1. Hush Little Man, Don't you cry

A água pingou na pia pela 16º vez naquele dia.

O problema de vazamento devia ser nos canos, algum esquilo devia ter roído, ou então um guaxinim passando por ali devia ter achado que aquele era o lugar ideal para guardar seus pertences durante o inverno — ou talvez aquilo fosse apenas mais um dos souvenirs da casa extremamente velha e empoeirada.

Fosse o que fosse, aquele tilintar irritante no fundo da pia estava matando Jungkook, e o pior de tudo não era nem o vazamento, mas sim o fato de que o gotejamento não tinha ritmo nenhum, eram em torno de 369 a 500 pingos caindo aleatoriamente nas 72h que ele passou na casa... Mas quem estava contando, não é mesmo?

Jungkook não tinha se importado, quer dizer, não inicialmente. A casa tinha sido barata demais para ele não aceitar a proposta — onde mais ele conseguiria uma casa inteira mobiliada e pronta para se mudar por um preço daqueles?

Ele não tinha muitas exigências: uma cama confortável, sinal de wifi e energia elétrica — era o suficiente.

O jovem havia acabado de concluir sua graduação em Literatura Inglesa e estava mais do que animado por finalmente conseguir tirar férias para descansar e, bem, quem sabe já não dar os primeiros passos em sua carreira como escritor. Apesar de não ter sido sua primeira opção de curso, Jungkook acabou se apaixonando pela área, e trabalhou muito duro em seus estudos durante todos os 6 períodos para provar para seus pais que seu dinheiro não tinha sido "jogado no lixo", e que ele não estava desperdiçando seu futuro: ele nunca tirou uma nota abaixo de 875, tinha se formado com todas as honrarias e até mesmo foi nomeado como orador da turma em sua formatura.

Havia sido uma longa batalha, por vezes, ele se viu pensando em desistir e trocar para um curso mais tradicional, como advocacia ou engenharia, mas a escrita era a única coisa que o deixava realmente satisfeito e feliz com a vida, e então ele acabou dispersando todos esses pensamentos e voltou a se concentrar nos estudos. Por sorte, em algum momento do caminho, seus pais acabaram entendendo sua paixão pela escrita. Jungkook pôde sentir o doce gosto da validação de seus pais e enfim aquele peso invisível em seus ombros desapareceu.

Bufando, o moreno se levantou do sofá e voltou a observar a torneira barulhenta.

— Coisinha irritante, o que eu vou fazer com você?

Jungkook havia passado as sete noites, desde que chegara ali, completamente em claro. Ele estava tão cansado que nem sua memória estava prestando direito: ele achava ter colocado suas coisas em certos lugares, mas depois elas apareciam em lugares diferentes ou simplesmente sumiam; ele tinha certeza de que estava ficando maluco.

Jungkook estava com olheiras fundas sob os olhos, veias vermelhas saltando de sua esclera e o cabelo castanho oleoso e desgrenhado já estava grudando em sua testa e tapando sua visão.

Ele nunca teve o menor jeito com mecânica, e não era agora que ele começaria. Haviam três pedaços de trapo ensopados presos ao redor da estrutura de metal — essa havia sido a maneira mais improvisada de tentar resolver o vazamento. Para piorar a situação, o sinal de celular ali era péssimo. O antigo dono do imóvel havia sumido completamente de vista e com certeza não tinha mais interesse em voltar para o meio da mata apenas para consertar os estragos para Jungkook — ele teria de lidar com aquilo sozinho.

— Ugh, não quero nem ver a conta de água no final do mês, estou ferrado. — Ele suspirou, olhando para o relógio na parede e vendo as horas, 17:45.

Jungkook abriu a geladeira, empilhando nos braços um sachê de molho de tomate fajuto e um pouco de macarrão caseiro que havia comprado no caminho até a casa — aquilo teria que servir como jantar.

Ele encheu uma panela com água, derramando o macarrão com cuidado e jogando uma pitada de sal. Seu celular vibrou no bolso de seu moletom.

"E aí, Kook, qual a boa?"

Era uma mensagem de Namjoon, seu veterano e um de seus melhores amigos da faculdade. Como sempre, mandando mensagem para checar se ele estava vivo.

"Nada. Tô fazendo um pouco de spaghetti, e vc?"

"O Jin tá passando a noite aqui em casa, a gente tava assistindo High School Musical e lembrou de vc ;)"

Jungkook riu.

Desde que começaram a namorar, aqueles dois pareciam que não se desgrudavam mais, e ele tinha que admitir que tinha sentido uma pontada de ciúmes de Namjoon nos primeiros meses. Mas agora Jin já era praticamente um membro honorário do grupinho — qualquer tentativa de sair sem ele deixava a sensação de que algo estava faltando... simplesmente não era mais a mesma coisa.

