1. Flechas no caminho
Alguns dizem que o Cupido tem muitas artimanhas para juntar casais. Flechadas, particularmente, soam antiquadas demais para o século XXI, mas metaforicamente falando pode-se dizer que é engraçada a ideia de que o amor é uma ferida letal. Deveria te machucar, te fazer sangrar. Quem sabe não faz? Você só não sente porque está entorpecido por aquele sentimento tão bom. Dizem.
Pena que isso não é amor.
Desde que parei de dar flechadas na bunda dos outros (mentira, nunca dei, é uma brincadeira), faço uso de muitos meios para juntar casais. Alguns deles, escusos, até admito. Contudo, é o meu trabalho: as pessoas precisam estar atadas romanticamente para cumprir suas missões na Terra. Há uma longa lista de coisas que tem de ser feitas e eu sou um dos caminhos para que isso aconteça, ao menos quando se trata de algo feito graças a um envolvimento romântico ― muito importante, claro que sei.
Bem, esse não é o ponto da nossa história. O ponto da nossa história é composto. Na verdade, os pontos. Eu sou "só" uma representação do amor e aqui, nós estamos falando da coisa real.
O fato é que não junto qualquer um. Eu junto pessoas que eventualmente irão se amar. Paixão é incrível, arrebatadora, só não é minha meta final. É um processo. Às vezes, nem isso. Tem gente que se ama sem aquela paixão inicial. O detalhe que define todos que já juntei é que sempre virou amor, de um jeito ou de outro. O que nos leva ao nosso caso do momento.
Lurdes Reginalva. Carlos Eduardo.
Para a família, Lurdinha. Para os amigos, Dinha.
E ele, para todos, só Kadu.
Supostamente, estavam marcados para se conhecerem no verão de 2012, em Barra Funda, numa viagem que nunca faz sentido para mim, já que ambos eram do Rio. Isso só aconteceria se a irmã dela não tivesse descoberto que o namorado a traía há pelo menos dois meses e se trancado no quarto, fazendo com que a família inteira perdesse o voo para São Paulo e eventualmente desistisse de qualquer perspectiva de férias. Lembro de ver uma Dinha de dezessete anos dando graças a Deus por não ter que gastar as férias longe dos amigos. Talvez, se soubesse o que a aguardava não teria ficado tão feliz assim.
Era para ser um momento lindo; era para ser mágico. O "destino" havia se encarregado das luzes da festa recaírem sobre Dinha de uma forma que a tornaria o ser angelical, que não era, aos olhos dele.
Eu fiz tudo certo: não tinha culpa do chifre de Ana Paula porque não foi um chifre de amor, foi de tesão. O namorado dela não sabia controlar a minhoquinha que carregava entre as pernas e atrapalhou um plano orquestrado durante anos. Se eu fosse o deus da morte, teria feito o teto cair na cabeça dele enquanto dormia, mas eu sou um mero deus do amor e só posso fazer pessoas se apaixonarem. Um dia ele me pagaria e... por que eu não consigo me ater ao assunto real?
Voltemos.
Dinha e Kadu, Dinha e Kadu, Dinha e Kadu.
Os dois precisavam ter se encontrado naquele dezembro de 2012, nas luzes, no cheiro de álcool e suor, na brisa morna. Era para terem conversado a madrugada toda, descoberto que ambos moravam na mesma cidade e que aquilo não precisaria ser um amor de verão ― eu faria subir a serra! Mas ao invés de Kadu ver Dinha como seu anjo, ele viu Letícia.
Le-tí-cia. Letícia, que deveria ter passado os próximos cinco anos em uma seca de rachar as partes íntimas. Naquela noite, nada nela ficou seco. Muito menos em todas as outras durante os dois anos que seguiu namorando Kadu. Minha sorte era que aquele não era um par com futuro, não era almas afins ― aquilo nunca chegou a virar amor. O que mais me surpreendeu foi o fato da paixão ter durado tanto tempo. Pareciam dois coelhos no cio, não se largavam nem por um segundo e eu já estava começando a me perguntar se um dia seria capaz de fazer as coisas voltarem ao destino correto.
Ao menos, quando o fogo de Letícia apagou, ela tratou de acabar com o de Kadu também. A relação ficou tão morta que quase entreguei uma pá a cada um para que terminassem de enterrar aquele desastre. Quando não tinham mais o sexo para recorrer, viraram duas pessoas amargas, que só estavam juntas pela comodidade. Até que ela não foi mais o bastante.
Eu lembro de quando ela chegou na casa dele, chorando, dizendo que já não dava mais. Quase pulei de alegria. Já estava preparando uma nova forma de colocar Dinha no caminho de Kadu, só esperei o momento do funeral para por meu plano em curso. E com uma rosa jogada no caixão daquele relacionamento, os dois poderiam ficar juntos de fato.
Ao menos a vida de Dinha ganharia um upgrade, afinal, nem eu sabia como alguém poderia topar com tantos caras escrotos em sua vida. Nesses dois anos, Dinha e seu coração volúvel ficaram com seis caras.
O primeiro foi Fábio, pescado no tinder, a "versão moderna" de mim. Depois veio o Lucas, apresentado por uma amiga em comum. O Thaíde, então, que ela conheceu em uma baladinha. Seguido pelo Humberto, vendedor da livraria que ela costumava frequentar. Teve também o Túlio, que era primo da Júlia, sua amiga de infância. E, por fim, o Alberto. Ou Beto.
Dos seis, foi o pior.
Com todos um pouco ― porém, principalmente com ele ―Dinha aprendeu que às vezes era melhor ficar sozinha.
Mas sozinha não estaria por muito tempo.
* * *
Foi numa linda manhã de fevereiro que eu me senti um vencedor. As pessoas acham que um belo dia de sol é o clima perfeito para se apaixonar, mas dizem que os beijos mais românticos são dados em baixo de chuva. O dia estava assim. Sem passarinhos cantando, raios solares, brisa de verão. Apenas o som da chuva batendo no chão e nos telhados.
Meu primeiro sinal deveria ter sido quando Dinha teve que voltar para casa por ter esquecido o bilhete único. Meu segundo sinal, logo que o guarda chuva deu problema e ela ficou quase três minutos tentando fechar aquela bodega, o que fez com que perdesse o ônibus. Não me daria por vencido nisso, eles passavam de dez em dez minutos; um atraso não estragaria meu planos, afinal, Kadu não era conhecido por ser o mais pontual em nada. Meu terceiro e último sinal foi quando um dos amigos de Kadu apareceu do nada e o arrastou para a direção oposta do que ele deveria tomar, rumo ao dentista.
Ele tinha que pegar um ônibus para isso. A mesma droga de ônibus que Lurdes Reginalva Alcântara Mattos estava.
Luiz, o "amigo" de Kadu era mais um para a lista de pessoas em quem eu gostaria de poder derrubar um teto em cima. No dia seguinte, o caminho se desvirtuou mais uma vez, para minha infelicidade plena.
O nome desse desvio de rota? Manuela.
Maldita Manuela.
É aqui que nossa história de fato começa.
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