Capítulo 27 - Incerteza
Era só eu lembrar de tudo o que aconteceu, para que meu sangue voltasse a circular fervendo em minhas veias. Eu ainda encarava o celular mergulhado em pensamentos e lembranças de um passado que insistia em me assombrar. Minha cabeça se enchia de perguntas. O que vou fazer? Como vou agir? E se alguém perceber?
- Aconteceu algo? - Perguntou Victor, me socorrendo do meu afogamento no passado. - Tu tá vermelho! É a asma voltando? - Com essa pergunta ele já foi reduzindo a velocidade do carro.
- Não! - Exclamei. - Não é isso não. Relaxa! - Travei a tela do celular e o ergui. - Só alguns problemas de João Pessoa.
- Problemas com a ex? - Ele não me encarou enquanto perguntava. Notei certo constrangimento em sua voz. Talvez fosse receio de estar tocando num assunto muito delicado.
- Digamos que sim. - Respondi. De certo modo eu não estava mentindo. Pensei em retribuir alguma pergunta sobre o fim do namoro dele, aproveitando a deixa, mas eu meu dia já tinha ultrapassado a cota de coisas negativas. Resolvi mudar de assunto. - Então... E o tal plano para equilibrar as coisas?
- Eu tava aqui pensando. - Victor falou. - Com essa falta de sorte que tu tá hoje... - Ele olhou para mim, rindo. - O máximo que a gente pode fazer é ver um filme na Netflix e rezar pra não faltar energia. - Nós rimos. Dei um soco de leve no braço dele.
- Mas pensando é o que sobrou mesmo. - Falei ainda rindo.
- Na tua casa ou na minha? - Indagou Victor.
Ele me olhou, ainda sorridente. Aquelas covinhas... A proposta dele me fez pensar, rapidamente, que ir até sua casa seria bom para que eu conhecesse mais do seu mundo. Ele já conhecia meu apartamento. Dormiu nu em minha cama, inclusive. O máximo que vi de sua casa foi a fachada, quando fui o deixar lá, mais cedo. Decidi.
- Pode ser na sua. - Falei. - Já que estamos mais perto de lá do que do meu apartamento. - Chutei. Embora eu já estivesse me familiarizando com a cidade, nunca havia andado pelas ruas que ele estava cruzando.
- Tu precisa aprender a andar melhor em Caruaru, porque a gente tá bem próximo ao apartamento. - Ele falou. Nós rimos. Antes que eu eu falasse "então vamos para o apartamento", ele continuou.- Mas vamos lá pra casa mesmo. Agora que eu tô sem moto, já fico em casa quando acabar.
- Tu quem manda. - Falei.
- O patrão aqui é tu. - Ele disse.
Mais uma vez rimos. E mais uma vez Victor usara seu dom de me acalmar. Poucas trocas de frases com algumas piadas foram suficientes para eu esquecer da aflição em que me encontrava antes. Sentimento esse causado pelos fatos ocorridos tanto naquele dia quanto no meu passado. À medida que ele dirigia cidade adentro, falando e me fazendo rir, eu relaxava e esquecia do mundo lá fora, até que finalmente, em minha cabeça, mais uma vez, existíamos apenas ele e eu.
• • • • •
Victor me mostrava sua casa, orgulhoso de alguns detalhes alterados de acordo com ideias dele. A residência, edificada solta no lote, era bem bonita e aconchegante. Estávamos na cozinha, e enquanto eu bebia água, o anfitrião abria alguns armários tirando algumas coisas de dentro. Quando ele se virou, pude ver que se tratava de alguns snacks.
- Tu é magro de ruim. - Falei rindo. - Não é possível.
- Ouço muito isso. - Ele disse também rindo.
- Victor? - A voz feminina chegou antes do que sua dona. E era uma bela voz inclusive.
- Oi, mãe! - Ele respondeu antes mesmo que ela aparecesse.
- Você não... - Ela então surgiu. Ao me ver parou de falar e abriu um sorriso. Era uma mulher bonita e mais jovem do que eu imaginaria para sua voz. Seus cabelos castanhos e ondulados cessavam na altura dos ombros. Seus olhos tinham a mesma cor e eram bem parecidos com os do filho. - Temos visita!
- Mãe, esse é Theo...
