida com a qual teria que se preocupar.

Assim que ouviu o nome dela, Kadu percebeu que algo estava faltando. Talvez fosse o essencial.

- Verdade, você não sabe meu nome também. Eu sou o Kadu, prazer.

A mão erguida fora mais do que um gesto amigável, parecia um convite.

- Prazer, Dinha - ela retrucara e um aperto firme de mão fora dado.

De volta todos os sentimentos, toda a vontade em um furacão de emoções que não poderiam ser controladas. Uma tempestade se aproximava, tanto para o bem, quanto para o mal, e o presságio só passou no momento em que os dois se soltaram.

Pronto, agora apresentados, é pra se pensar: já podem dar uns pegas. Ou quase...

Afinal, muitas pedras no caminho.

Eis a surpresa, quando Carlos Eduardo de fato a adicionou no tal do Shell, e horas mais tarde ela foi fuxicar o perfil.

Status de relacionamento: namorando.

Duas fotos fofas dele com Manuela, sendo aquela pingação de mel sem fim. Outras várias aonde ela aparecia junto com a família e os amigos de Kadu.

Que morte horrível.

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