Prólogo
─ Er... realmente tem o currículo perfeito para a nossa empresa, mas infelizmente não se adequa ao perfil necessário para ser admitida. ─ Robinson era a responsável pela área de recrutamento, uma jovem com mais de trinta anos, não muito bonita, mas com uns cabelos loiros sedosos que metia inveja a qualquer gama de champô.
─ Como assim? ─ Dior se remexeu na cadeira de leda e pestanejou.
A mulher ficou sem graça.
─ Talvez se alisasse o cabelo e fizesse uma pequena cirurgia estética no nariz. ─ Tentou escolher melhor as palavras, mas nenhuma seria menos ofensiva.
─ Como? ─ Ela pestanejou mais uma vez. ─ Quer que eu troque de pele também?
─ Nunca disse isso. Só que os perfis que escolhemos para dar a cara a nossa empresa são um pouco diferentes.
─ Diferentes?
─ Não me leve a mal, senhorita... Brown. Não sou eu que faço as regras, apenas sigo ordens. ─ Estava visivelmente incomodada com a situação e gravou mentalmente para não se deixar levar pelo currículo sem pedir uma fotografia. Mesmo que não gritassem em plenos pulmões, todos sabiam que Saltzman não queria pessoas negras a trabalhar nos seus edifícios.
─ Não acredito que fiz um mestrado para ouvir isso. ─ Dior se levantou, com uma vontade imensa de gritar que tinha gasto os últimos tostões para comprar aquele maldito terno apenas para ter uma aparência ao nível daquela maldita Saltzman Corporate.
─ Sinto muito. Posso ter a certeza de guarda-la na nossa base de dados e quem sabe se...
─ Muito obrigada! ─ Não quis ser rude, mas não aguentava ouvir aquela ladainha por mais nem um segundo sem vomitar naquele chão brilhante. ─ Tenha um bom dia.
─ Obrigada e igualmente. ─ A mulher se levantou com uma educação impenetrável e lhe deu um fraco aperto de mão. ─ Até mais.
Dior respirou fundo ao sair da grande sala de entrevistas, dando para um corredor de espera onde mais candidatas bem vestidas aguardavam por sua vez. Todas na sua maioria caucasianas, com os cabelos longos e lisos e que a olhavam como se fosse uma alienígena. Ela andou em passos firmes e de queixo erguido, a segurar o turbilhão de lágrimas que nasciam dentro do peito e que queriam transbordar. Mas eram lágrimas de raiva.
Subiu o elevador de alumínio com grandes espelhos que serviam para criar uma falsa sensação de espaço maior, junto de alguns colaboradores que cochichavam e a olhavam de esguelha. Quando chegou ao andar térreo, percebeu algum alvoroço na entrada. Vários seguranças rodeavam uma comitiva que seguia a passos rápidos em direcção a sala de conferências e Dior conseguiu ouvir os burburinhos.
─ É o senhor Saltzman. ─ Umas vozes disseram quase em uníssono e aquele nome fez o sangue dela ferver.
─ Senhor Saltzman! ─ Gritou, andando em passos rápidos a seguir o grupo apressado. Podia não trabalhar ali, mas aquele homem ia ouvir umas poucas e boas. ─ Senhor Saltzman!
A comitiva parou de repente, sempre protegendo a figura principal que estava no meio, impedindo a visão de quem quer que fosse. Trocaram algumas palavras e um dos seguranças veio na direcção dela.
─ Quero falar com o senhor Saltzman. ─ Exigiu, perdendo toda a razão que lhe restava.
─ Por favor, saia! ─ O homem devia ter dois metros de altura e usava terno e óculos pretos.
─ Chame esse covarde, racista! ─ Dior gritou ainda mais alto, sendo alvo de vários olhares e exclamações.
─ Senhorita saia ou vou ter que tomar medidas. ─ O segurança desceu a mão para o coldre numa tentativa de a intimidar.
─ O senhor devia ter vergonha! ─ Dior não se fez de rogada, até sentir a mão do grande homem que a puxou para a saída.