- Ah... O famoso Theo. - Ela o interrompeu, falando com o sorriso ainda mais simpático. Olhei para Victor que tinha seu rosto moreno sendo tomado por uma cor levemente rubra. Em minha cabeça eu pensava: Famoso? Eu? Tratei de abrir um sorriso que saiu fácil.
- O famoso é por sua conta. - Falei. Ela riu. Eu mal a conhecia, mas já tinha gostado bastante dela.
- É que de uns dias pra cá seu nome não sai da boca do Vitinho. - Ela deixou escapar. Eu tentava conter a alegria que estava prestes a explodir meu corpo em milhões de pedacinhos.
- Mãe! - Victor exclamou, num sobressalto. Tentou disfarçar seu rosto constrangido. - Assim ele vai pensar que sou um psicopata.
- Disso eu já tenho certeza. - Falei. Eles riram.
- É que com essas coisas da vaga de estágio... - Victor tentou iniciar uma explicação.
- Milena. - Ela o interrompeu, estendendo sua mão para mim, ao concluir as apresentações. - Caso meu filho não fale tanto assim de mim... - Ela forçou um olhar ameaçador para o filho, brincando. Ele deu um sorriso amarelo, ainda envergonhado.
- Prazer. - Falei ao apertar sua mão. Dei dois beijos em suas bochechas.
- O prazer é todo meu. - Ela disse.
- Vou ter que discordar. - Brinquei. - Porque eu gostei muito da senhora.
- Se tivesse gostado mesmo não ia me chamar de senhora. - Ela falou. Nós rimos.
- Mainha, Tutu derramou a água do copo no chão. - Disse um garotinho, que aparentava ter uns seis anos, ao entrar na cozinha. Ele vestia um pijama e parecia bastante com Victor.
- Mas foi ele que me empurrou. - Falou uma cópia idêntica do primeiro adentrando o ambiente. Certamente o tal Tutu.
- Felipe e Arthur, eu não posso deixar vocês um minuto sozinhos... - Disse Milena. Ela foi até a bancada e pegou um pano. - Vamos! - Então olhou pra mim. - Desculpa, Theo. Tenho que colocar essas duas jóias para dormir.
- Tchau Victor! Tchau, Theo! - Falou Arthur, com um sorriso sapeca que entregava sua culpa na história da água. Não me contive e ri. Eles se foram, me deixando sozinho com Victor novamente.
- Que bonitinhos. - Eu disse.
- O que têm de bonitos têm de danados. - Avisou Victor, sorrindo.
- Tua mãe tem uma voz muito bonita também. - Elogiei.
- Ela é jornalista. - Justificou ele. - Eu já me acostumei, mas meus amigos dizem que quando ela fala parece que tá sempre apresentando o jornal.
- Ela apresenta um jornal? - Perguntei surpreso.
- Sim. Jornal local. - Respondeu Victor. Ele se virou para colocar um pacote de pipoca dentro do microondas, em seguida voltou a me olhar. - Agora só falta conhecer meu pai. Mas relaxa, que ele é o mais normal da família. - Nós rimos.
Assim que a pipoca ficou pronta, o ajudei a carregar as coisas até o quarto dele.
• • • • •
O quarto de Victor deixou aparente mais uma vez seu bom gosto. Ele mais uma vez falou todo orgulhoso que o projeto de interiores havia sido desenvolvido por ele. Brinquei dizendo que se os móveis fossem executados pela Santos Sá ficariam ainda mais bonitos. Consegui arrancar algumas risadas dele.
A cama dele era de casal, possibilitando que coubéssemos os dois sentados. Ele apagou a luz, ligou o ar condicionado e cobrimos nossos corpos com seu edredom, até a cintura. O pote de pipoca entre nós. Ele pediu que eu escolhesse o filme que assistiríamos e por um momento me senti feliz com a possibilidade de passear por seu perfil na Netflix, podendo encontrar sugestões que entregassem algo. A felicidade durou somente até ele abrir um perfil denominado "Visitas", entre os disponíveis.
Escolhi um filme de terror, já pensando na desculpa de poder roçar "sem querer" em Victor, entre um susto e outro. O filme começou e eu me sentia muito bem com aquela situação. Estava no quarto do cara por quem estava apaixonado, dividindo um cobertor com ele, sentindo seu cheiro impregnado nas roupas de cama e espalhado por todo o ambiente. E ele parecia totalmente à vontade com a situação.
