A discípula do mal
Samael mantinha aquele olhar vazio — sombrio — e poderoso sobre mim enquanto segurava firme meu punho para que não deixasse cair o estilete descartável. Ele força minha mão e vejo — com certa admiração e pavor — o objeto pontiagudo perfurar o pequeno roedor. O coelho emite um som de dor, deixo o ar de meus pulmões saírem quando arquejo e o Sam pressiona sua outra mão contra meus lábios.
— Faça o que mando, sua maria-mijona! — Apesar de poucos anos mais velho, sua voz era perigosamente grave. — Você não tem medo, têm?
Eu apenas movimento minha cabeça em negativa enquanto o encaro. Acho que precisava mesmo o convencer de que eu era capaz, apesar de nunca entender o que deveria ser feito de fato.
Apesar de eu me ver naquele momento exatamente como sou hoje, aos quinze anos, ele parecia ter a mesma idade daquela época, onze ou doze, estava inclusive mais baixo do que eu. Mesmo assim me sinto como se eu ainda fosse aquela criança de cinco anos diante de meu irmão mais velho. Talvez seja apenas uma parte de meu cérebro que não esquece o Samael ainda criança, mas que já esqueceu como eu era quando fora uma.
Quando finalmente o coelhinho parou de se mover em agonia, eu percebi que ele estava morto, mas meu irmão não estava mais ao meu lado. Eu reconheci o lugar imediatamente. Tratava-se da velha casa da árvore que meu pai — quando estava vivo — havia feito para mim e meus irmãos mais velhos.
Um sonho. Uma lembrança? Não tenho certeza, minha mente parece brincar comigo entre o que é real ou não. Dissociando? Não sei.
As paredes de madeira estavam repletas de pele de animais, como gatos, pequenos cães e hamsters. Também existiam cabeças de cachorros, elas pareciam máscaras grotescas e bizarras de cães de verdade — eu odeio cães. Me levantei em silêncio à procura de Sam. Quando me virei, me deparei com aquela cena:
Um cachorro com corpo humano, que tinha mais ou menos um metro e meio, vindo na minha direção. Tenho a droga desse sonho sempre, mas ainda assim não deixo de me assustar. Deixo escapar um grito enquanto dou alguns passos para trás, rasgando minhas costas nos troncos pontiagudos da árvore. Minha pele pálida e com sardas doía devido os arranhões. É tão real...
Tropeço, desabo de costas em um galho grosso e chego a arquejar de dor, logo sou puxada pela gravidade em direção ao chão, sentindo o coração acelerar.
O impacto se aproximando... se aproximando.
O maldito sinal toca alto o suficiente para me acordar sobressaltada. Mesmo minha cela sendo no décimo primeiro andar, o sinal toca por todos os lados, agitando meus tímpanos e acelerando minha pulsação num misto de raiva e impaciência. Abro meus olhos repentinamente e fico sentada em minha cama com a coluna ereta num pulo. Sinto minha testa suar enquanto tento controlar minha respiração e aos poucos conseguir controlar minha ansiedade. O sinal do café da manhã toca insistentemente e preciso massagear minhas têmporas.
Inferno. Odeio barulho.
Sempre me sinto assim quando sonho com ele: Samael. Meu irmão psicopata.
— Hora de levantar, Lady-sem-língua — anuncia um guarda idiota de cabelo grisalho, usando um de meus apelidos. — Sorria, garota, mais um dia!
Ele dá uma piscadela depois de passar a língua nos lábios enquanto me encara dos pés à cabeça. Finjo não perceber seu olhar malicioso e ajo como se nada acontecesse enquanto deixo meu uniforme subir por minhas pernas e termino de forrar minha cama. Sempre me imagino desfazendo o sorriso daquele idiota cravando uma faca em seu globo ocular. Esse tipo de imagem vem à minha mente no mesmo instante em que penso, como se meu cérebro planejasse cada movimento. Como se eu não tivesse domínio de meus pensamentos.
Depois de alguns minutos, usando meu uniforme verde hospitalar, pego alguns pertences pessoais e materiais de higiene, e tenho muito, muito cuidado em deixar minha escova de dente fora da visão do guarda. Passei praticamente a semana toda lixando a ponta do cabo para deixá-lo o mais pontiagudo possível. Por mais que eu tenha vontade de atacar o guarda que me observa enquanto finjo dormir, tenho que me preparar para o desgraçado do Dorneles, se ele tentar me provocar novamente...
Eu me aproximo da cela de cara fechada e de punhos à frente para o infeliz me algemar — minha escova de dente mortal está abaixo dos acessórios. Seu olhar não para de me analisar, como se existisse apenas meu membro inferior. Sou seguida pelo velho. Enquanto sigo o caminho lentamente pelo corredor extenso e cheio de lâmpadas fluorescente, ouvindo gritos ao longe de dor e de loucura, eu penso no Sam.
