Capítulo 3
O barulho da água correndo próximo a elas trouxe um relaxamento inevitável a mente perturbada de Aurora, sua mente pôde aproveitar o momento em que as arvores se afastavam dando passagem ao rio que corria suavemente, as pedras esparramadas, umas grandes a margem e no meio do rio, outras pequenas que rolaram quando seu pé pousou em cima delas e afundou na areia.
O frio da água a recebeu, mas era um frio agradável, o frescor da vida.
Mais um passo e se tornou mais fundo, quando percebeu a água estava em sua cintura, tão clara que ela podia ver a sujeira de suas roupas se desprendendo lentamente. Esse era seu momento para um banho.
Isabel se aproximava com cuidado sabia que onde a mulher estava era levemente arriscado caso ela escorregasse então procurou onde tinha mais pedras para que pudesse se limpar assim como ela fazia.
Usando a camiseta de esponja Aurora esfregava todo seu corpo, com cuidado retirou a atadura, esfregou limpando o máximo possível para ser usada novamente, jogou sobre seu ombro e retirou a calça para esfregar, quando ficou satisfeita jogou sobre uma pedra para que pudesse secar.
Seus olhos focaram em sua imagem tão diferente, aquela criança já não existia, seu rosto não possuía mais nenhum traço infantil. Desfocou o olhar de seu rosto com alguns arranhões e focou no vermelhidão de sua perna, ela teria que olhar aquilo antes de chegar a cidade e qual lugar melhor se não onde a água apagaria seu rastro.
Sentando em uma pedra perto de suas roupas, pode perceber o quão inchada estava sua coxa, apertando as extremidades do ferimento sentiu um objeto pressionar o musculo. "Droga!" Ela teria que tirar a bala dali se quisesse que cicatrizasse sem nenhuma infecção.
Pressionando com cautela sentiu mais ou menos onde ela estava, não era profundo, no entanto não significaria que não seria doloroso remover.
Dobrando a camiseta até ter um tamanho razoável a colocou na boca serrando os dentes, respirou fundo para tomar coragem e então introduziu o dedo na ferida, cada milímetro percorrido mais sua visão ficava turva e seu dentes se fechavam contra a camiseta.
As paredes quentes de seus músculos queimavam ainda mais querendo eliminar o corpo estranho que forçava a passagem, o sangue escorria livre pela perna e dedos, o odor pungente de sangue deixava aquele trabalho ainda mais difícil. Quando seu dedo chegou a bala um breve arfar saiu de seus lábios. Agora faltava pouco.
Sua respiração se acelerou em antecedência ao que aconteceria, ela empurrou o musculo para abrir espaço e segurou o grito que chegou a sua garganta, sem permissão as lágrimas desciam por seu rosto enquanto ela sentia o musculo se rasgando, o piscar rápido possibilitou uma melhora na sua visão, como um anzol ela envolveu a bala e com as mãos tremulas uma apoiando a outra ela puxou para fora.
Tinha que ser assim, se ela parasse iria desistir, quando se é o causador da própria dor ela parece se intensificar ainda mais, talvez porque seu cérebro já sabe o que vai acontecer então te faz sofrer com antecedência.
Seu corpo mole caiu sobre a pedra assim que a bala pulou de sua perna para o fundo do rio, a respiração completamente descontrolada.
As mulheres assistiam aquela cena horrorizadas e de certa forma admiradas da força de vontade que aquela mulher tinha, ela era implacável. O sangue que escorria de sua perna manchava o rio que logo o mandava para longe enquanto ia se misturando lentamente as suas águas.
Enquanto elas a encaravam, ela apenas tentava pensar em algo que a mantivesse longe dali. Sua mente voa com o vento e se enchia com a chuva. A chuva! Isso trazia conforto, ver a chuva umedecendo o chão, pouco a pouco as flores murchas do sol se revitalizando e regozijando, aquele frescor sempre seria bem recebido. O aroma misto da umidade, da terra e das flores, preenchia sua mente.
Quase como se ela pudesse ver e sentir.
Uma amante da chuva, mas temerosa pelas tempestades, o que para ela a chuva era um sinal de vida, as tempestades era um sinal de ira. A natureza se cala quando essa ira cai sobre si.
Enchendo os pulmões Aurora se senta sobre a pedra e passa as mãos pelos cabelos ainda úmidos e sua testa com resquícios de suor, ao perceber o que fez estremece e escorrega para o rio para tirar o sangue seco de suas mãos e perna.