─ Me solte! ─ Rosnou, indignada. E limpou a mão nas calças do maldito terno. Levantou o dedo médio para a comitiva que ainda estava parada e antes de sair viu o reflexo do brilho de um anel distinto numa mão masculina. Era de ouro, com gravuras que não soube distinguir.
Quando abandonou o enorme edifício, sentiu as lágrimas em seu rosto e atravessou a estrada para apanhar o metro que lhe levaria para o outro lado da cidade. Suas bochechas queimavam de vergonha e se sentou num canto com o rosto escondido. Do que adiantava ter estudado tanto se o diploma só serviria para continuar a limpar banheiros? Levantou os olhos castanhos quase marrom e ficou a observar os prédios que corriam do lado de fora.
Seu bairro era periférico, com a maioria dos muros pinchados e as casas por pintar. As estradas eram boas e a sua casa apesar de pequena, tinha algo de incrível pois estava voltada para o mar.
─ Dior! ─ A vizinha do lado era magra e atlética. Professora de ginástica numa escola privada. ─ Conseguiu o emprego?
─ Não, Pops. Ainda não. ─ Respondeu e tratou de abrir a porta pois não queria mais conversa.
Paul estava deitado no sofá de três lugares, com uma caixa de pizza em cima da pequena mesa de madeira e latas de cervejas vazias.
─ Quando vais arrumar um sítio para ficar? ─ Ela perguntou chateada e foi directo ao quarto tirar o cesto de roupa suja, na maioria dele.
─ Arranjei um trabalho interessante. ─ Paul saltou do sofá, seguindo-a para a área de serviço. ─ Vou viajar por duas semanas e volto com um bom dinheiro.
─ Que trabalho é esse? Não te quero mais metido em encrencas. ─ Dior advertiu, pois sabia que ele estava em condicional.
─ Eu prometi que ia mudar. Confie em mim, pois podes ter a certeza que não quero ver o sol aos quadrados de novo.
─ Espero bem. ─ Atirou a roupa na velha máquina de lavar.
─ E o trabalho?
Ela negou com a cabeça e voltou para a cozinha para lavar a pilha de loiça suja. Suspirou fundo, não sem antes ver o seu reflexo na bacia de água. A cara cilíndrica como um coração virado para baixo, o cabelo crespo bem preso no topo e o nariz redondo que parecia ocupar a maior parte.
─ Eu te disse que aquele lugar não era para ti. ─ Paul abriu a pequena geleira e tirou a garrafa de água.
─ Tem melhor que a maior empresa de pesquisas e laboratórios, para uma estudante de Bioquímica? ─ Indagou num pesar. Todos seus colegas sonhavam em trabalhar na Saltzman Corporate, mas desde que o antigo dono falecera e o filho assumira, as coisas tinham mudado para os menos afortunados.
─ Uma farmácia? ─ Paul tentou e lhe deu um beijo na testa, antes de sair.
∞
─ Não fale assim, Diego. Eu entrevistei a jovem e ela era perfeita para a vaga. ─ Charmila abriu a bolsa de colo e arranjou o batom cor de pele em seus lábios. Os dois ocupavam o banco de trás da limusina de luxo e apreciavam a noite que dava uma beleza ainda maior a cidade. Passavam pela grande ponte principal e lá em baixo o mar estava iluminado pela lua.
─ Nem olhei duas vezes! ─ Diego rosnou. ─ Gritava meu nome como louca. Já disse que não quero aquele tipo de pessoas como meus trabalhadores.
─ Foi um erro. Não vai-se repetir. ─ Robinson sorriu e pousou a mão em cima da perna dele, enquanto se deliciava com o champanhe.
─ Tenho algo para ti. ─ Inclinou-se para apanhar a mala preta e abriu-a tirando de lá uma caixa de veludo vermelha que continha um estonteante colar de rubis.
─ Meu Deus! ─ Charmila se emocionou e levou as mãos à boca ao admirar o presente maravilhoso que lhe era dado.
─ Vai combinar perfeitamente para a gala da UNICEF. ─ Diego parecia satisfeito, mas tal sensação durou pouco quando escutou o som de tiros e o carro derrapou. ─ O que aconteceu?