"Quantas vezes eu tenho que dizer que eu NÃO me pareço com o Troy Bolton??! Isso já perdeu a graça faz tempo, hyung!"

Namjoon começou a digitar, mas parou. Ao invés disso, Jungkook foi "agraciado" com uma figurinha de seu rosto colado no corpo de Troy Bolton.

"VAI SE FERRAAAAAAAAR"

"Hehehehehehehehehe."

"Ai, meu macarrão tá cheirando a queimado, falo com vc dps. E vê se para de uma vez com essa coisa de High School Musical."

"Nunca!"

Jungkook bloqueou a tela do celular, revirando os olhos.

Ele destampou a panela, sentindo o vapor quente subir para seu rosto. Pegando um garfo, ele puxou um dos fios do macarrão para sua mão, sentindo-o queimar, até que o jogou com tudo na parede. A massa grudou como cimento fresco, ficando presa na parede por alguns bons segundos antes de tombar na bancada da pia. Isso!

Jungkook escorreu o macarrão com molho para um prato fundo, pegando também algumas torradas velhas que tinha achado esquecidas no fundo do armário. Equilibrando o prato numa mão e uma cerveja na outra, ele foi até o sofá e colocou tudo sobre a mesinha de centro, botando também uma almofada no chão enquanto escolhia uma série do catálogo da TV para assistir.

Seus amigos tinham estranhado muito sua decisão de passar um período naquela casa. Geralmente, após terminar a faculdade, as pessoas já começavam a trabalhar, ou então passavam um período viajando pelo mundo e visitando a família, mas nada disso havia se passado pela cabeça de Jungkook.

Ele queria um período de paz, um período longe de todo aquele caos urbano, e barulho, e poluição. Apenas ele, a natureza, e sua arte — o mínimo de distrações possível. E apesar de todos os pequenos defeitos da casa, como a torneira defeituosa, o chão de madeira rangente, o sinal de wifi ruim e o chuveiro que só tinha as temperaturas inferno escaldante e nevasca polar, Jungkook ainda estava muito satisfeito.

A casa era quase como um chalezinho, toda de madeira bruta e com decoração antiga, com algumas cortinas e tapetes com estampa de vó e detalhes de crochê. Ela ficava no meio da floresta, e o único modo de se chegar ali era por uma estradinha lateral de terra batida, mas o lado bom era que ele não tinha vizinhos. Isso era de longe o que ele mais odiava na república: as festas clandestinas de madrugada que iam até de manhã (e quando seus colegas levavam garotas escondidas para os quartos— e eram sempre as mais barulhentas)

Depois de ter se empanturrado de comer e beber, Jungkook largou a louça suja na pia e enfim se recolheu para seu quarto.

O som da floresta à noite era algo que ele só tinha ouvido falar em livros, era realmente único. Muito além de grilos cantando a plenos pulmões ou sapos tentando atrair parceiras com gargarejos estridentes, havia algo etéreo que rondava o lugar durante todas aquelas horas em que o sol passava recolhido.

O ar parecia adquirir um tom cítrico, como pasta de dente e laranjas recém colhidas do pomar, e era tão impressionante quanto reconfortante. Talvez fosse pela cerveja, talvez pela quantidade excessiva de massa que havia comido, mas seus olhos se pesaram de tal forma que, quando o sono veio, ele se entregou completamente.

**

No dia seguinte, Jungkook acordou com uma poça de baba sobre seu travesseiro. O sol já estava em seu ápice, um raio de luz forte entrou pela janela semi aberta do quarto, atingindo seus olhos em cheio.

Jungkook ficou se espreguiçando na cama por um bom tempo, querendo aproveitar um pouco mais daquela sensação de sono satisfatório, e ainda acabou passando mais 20 minutos mexendo no celular sem ter absolutamente nada para se ver ali.

Ele andou preguiçosamente até a cozinha, ainda de pantufas e apenas uma calça de moletom folgada, deixando o peito nu e exposto. Ele abriu a caixa de leite e a tornou direto na boca, nem um pouco preocupado com germes ou qualquer coisa desse tipo de baboseira que Jin vivia falando — neuras de biólogo.

Uma coisa esquisita chamou sua atenção: o prato sujo da noite anterior ainda estava na pia, do jeitinho que ele tinha deixado, mas ele jurava que havia deixado restos de comida. Além disso, a torneira não estava mais pingando.

— Hein? Será que eu fiquei maluco? — ele se aproximou da torneira, desamarrando os traços de pano e percebendo que estavam praticamente secos. Ele amassou o tecido nas mãos, numa mistura de curiosidade e confusão. — Ah, que seja, melhor para mim.

