Capítulo 38 - Lembranças: Parte 19
Eu estava petrificado no banco do motorista, após ouvir o que Davi tinha dito. Ele só podia ter perdido a cabeça. Como ele fala uma coisa dessas assim? Os meninos poderiam imaginar algo errado. Ou certo, dependendo do ponto de vista. Pior que eu não conseguia imaginar algo que eu pudesse falar, sem tornar aquele momento ainda mais arriscado.
- Devolve aqui. - Ouvi Toninho dizer, pegando de volta o telefone. Me senti um pouco mais calmo.
- Davi tá loucão, né?! - Falei, tentando desconversar.
- Ele tá é certo. - Toninho falou. Franzi o cenho, ainda confuso. - Ninguém aqui aguenta mais levar fora teu. Marca e dá bolo nos amigos. Um atrás do outro. Se não aparecer aqui hoje não vai ter perdão. E nem adianta vir com papinho de que ama a gente, nem nada. Vai ser até expulso do grupo do WhatsApp.
- Eu já falei que tô indo! - Insisti, aliviado por ter entendido do que se tratava o tal "fora".
- Tem cinco minutos. - Ele falou, desligando a ligação na minha cara. Dirigi, com meu coração diminuindo o ritmo das batidas, até nosso ponto de encontro.
• • • • •
Cheguei no barzinho, que estava lotado. Vi de longe meus amigos, que estavam sentados na varanda da parte externa do estabelecimento. Apressei meus passos para chegar lá sem que nenhum notasse a minha aproximação.
- Não falei que vinha! - Gritei, quando cheguei na mesa. Alguns pularam, num susto. Em seguida, começaram a fazer uma barulheira falando ao mesmo tempo.
- Mas chegou um minuto atrasado. - Ouvi Toninho falar.
- Dá um desconto aí, que só peguei sinal fechado. - Expliquei.
- Dessa vez passa. - Ele falou.
Sentei, passando os olhos por cada um de meus amigos. Percebi que eles já estavam mais pra lá do que pra cá. Porém, Davi era de longe o mais bêbado. Já embolava a fala, parecendo que tinha tomado uma daquelas anestesias de dentistas na boca. A lembrança das palavras dele no telefone me deixaram preocupado com a possibilidade dele falar algo que não deveria ali.
Resolvi cumprir a promessa que fiz a Nanda de não beber, já me preparando para qualquer coisa que pudesse acontecer. Igor tava sentado do meu lado e levantou para ir até o banheiro. Apenas um pretexto para dar uma paquerada. Foi a desculpa que Davi parecia esperar para levantar do leu lugar, no outro lado da mesa e sentar bem do meu lado.
A noite estava passando numa boa, ou quase isso. Como suspeitei Igor demorou a voltar e quando vimos ele já estava numa mesa cheia de meninas. Os solteiros do grupo se animaram, com a exceção Davi, que estava mais ocupado me abraçando e volta e meia passando uma mão boba aqui ou ali. Embora, mesmo embriagado, ele conseguisse fazer isso de uma forma que ninguém notasse, eu ficava nervoso com cada toque.
As coisas pareciam caminhar na outra mesa e Igor chamou Toninho, que foi até lá. Gabriel discutia com Guilherme, dizendo que o irmão devia um favor a ele. Ele queria cobrar. O plano consistia em um assumir o lugar do outro aquela noite. Assim, Gab se passaria por Gui, o solteiro, podendo então ficar com uma das meninas. Claro que Ghilherme não queria topar. A discussão persistia, até que uma música começou a tocar.
https://youtu.be/FOjdXSrtUxA
- Puta que pariu! - Gritou Davi, ao ouvir os primeiros acordes do som serem seguidos pela voz de Ed Sheeran. - Essa música é foda! - Os gêmeos pararam de brigar para rirem da reação de Davi.
- Tá sofrendo? - Gui perguntou, ainda rindo. - A vampira lá te abandonou?
- Cala a boca e ouve isso... - Davi falou, se levantou, fechando os olhos e repetindo um trecho da canção com Ed. - "And that I'll fight my corner. Maybe tonight I'll call ya. After my blood turns into alcohol. No, I just wanna hold ya"... - Em minha mente eu traduzia as frases. "E eu vou lutar pelo meu espaço. Talvez eu te ligue hoje à noite. Depois do meu sangue virar álcool. Não, eu só quero te abraçar."
- Agora eu entendi o motivo dessa cachaça toda. - Gab falou. Foi então que Davi subiu na cadeira para cantar a próxima parte.