A janela da cabine do motorista se abriu.
─ Senhor, estamos a ser perseguidos. Atingiram os pneus. ─ O condutor pareceu aflito enquanto chamava pelos seguranças através da rádio.
─ Diego! O que estás a fazer? ─ Charmila entrou em pânico quando viu este retirar uma arma de baixo do banco e abrir a porta para sair. ─ Pare por favor! ─ Tentou puxa-lo pelo casaco, mas foi em vão.
Os bandidos tinham cercado a viatura e breve começaram a disparar contra a limusina blindada. Diego retaliou, mas não conseguiu impedir que entrassem e roubassem os pertences. Era um grupo treinado e ele sentiu quando algo impactou contra o seu casaco, não gritou de dor, mas recuou até a borda da ponte. Ainda ouviu o barulho das sirenes e mais disparos, mas não conseguiu manter o equilíbrio e caiu.
∞
─ Shhh Pitty! ─ Dior estava sentada na varanda de madeira e pintava o pôr-do-sol. Sua mãe sempre dizia para não afogar os dons que Deus nos presenteava e que por mais que custasse, deveria brilhar através deles. Se com um mestrado estava difícil de sobreviver, imagina só como pintora. Riu.
O cão ladrou alto.
─ Shhh Pitty! ─ Se enervou pois aquilo afectava a sua concentração e se levantou para ir até a areia onde estava o cão a ladrar. Tinha que aproveitar antes que a temperatura mudasse, chegava a ser inconstante o tempo todo entre chuva e sol. A areia estava fria e seus pés reclamaram ao contacto com os grãos, porém nada foi tão avassalador quando percebeu a razão da inquietação do seu cão.
─ Meu Deus!
Sua alma a abandonou quando viu um corpo inerte a boiar na beira das águas do mar e, sem pensar duas vezes, correu mais do que suas pernas poderiam permitir e mergulhou na água fria que não foi a tempo de causar reações em seu corpo devido a toda adrenalina que a cobria, resgatando-o com eficácia. Tinha praticamente crescido ali e nunca vira nada daquilo, pois normalmente pessoas que se afogavam eram arrastadas para longe.
O corpo se mostrou pesado assim que o conseguiu arrastar até a areia branca e tratou de fazer os primeiros socorros, com uma respiração boca a boca a medida que ia pressionando o peito. Estava aflita, mesmo que fosse com um desconhecido, Dior sabia o valor da vida.
O homem cuspiu água e tossiu, gemendo e tremia sem parar. Ela viu o sangue que manchava a camisa branca e com dificuldade o arrastou mais uma vez para dentro da sua casa, enquanto Pitty ladrava sem parar.
─ Shhh! ─ Ordenou pela última vez e o cão ficou quieto na varanda.
Dior arfava quando conseguiu colocar aquele homem grande e pesado no sofá. Andou de um lado para o outro, preocupada e sem saber se deveria telefonar para as linhas de emergência. No seu bairro contactar a polícia era algo proibido antes de se saber se era necessário, pois podia ser algum vizinho foragido e o entregar gerava conflitos com as leis das gangues do bairro. De princípio precisava tratar dele e depois pensaria o que fazer.
Correu para pegar o seu kit de primeiros socorros e depois com dificuldade o despiu sem deixar de observar como tinha o corpo bem moldado e a barriga definida. Quase não cabia naquele sofá. A ferida era de uma bala, mas por sorte tinha passado de raspão. Por ventura sabia o que fazer e o que administrar para conter qualquer problema que fosse advir. Muitas vezes tinha recebido jovens conhecidos e que andavam metidos em problemas graves, e por isso sabia que o silêncio era de ouro. Também procurou mantas para o cobrir e evitar que entrasse em hipotermia.
─ Oi. Não sei se me ouve, meu nome é Dior. ─ A voz dela estava trémula e a respiração acelerada. Não queria que morresse no seu sofá.
O estranho abriu os olhos cinzas tão claros como duas joias e a encarou por alguns segundos antes de voltar a cair num sono profundo. O coração dela parou de bater naquele instante, tamanha beleza que morava naquele rosto único.
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