O resto do dia do jovem se resumiu a assistir desenhos, jogar nintendo e ficar 70 minutos inteiros parados na frente do computador sem conseguir digitar uma palavra sequer. Ele tinha as mãos entrelaçadas na frente da boca, os olhos tão franzidos que um sulco profundo havia se formado entre as sobrancelhas, mas não importava o que fizesse, sua cabeça continuava vazia.

— Como é possível que eu esteja no lugar mais bonito e inspirador para se escrever um livro, e eu continuo aqui sem conseguir escrever literalmente nada?? — ele pestanejou.

Jungkook se levantou, dando voltas pela sala de jantar para ver se seu cérebro voltava a funcionar. Ele se debruçou sobre a janela da frente, vendo apenas o farfalhar das folhas das árvores e os barulhos de inseto passando por ali. O homem soltou um grunhido, frustrado consigo mesmo.

De repente, um baque alto fez com que ele se virasse. Bem em cima do teclado de seu laptop, a tigela do que era seu cereal matinal havia tombado por inteiro. O leite escorria por entre as teclas e a colher de metal havia ido parar no chão do outro lado da sala com um tilintar estridente.

— AH, NÃO! — ele correu para a cozinha, pegando o primeiro pano limpo que viu e correndo de volta para seu computador para tentar secá-lo.

—- Não, não, meu bebê. Pelo amor de deus, que você não tenha quebrado, por favor..— Ele clamava para toda e qualquer divindade que estivesse ouvindo. Ele não só não tinha dinheiro para comprar outro, como também se preocupava com todos os arquivos guardados ali. Fotos, trabalhos de escola, todos os contos e poesias que já havia escrito, projetos, rascunhos, sua vida inteira estava naquele computador — Jungkook não podia se dar ao luxo de perdê-lo.

Ele passou o resto da tarde inteira limpando as teclas com água e alvejante, gastando metade de sua caixa de cotonetes para conseguir alcançar as migalhas empapadas de cereal de dentro das teclas. Quando terminou, suas mãos estavam vermelhas e suas articulações doíam — ele estava exausto.

Jungkook nem se importou em tentar ajustar a temperatura do banho, ele deixou que a água quente escaldante caísse nos seus ombros de uma vez, contando que aquilo fosse relaxar um pouco da tensão dos seus ombros.

Pela manhã, a geladeira de Jungkook estava vazia. Ele só tinha uma garrafa de água gelada, tempero pronto para arroz, e um saco vazio do que deveriam ser as torradinhas.

Ele colocou uma calça jeans e uma camiseta larga, agarrando as chaves de sua picape para ir até o mercadinho na beira da estrada comprar mantimentos. Dessa vez, ele prestaria atenção para comprar a quantidade certa para durar até o final do mês.

No entanto, ao abrir a porta, Jungkook pisou em algo afiado. Levantando o pé, Jungkook viu que se tratava de um conjunto esquisitos de folhas, galhos e pedregulhos expostos em cima do tapetinho da frente. Com a lateral do tênis, Jungkook deu uma rasteira, jogando tudo para fora de seu caminho e indo até seu carro. Argh, malditos animais silvestres, não tinham um lugar melhor para fazer um ninho?

Ainda sentindo a dor aguda em seu pé, Jungkook dirigiu até o mercadinho com um pouco de dificuldade, voltando com sacolas cheias de comidas e, claro, bugigangas. Ele tinha ficado um pouco receoso em comprá-las, pois, há um ano atrás, ele tinha começado a malhar pesado para ficar forte, conseguiu um personal e uma dieta feita só para ele, e até seguiu seu cronograma certinho por algum tempo.

Mas quando os resultados não vieram suficientemente bons para seus parâmetros, ele decidiu largar. E no lugar de um tanquinho seco e trincado, Jungkook tinha ficado com músculos volumosos e macios ao toque, acompanhados de uma pancinha discreta que só aparecia após grandes refeições.

Ele havia deixado de se incomodar com aquilo há algum tempo, tinha aprendido a ser mais gentil com seu próprio corpo mas, ainda sim, ele se sentia culpado quando quebrava aquela norma invisível da sua dieta proteica low carb.

Ironicamente, o único peso que ele pegava agora era o de suas compras no porta-malas, dezenas de sacolas que ele tinha quase certeza de que não eram biodegradáveis e com muitos carboidratos vazios dentro.

No final da noite, depois de passar algum tempo falando com seus pais no telefone e mandar figurinhas nada family friend para Namjoon, o rapaz decidiu tentar escrever mais uma vez. Se aninhando nas cobertas, Jungkook depositou o notebook sobre seu colo, encarando a tela branca.

O cursor do mouse já estava piscando a alguns minutos, e conforme ele aproximava seus dedos das teclas, mais inseguro ele ia ficando. Ele então decidiu dar o passo mais amador que podia ter pensado: olhar tutoriais no youtube.