Assim que consegui tirar aquele cheiro de si e limpou a pedra se dirigiu a margem para deixar seu corpo secar. Olhando para baixo, agora limpa era possível avaliar completamente o seu estado, havia vários cortezinhos por suas pernas e pés devido a jornada, os tornozelos agora brancos por causa da agua, ainda mais visível a falta de pele no lugar, o buraco em sua coxa quase não sangrava.
Seus esforços não foram em vão, a satisfação tomou conta de seu coração. No entanto uma sentença caiu em seus ombros.
"Será que somos realmente uma ameaça a todos?" Ela queria acreditar que não.
"Isso não faz sentido, como seriamos uma ameaça? Nenhum deles se rebelou contra mim. Nem eu sinto essa vontade." Sua mente buscava por respostas.
"A não ser que estejam tramando em segredo. Não! Não pode ser. Eles esperam que eu tome todas as decisões. Não merecíamos passar por aquilo."
Isso era certo, elas não mereciam aquilo.
Algo encostou em suas costas, seu corpo virou rapidamente devido ao susto. Seus olhos encaravam a criança a sua frente. O suspiro de alivio escapou de seus lábios.
"Não! Eles não poderiam fazer isso, pelo menos não ela. Não essa criança!"
Naquele mesmo instante percebeu que não sabia se a criança era um menino ou uma menina. Não poderia a chamar de criança para sempre.
"Para sempre!" Isso lhe trazia tanta esperança.
Suavemente colocou a mão no ombro da criança.
- Nome? - Após a pequena reidratação sua voz saiu tão suave e macia que ela se espantou, era uma voz muito diferente da que ela se lembrava. Nada mais era igual a antes. Uma triste realidade. - Qual o seu nome? - repetiu um pouco mais alto.
- Grace? - a criança respondeu com duvida espantando ainda mais Aurora - Eles me chamavam assim. - explicou a criança.
- Não! O seu nome! - Ela não queria acreditar nisso. - Me chamavam assim também. - Aquilo seria coincidência de mais.
- Isabel? - ela disse um pouco mais segura, mas ainda sim receosa.
"Quanto tempo ela passou lá?" Essa pergunta martelou na cabeça de Aurora.
- Isabel, eu sou Aurora. - Ela abriu os braços para receber a criança que não hesitou nem por um segundo antes de se abrigar ali. Era um conforto que em anos não sentia.
- Dói? - perguntou olhando para a perna.
- Se eu me concentrar em outra coisa não. - não tinha o por quê mentir para a criança.
Ela balançou a cabeça em entendimento. Aurora olhou atentamente para a pequena em seus braços. Braços muito finos, olhos profundamente marcados, dava a impressão que a pele estava grudada nos ossos. A cor de seus olhos um verde felino hipnotizante, ao menos o que ela conseguia ver por debaixo do cabelo.
Apesar da desnutrição aparente, não tinha nenhum sinal de maus-tratos, se tinha, não eram visíveis.
- O que você fez para ir parar lá? - essa é a pergunta que não quer calar. Tinha de haver um motivo ela só queria saber se era o mesmo.
- Não! - Ela respondeu prontamente - Você vai se assustar e vai me deixar. - o medo completamente evidente em sua voz.
- Eu não vou deixar você, prometo! Não vou! - o aperto se intensificou ao redor de Isabel - Eu também sou diferente lembra? - Aurora tentou acalmar a pequena.
Isabel arregalou os olhos ao lembrar que havia esquecido que aquela mulher de certa forma se parecia com ela.
- Tudo bem! - sua voz saiu fraca, ela realmente desejava que aquela mulher não se afastasse dela. Relutante se afastou, precisava de espaço.
Era possível sentir os olhos de Aurora fixos nela. As outras mulheres olhavam de longe com curiosidade a interação das duas.
Isabel concentrou cada parte de si na imagem a sua cabeça, tinha feito isso outras vezes, mas não com o mesmo animal, ela definitivamente tentaria outro para diminuir o susto que causaria. Sentiu seu corpo formigando, isso era um bom sinal.
Ao ver o que acontecia a surpresa tomava conta de Aurora. Sua expressão era repetida pelas outras mulheres. Pelos brancos e longos cresciam nos braços e pernas de Isabel, seu corpo ia diminuindo, era uma transformação rápida, no entanto a surpresa do momento fazia com que parecesse muito mais longa do que era.
Nenhuma delas acreditavam no que seus olhos incrédulos mostravam.