- "Give a little time to me. We'll burn this out. We'll play hide and seek. To turn this around. All I want is the taste that your lips allow. My, my, my, my, oh give me love" - As pessoas ao redor começaram a olhar para meu primo, em pé, em cima da cadeira, enquanto eu ainda traduzia a música. "Me dê um pouco de tempo. Vamos acabar com isso. Vamos brincar de esconde-esconde. Para mudar essa situação. Tudo que quero é o sabor que seus lábios permitem." A última parte da primeira estrofe do refrão tinha duas traduções. "Minha, minha, minha, minha, oh, me dê amor." ou "Meu, meu, meu meu, oh, me dê amor." Eu sabia muito bem que a segunda fazia mais sentido. Foi o suficiente pra mim.
- Davi! - Quase gritei. - Desce daí, doido. - Tentei manter a normalidade. Ele me ignorou e cantando junto com Ed Sheeran a segunda estrofe do refrão que repete várias vezes a parte do "Meu, meu, meu meu, oh, me dê amor.". Ele se empolgou um pouco mais e colocou um pé em cima da mesa. Vi um garçom com cara de poucos amigos se aproximando. Então segurei o braço dele e puxei. - Desce daí!
A força com que eu puxei ele, junto do fato dele ter um pé apoiado na cadeira e outro indo em direção à mesa, foram suficientes para que ele perdesse o equilíbrio e caísse. Tentei segurá-lo, mas não consegui e acabei indo pra o chão junto com ele. Ouvi as risadas no bar. Eu caí de costas no chão, com ele de frente, por cima de mim. Nossos rostos ficaram a poucos centímetros um do outro. Ele deu um sorriso, como se nada tivesse acontecido.
- Ops! - Ele exclamou.
- Ops? - Perguntei. - Ops? - Repeti. - Tu tá ficando louco? Olha o que tu fez!
- Tu que me derrubou! - Reclamou ele.
- Mas por conta da loucura que tu tava fazendo. - Falei, já sentindo falta de ar por conta do peso dele sobre mim. Senti que o pau dele começava a dar sinal de vida e, mesmo sem eu querer, o meu começou a fazer o mesmo.
- Vão ficar aí mesmo? - Perguntou Gui, que ainda ria bastante.
- Sai de cima de mim. - Falei, empurrando Davi que virou seu corpo de lado.
Peguei a mão que Gui me estendeu para me ajudar a levantar do chão. Gab se encarregou de do bebum. A música fatídica ainda ecoava pelo ambiente. As pessoas nos olhavam e eu estava com muita vergonha. Minha vontade era dizer umas poucas e boas com Davi, mas lembrei do vexame que dei bêbado, poucos dias atrás, e a paciência que ele havia tido comigo. Respirei fundo, para me manter calmo.
- Acho que a noite já deu, né? - Perguntei a Davi.
- Mas já? - Ele perguntou.
- Tu veio de carro? - Perguntei.
- Não. - Ele respondeu. - Vim de carona com Igor.
- Então vamos. - Eu disse. - Vou te levar em casa.
- Já que tu insiste. - Ele disse. Percebi certo tom de segundas intenções em sua voz, mas ele estava bem enganado se pensava que ao tirar ele dali eu tinha outro objetivo, se não tentar me livrar de problemas maiores.
Pedi uma parcial da conta, para que pagássemos nossa parte. Os meninos acabaram indo para a mesa onde Igor e Toninho já estavam.
• • • • •
Com um pouco de dificuldade consegui fazer Davi sentar no banco do carona. Instintivamente comecei a inclinar meu corpo, para ajudá-lo com o cinto de segurança. Foi quando lembrei do ocorrido entre ele e Diego. Foi numa situação igual que tudo entre eles começou. Retornei com meu corpo, saindo do carro.
- Coloca o cinto! - Ordenei, fechando a porta.
Enquanto passava na frente do carro, indo ao lado do motorista, conferi se ele estava ou não colocando. Com uma cara meio decepcionada ele estava obedecendo. Entrei no carro e ele já mexia no celular. Dei partida no carro e manobrei saindo do estacionamento, antes é claro, deixando uma gorjeta para o flanelinha.
- Essa versão é ainda melhor. - Disse Davi, dando play na música. O celular já conectado ao carro fez o som ecoar lá dentro.
https://youtu.be/j8cADX87-2I
- O que é isso? - Perguntei.
- A música que eu não consegui ouvir direito. Tu me atrapalhou. - Ele falou. - Mas essa versão é muito melhor. Só voz e violão.
Ele aumentou o volume. Eu abaixei. Ele aumentou de novo. Discutir com bêbado é sempre a pior ideia. Lembrei. Resolvi deixar ele ouvir a música em paz. Mesmo com o constrangimento que eu sabia que iria passar com aquela letra. Mesmo tendo a sugestão de que talvez eles estivesse sofrendo "pela tal menina" que deixou marcas em seu pescoço, como falaram os gêmeos, algo dentro de mim dizia que aquela letra era uma indireta pra mim.