— Eu já não tenho mais nada a perder mesmo, que se dane. — ele murmurou, mordendo o interior das bochechas.

Ele clicou no primeiro vídeo que apareceu em sua tela. A thumbnail era colorida e com diversos emojis, um título chamativo em comic sans iluminava seu rosto na penumbra do quarto. Jungkook tinha quase 100% de certeza de que aquilo seria tempo perdido, mas deixou que o vídeo rodasse mesmo assim, pois seu cérebro aparentemente já havia fritado, de qualquer modo, e mal não podia fazer, certo?

A garota no vídeo falava super entusiasmada, mostrando diversos aplicativos de escrita e de inspiração, nada que Jungkook já não tivesse ouvido falar. Ela fez recomendações de rotinas para se manter inspirado, recomendou mais vídeos de seu canal sobre como melhorar sua gramática e escrever romances cativantes, mas nada que soasse minimamente útil ou interessante para Jungkook.

"... como último recurso para curar um bloqueio criativo, tentem se aventurar por lugares inspiradores. Pode ser qualquer lugar: um parque bonito, um castelo medieval, uma cidade turística, ou até mesmo uma floresta! Tudo varia pelo gênero que você quer escrever, mas lembrem-se: o primeiro passo é começar! Se vocês gostaram do vídeo, deixem seu joinha e comp..."

Jungkook fechou a aba da internet.

— Floresta, hein... — ele olhou para o lado de fora da janela, dando um suspiro.

**

Jungkook acordou no meio da noite com o notebook ainda em seu colo. Olhando para tela, ele viu que já eram 3h da madrugada. A tela, antes branca, estava com centenas de letras aleatórias digitadas — ele devia ter dormido enquanto tentava escrever e nem se deu conta.

E então, Jungkook ouviu o barulho. Vinha de cima do telhado, soando como pedrinhas sendo jogadas no topo da casa, logo acima de onde ele dormia.

Ele levantou devagar da cama, tentando fazer o mínimo de barulho, mas com os olhos fixos no teto. Ele deu passos curtos e precisos, tomando cuidado para não pisar nas tábuas de madeira que ele sabia que estavam soltas e iriam ranger. O baque no telhado começou a ficar esparso, como se as pedrinhas estivessem sendo jogadas ao mesmo tempo por todo o lugar. Os ossos de Jungkook gelaram.

— Mas que porra...? — ele sussurou para si mesmo.

Se ele se esforçasse muito, poderia dizer que era uma chuva de granizo, ou até uma tempestade, mas olhando para fora da janela, a lua brilhava em meio a um céu estrelado e sem nuvens.

Jungkook estava agindo puramente por instintos. Ele estava no meio da mata, então já era de se esperar que haveria animais tentando invadir sua casa depois de sentirem o cheiro de comida fresca, ele já tinha considerado essa probabilidade quando se mudou. O problema era que ali a biodiversidade era alta, podia ser literalmente qualquer animal, de qualquer espécie e de qualquer tamanho. Jungkook torceu para que não fossem carnívoros...

Mas apesar de ter passado praticamente a vida toda em um apartamento, ele sabia algumas coisas sobre autodefesa e animais selvagens, por causa de uma fase adolescente sua na qual ele ficou obcecado por programas de sobrevivência na selva. Jungkook se apropriou de um nível de autoconfiança que definitivamente não devia ter naquele momento, porque ele não era nenhum Bear Grylls.

Ele andou na pontinha dos pés para chegar até a cozinha. Se agachando um pouco, ele abriu a gaveta com cuidado e tirou uma faca de lá de dentro. Ele não esperava machucar os bichos, era só por prevenção (e para assustá-los um pouco também).

E então, Jungkook ouviu as marteladas dentro de sua casa, perto demais.

— F-Fica longe! Eu tenho uma faca!

Ele apontou para a escuridão.

O som começou a ficar mais alto, mais rápido, vindo em sua direção a passos apressados. Jungkook correu para alcançar o interruptor de luz — o animal devia ter visão noturna e Jungkook estava em total desvantagem ali. Assim que acendeu a luz, ele grudou suas costas na parede e olhou em volta. Silêncio.

— Eu sei que você está se escondendo, eu não vou cair nessa. — ele prendeu a respiração.

Jungkook começou a andar vagarosamente na direção da sala de estar, até que ouviu o barulho das panelas se batendo. Ele se virou num pulo, vendo os armários e a janela da cozinha abertos e batendo contra o vento da noite.

As marteladinhas em cima de seu teto começaram a se mover rápida e ritmicamente até embaixo, como pequenas bolinhas de gude em queda, até que sumiram completamente, deixando Jungkook ouvindo apenas o som de sua própria respiração.

Naquela noite, o rapaz dormiu com a faca em mãos, perturbado demais com o ocorrido para se deixar relaxar de novo.

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