"Do que essa criança é capaz?" Todas se perguntavam a mesma coisa.
A pequena gatinha branca com orelhas pretas encarava Aurora, um leve miado saiu como quem diz: "Você vai me deixar agora?".
Sem poder resistir ao encanto do momento Aurora agarrou a pequena gatinha e cheirou seus pelos, o cheiro de sol dominava. Ela brigava com o seu lado infantil que queria esmagar aquela gatinha com seus braços e não deixa-la fugir. Quase instantaneamente a gatinha voltou a ser Isabel. A sombra de desapontamento passou rápido por seus olhos, mas não o suficiente para que Isabel não visse.
- Não consigo ficar muito tempo. - ela se desculpou envergonhada por desapontar Aurora.
- Não precisa se desculpar. - a sinceridade estava presente em cada palavra - Eu também não tenho domínio. - ela deu de ombros. Sua atitude deixou a pequena um pouco mais relaxada
Voltando seu olhar para o caminho que ainda teriam que seguir, Aurora se levantou, a cidade estava próxima delas, todo cuidado seria pouco a partir daquele momento. A consciência de que muita coisas deveriam ter mudado ali a deixava apreensiva. Seus suprimentos haviam acabado pela manhã, era mais um sinal de que precisavam se apressar.
Por mais que a chegada a cidade lhe parecesse assustadora era a única opção viável que tinham.
- Vamos! - ela chamou atenção de todas enquanto refazia a atadura em sua perna. - Precisamos voltar a andar.
Vestidas e com seus poucos pertences roubados elas seguiam como em uma colônia de formigas, uma atrás da outra, seguindo um caminho que apenas Aurora tinha conhecimento.
"Grace! Isso tem algum significado? Ou é coincidência do acaso?". Essa duvida ia e voltava a todo instante. Mas nenhuma resposta surgia com ela.
"Não! Seria muito improvável, o que passei prova que nada é por acaso. Tudo é planejado por uma mente maquiavélica, nos manipulando para nos sentirmos sós e indesejáveis. Aberrações em um mundo plano." Talvez fosse isso, manipulação.
"Será que pensavam que poderiam nos atirar da ponta do mundo? Isso seria acolhedor, ficar a deriva no espaço, morrer sem oxigênio, seria como adormecer, acolhido e ninado pela imensidão do espaço, com as estrelas de companhia." Sua mente se recusava a se calar.
Fatos históricos sobre a origem do mundo passavam por sua mente, a quase extinção da raça devido a guerras sem proposito. Devido ao egoísmo do ser humano.
Os poucos que sobreviveram tinham de trabalhar pesado, sem o auxilio de quase nenhuma tecnologia. Alguns lugares mais desenvolvidos se mantinham em pé com um pouco mais de conforto, porem logo caiu devido a brigas internas.
Era evidente que as pessoas de hoje são mais fortes que as do passado, com o passar dos anos essa mutação foi necessária, os contaminante do mundo dificultavam a vida. Também era visível o avanço da ciência em relação a saúde.
"Será que somos assim por uma falha genética? Ou talvez somos a evolução da espécie?" Outra pergunta sem resposta, apesar dela achar a segunda opção mais logica.
Algumas dessas mudanças visíveis foi a imunidade a diversas doenças que antes causam a morte.
Seus olhos focaram na ferida novamente, pensando se aquilo demoraria tanto para sarar, assim como era na cela. As lembranças de suas torturas e da medicação que queimava como fogo em seu corpo rodearam sua mente.
"Poderia ter algum tipo de veneno no meio, e algo que paralisava porque nem de longe aquilo era um simples medicamento." afastou o pensamento não era bom se distrair tanto.
Como se prevendo, algo a atirou no chão. Seu corpo caiu em cima das outras, antes mesmo que pudesse entrar em alerta, ela percebeu o causador balançando, um cipó. Seu olhar caiu no emaranhado em que estavam e sem nenhuma reserva explodiu em uma gargalhada.
O choque momentâneo em que elas estavam logo foi substituído por semblantes alegres.
Em busca de ar Aurora tentou respirar fundo, porem o guincho que deu fez com que as outras não se aguentasse, depois disso foi quase impossível se controlar.
Os olhos estavam lacrimejando e seus corpos todos doloridos quando elas finalmente conseguiram se controlar. No entanto a pequena criança ali tampava sua boca tentando não voltar a rir e o simples "phh" que soltava era o suficiente para faze-las rir de novo.