Volta e meia nossas mão se encostavam, quando íamos pegar pipoca. Outras vezes, num susto, eu encostava meu pé no dele. Quando a pipoca acabou ele tirou o pote, dando espaço para que nossas mãos ficassem pousadas, a minha ao lado da dele. Tudo isso fazia com que meu coração batesse mais e mais forte. Eu tentava acalmar minha respiração, que começava a ficar levemente ofegante.
Em certo ponto, ele deslisou levemente sua mão, colocando-a sobre a minha. Esse gesto foi suficiente para que eu sentisse meu pau endurecer sob a roupa. Flexionei um pouco os joelhos, para disfarçar o volume. Ele começou a estralar meus dedos, um a um. Comecei a sentir calor, mesmo com o ar condicionando congelando o ambiente.
Eu já nem prestava mais atenção no filme. Apenas nos movimentos, toques, carinhos. Eu encarava isso como um sinal verde de Victor para mim, assim como tentava deixar claro que o caminho estava livre para ele. Aos poucos minhas dúvidas iam se tornando certezas e tudo parecia caminhar para um final feliz. Era só eu ter paciência.
O filme acabou, interrompendo aquele momento que eu desejava ser eterno. Acabaram as desculpas para as discretas trocas de carícias no escuro. Ele sugeriu que assistíssemos outro filme, mas triste, eu disse que tinha de ir embora. O outro dia seria muito atribulado e eu precisava tentar dormir o quanto antes. Além do mais era a primeira vez que eu ia a sua casa e não queria abusar da hospitalidade dos pais dele.
Convencido, ele me acompanhou até a saída. Combinamos algumas coisas para o dia seguinte, pós inauguração, se houvesse energia. E ele me fez prometer de dedinho que eu chamaria por ele se precisasse de ajuda. Dei minha mão para ele apertar na despedida, mas ele me puxou para um abraço. Sentia o cheiro que vinha do pescoço dele. O abraço durou mais do que eu imaginava e menos do que eu desejava. Ele esperou meu carro sair para entrar.
• • • • •
Parei para abastecer num posto, próximo à casa de Victor. Aproveitei o momento e procurei em meu pendrive a pasta com as músicas de Matheus e Kauan. Fui passando uma a uma, até encontrar os primeiros acordes que ouvi tocar no celular dele quando o liguei. Paguei o frentista e enfim achei a música.
https://youtu.be/O8qxqag_wgQ
Incerteza, o título da música. Uma palavra que me definia muito bem, inclusive. Assim que as vozes da dupla começaram a soltar as frases da letra, eu comecei a ser tomado por uma emoção indescritível. Ao mesmo tempo em que eu me sentia entusiasmado pela possibilidade de aquela letra estar se referindo a mim, pensava também se aquele toque era exclusivamente meu ou se ele usava para amigos ou coisa do tipo.
Ao passo que minha cabeça já maquinava planos para descobrir se ele usava aquele toque para mais alguém, eu dirigia, colocando a música para repetir, sempre que ela acabava, e cantando junto, num trio com Matheus e Kauan. Não conseguia parar de sorrir. Eu também não queria. Tinha que deixar escapar um pouco de felicidade, se não eu explodiria de vez.
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Eu via meu rosto, ainda com um sorriso bobo, no espelho do elevador. Peguei meu celular para avisar a Victor que já tinha chegado em casa, como ele havia pedido. Quando abri o Whatsapp, abaixo da conversa com Victor que exibia na prévia um "E aí, chegou?", havia uma mensagem de alguém que eu não esperava. Meu sorriso se desmanchou. A prévia da mensagem não revelava muito, então abri para ver do que se tratava.
Fernanda Lins Villa: Theo, boa noite! Sei que tu pediu pra eu não falar contigo, mas é que meus pais insistiram muito para que eu fosse à inauguração, amanhã. Neguei várias vezes, só que começaram a surgir algumas perguntas às quais eu não podia responder. Tu deve imaginar quais. Espero que tu compreenda e tô avisando pra não causar nenhuma surpresa e mal estar amanhã. Vou ter que ir à inauguração.
Essa mensagem da minha ex-noiva me causou náusea. Quando eu pensava que não podia piorar, uma dessas. Ergui minha cabeça, pensativo. No espelho no lugar do meu rosto, agora, eu encarava o meu passado.
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