Enquanto eu dirigia, mudo, ele cantava a música. Eu tentava ignorar a letra, mas era difícil. Já tinha decidido que, desde que eu conseguisse deixar ele em casa, me incomodaria o mínimo possível com tudo aquilo. Em alguns minutos ele estaria na porta do seu prédio e no dia seguinte ele me pediria desculpas pelos papelões dessa noite. Então, voltaríamos ao normal. Ao "normal". Ou, pelo menos, era isso o que eu pensava.
Quando passávamos pela orla, um sinal ficou vermelho à minha frente e mudou todo meu planejamento. Não só para aquela noite, mas sobre muitas coisas que aconteceriam depois daquele dia. Parei o carro, como solicitado pelo semáforo. Tentei me distrair com algo fora do veículo, para evitar olhar para Davi. Foi então que ele falou:
- Duvido tu me pegar! - Eu o encarei, sem entender.
- Han? - Indaguei.
- Duvido. - Ele tirou o sinto. - Tu. - Abriu a porta do carro. - Me. - Desceu. - Pegar! - Então fechou a porta e saiu correndo na direção da praia.
- Davi! - Gritei. - Deixa de palhaçada!
Ele não conseguiria me ouvir de qualquer modo. O sinal ficou verde e um carro atrás de mim começou a buzinar. Ande mais um pouco, até conseguir estacionar o carro.
• • • • •
- Davi! - Eu gritava, procurando por ele na praia. - Davi!
Minha paciência estava prestes a se esgotar com essas atitudes de Davi. Por sorte a praia estava bem iluminada e eu consegui o ver, um pouco mais à frente, bem perto da água. Ele estava parado, em pé e encarava o oceano, sem ver que eu me aproximava. Esperei até que a distância entre nós fosse curta o suficiente para que ele me ouvisse, para só então falar:
- Que palhaçada é essa? - Perguntei. Ele se manteve imóvel, em silêncio. - Hein Davi?! Que palhaçada é essa. - Então o alcancei, puxando seu braço e o fazendo virar de frente para mim. Em seu rosto, vi lágrimas.
- Era pra tu. - Ele disse e parou. Então continuou. - Era pra tu que eu tava cantando.
- Davi! - Exclamei, vendo o rumo que aquela conversa ia tomar. Dei alguns passos na direção da água, ficando por um momento de costas pra ele.
- Desculpa, mas é assim que eu me sinto Theo. - Ele disse. Voltei a encará-lo a tempo de o ver enxugando as lágrimas com o pulso.
- Davi, a gente já conversou sobre isso. - Eu falei.
- Porra, Theo! - Ele deu um passo em minha direção. - O que custa? - Mais um passo. Eu dei um para trás. - Eu já disse que não me importo com o fato de tu ter namorada. - Outro passo. - Eu juro...
- Davi! - Interrompi. - Se ouve, porra! - Falei indignado. - Olha o que tu tá me sugerindo velho.
- Ninguém vai saber Theozinho. - Ele insistiu, dando mais um passo. - Vai ser nosso segredo. - Ele estava perto demais, então ele tentou me beijar. Segurei seus ombros.
- Eu já disse que isso não vai acontecer novamente. - Falei. - Eu tenho toda uma vida planejada e isso não faz parte dela. Tu mesmo falou lá na festa que eu fui claro, que entendeu o recado. Por favor, não insiste. - Então, soltei ele.
- Falei da boca pra fora. - A revelação escapou de sua boca. - Deixa eu te mostrar que pode funcionar. - Então ele me puxou com tudo pra cima dele, fazendo com que nossos rostos se chocassem.
- Porra, Davi! - Exclamei, junto à dor. - Machucou.
- Desculpa! - Ele falou, vindo me beijar. Aquele cheiro de álcool. A insistência dele, que dava alguns beijos, enquanto eu novamente o empurrava. Minha paciência estava bem próxima de zero.
- Para Davi! - Ordenei. Ele ignorou.
- Me beija, por favor! - Ele disse, conseguindo por fim encostar seus lábios nos meus.
- Para, caralho! - Gritei, o empurrando.
Olhei apressadamente para todos os lados, procurando alguém que pudesse ter visto aquela cena, mas a praia quase não tinha movimento. As poucas pessoas que eu consegui enxergar estavam tão longe que não poderiam diferenciar um beijo na boca de um simples abraço. Respirei aliviado. Voltei a olhar para meu primo.
Foi quando, mais uma vez ele tentou se aproximar. Eu, então, de saco cheio, fechei minha mão e acertei com tudo um murro em seu rosto. Ele pendeu e caiu de lado, na areia. Em seguida se ajeitou, apoiando-se nas mãos, se pôs de joelhos à minha frente. Ele me encarava e seus olhos mais uma vez liberavam as lágrimas que não conseguiam conter. O arrependimento pelo que eu acabara de fazer foi imediato.
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