E lá estava a solto o porquinho que fazia parte da risada de Aurora, aquilo trouxe uma calmaria incrível para o grupo.
Chegando em um amontoado de rochas Aurora percebeu que ali seria um excelente esconderijo, teriam sua presença escondida de um lado. O pensamento de que pelo menos estariam seguras enquanto descansavam, deixou seu corpo relaxado o suficiente para que caísse no sono.
🐾
- Shii, shii, shii, se acalma pequena. - a bebê em seus braços continuava chorando indiferente as suas tentativas de acalma-la. - O que está acontecendo com você hoje? - a apertou ainda mais tentando oferecer conforto.
Mas nem de longe o calor dos braços conseguiam amenizar o desespero da bebê.
- Se acalma bebê, eu te protejo de todo o mal, mas não sei o que você está sentindo. - Isso soou irônico ate mesmo para ela, como poderia proteger a criança se nem mesmo sabia o que a estava perturbando.
Os olhos de cores distintas a encaravam com desespero como se quisesse lhe dizer algo, porem ela não conseguia entender. O verde era hipnotizante e o castanho conseguia ser tão intenso quanto o outro.
- Como você é linda - sussurrou se dando conta que estava vendo aquela coloração tão nítida pela primeira vez.
- Seria um pecado se algo acontecesse com ela! - uma voz hostil preencheu o ambiente a assustando. Uma figura escura tomava forma enquanto seu corpo esfumaçado atravessava a parede, uma senhora de cabelos brancos, com um sorriso maléfico em seus lábios. Os dentes corroídos pela podridão e tempo, usava um manto negro como a noite em uma densa floresta, seus pés não tocavam no chão. A bebê voltou a chorar desesperadamente. - Não seria?
Apertando ainda mais a bebê como se pudesse fundir o diminuto corpinho ao seu, ela escutou aquela risada maléfica dominado seu corpo e trazendo um péssimo pressentimento. A risada foi diminuindo conforme a criatura desaparecia, restando apenas o arrepio em sua espinha.
Olhando desesperada para a bebê Aurora percebeu que ela chorava sem emitir nenhum som. As mãozinhas abriam e fechavam no ar até que uma coloração esverdeada e pequenas escamas começou a tomar conta de suas mãos. Um grito assustado saiu por sua garganta, mas assim como o choro da bebê sem nenhum som.
🐾
Despertando bruscamente Aurora sentiu seu corpo se chocar com o chão. A tentativa de se segurar a alguma coisa foi falha.
"Eu estava levitando?".
Sentou rapidamente, não podia ver nada, porem um calafrio percorreu sua espinha.
- Acordem! - sua voz saiu mais alta do que pretendia. - Temos que ir, aqui não é seguro! - seu corpo já estava em movimento apanhando tudo o que encontrava pela frente.
Se o barulho já a deixava atenta, a ausência dele poderia se tornar uma ameaça e seus instintos gritavam em alarme.
Algo ruim aconteceria se eles permanecessem mais tempo ali.
O coração martelando em seus ouvidos dificultava sua concentração, tudo o que queria no momento era conseguir ouvir algo além dele. Apesar disso ela sentia as mulheres que seguiam com suas mãos ligadas umas as outras, ao menos essa certeza ela tinha, estavam todas ali.
Poderia ser apenas uma aversão do seu corpo ao sonho, isso seria possível. De qualquer maneira ela não correria o risco. Se seus instintos a mandavam se mover ela o faria até não sobrar mais forças para se levantar.
Quando amanheceu o trajeto percorrido a deixava satisfeita. Depois de muito tempo conseguiu encontrar a calma necessária para usar seu dom as guiando pelo escuro sem bater em nenhum obstáculo. A sensação deixou seu corpo não muito depois disso. Poderia ser paranóia sua, ou elas despistaram quem quer que as seguisse durante a noite, mas mesmo assim sua intuição a mandava continuar em frente.
"Arg! É hora de parar de ser criança, eu consigo. Eu consigo!" Sua mente não dava sossego.
"Você é uma criança grande. Pare de ser assim! Pare de ser criança! Esse tempo não te pertence mais, já passou. Você não pode voltar a ser uma criança assustada e chorona. Você nunca foi chorona! Use seu conhecimento e amadureça. Cresça Aurora, cresça!" Ela praticamente gritava consigo.
"Sem medo. Sem frescura. Sem receio. Não temos tempo para isso!"
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