Meu irmão tinha um tipo de poder sobre mim que não consigo explicar. Os médicos que me analisaram falaram que ele me manipulava, se aproveitava de mim por ser menor e consequentemente eu adquiri a Síndrome de Estocolmo. Porém, tenho minhas dúvidas. E se ele apenas libertou o que já existia dentro de mim? Foi o que ouvi certa noite: uma das minhas mães adotivas falar com o marido depois que eles me flagraram afogando aquele cãozinho idiota na privada. Eu tinha sete anos na época. Quando cheguei ao orfanato para meninas estava próxima dos seis.
Não posso negar que sinto um tipo de admiração pelo Samael. Ele era audacioso, inteligentíssimo para sua pouca idade. Me lembro bem de como ele manipulava tudo e todos, de como ele fez com que o papai pensasse que estava sendo traído pela mamãe e depois pela nova namorada dele, Andrea, acho que era esse o nome da coitada. Como também ele fez os policiais pensarem que a mamãe havia o agredido, de como ela era irresponsável com os três filhos. De como ele colocou a culpa em Josef — meu irmão mais velho —, que foi para um abrigo de menores infratores culpado por crimes que não cometeu. E não tenho certeza, mas algo me diz que ele também foi responsável pela morte grotesca da tia Leila que — literalmente — foi devorada por cães famintos. E não posso esquecer minha avó Mercedes que foi empurrada da escada pelo próprio, ele nem mesmo fingiu inocência quando eu o flagrei no alto da escada. Nossos olhares se cruzaram e senti nossa cumplicidade. Nosso segredo.
Samael era um gênio. Eu sou sua fã número um!
Ele literalmente acabou com nossa família. Sempre me questiono se ele tem envolvimento na morte do vovô, bom, até onde sei os dois estavam juntos quando o velho se acidentou nas hélices de seu barco — isso é coisa do Sam, aposto.
Depois de tomar meu café e fazer minha higiene pessoal — ainda sob o olhar do guarda tarado —, tomo os remédios dos quais sou obrigada.
Desgraçados.
Depois disso, eu me preparo para mais uma consulta com o meu médico. Essa rotina me enlouquece. Aquele escroto não fala nada que eu já não saiba, por mais que eu negue meus crimes, a perícia é bem convincente. Até que consegui me safar do primeiro crime; depois que meus pais adotivos descobriram o que fiz com o cãzinho deles, ficou muito difícil bancar a santinha, parecia que meu olhar dengoso parecido com o do Gato de Botas do Shrek não adiantava, então antes que eles me devolvessem à adoção, ou pior, falassem o que fiz, eu os matei.
Vocês devem estar se perguntando como uma menina de sete anos de idade mataria um casal de adultos, bom, isso é simples: álcool e fósforo. Enquanto o quarto queimava com eles dormindo, corri e fechei a porta, queimei todo o resto da casa. O desastre foi de tal proporção que impossibilitou a descoberta do foco do incêndio. Todos acreditaram na triste menina órfã que conseguiu sair pela janela do primeiro andar para se salvar agarrada ao seu bichinho de pelúcia.
Que idiotas. É engraçado como as pessoas se comovem com qualquer desgraça.
O Sam ficaria orgulhoso. Sei que sim. Será que ele está vivo? Se sim, por que não vem me resgatar? Odeio esse lugar, odeio, odeio... esses gritos. Por que esses idiotas simplesmente não se calam, ou apenas morrem de uma vez?! Esse lugar torna tudo e todos pior do que já são. Os "tratamentos especiais" são reservados àqueles que insistem em se manifestarem contra os atendentes filhos da puta, mas como sou um exemplo de comportamento, fico longe das medicações e do eletrochoque. Ainda assim preciso ficar esperta, pois os abusos sexuais aqui não são lendas urbanas.
Não me lembro da antiga Clarinha, aquela criança meiga de cabelo ruivo e rosto angelical, amada e paparicada por todos. Era mesmo eu? Às vezes parece que ela também faz parte de um sonho, em algum lugar em meu inconsciente ainda tenho vislumbres de momentos junto com minha família. Mas às vezes parece que meu cérebro bloqueia tais lembranças, ou apenas me fazem pensar se são ou não reais.
Em todo caso, eu lembro dela... me refiro à minha família de verdade, não os idiotas que me adotaram depois que todos os meus familiares se foram.
Eu me sinto bem hoje em dia em relação a tudo o que aconteceu, como se fosse eu mesma, de verdade, entende? É como se existisse uma sombra do Sam a me cercar por todos os lados, eu consigo vê-lo — às vezes —, ouvi-lo também —, claro que sei que não é real, mas é bom pensar que sim. Ele continua o mesmo de sempre, apesar de saber que é impossível, já que ele seria mais velho que eu, ainda assim é o mesmo menino de pele pálida e olhar sinistro, cabelo cor de bronze em um corte cafona surfista quase cobrindo os olhos sem emoção.
Ele é tão vívido em minhas lembranças. Como eu queria que ele viesse e me resgatasse desse lugar barulhento. A última vez que ouvi falar no Sam ele havia sido adotado por um casal. Nunca mais ouvi falar em meu irmão. Exceto pelo Josef, ele tentou se reaproximar de mim quando soube de minha condição assim que atingiu a maioridade e foi liberto — na verdade ele foi inocentado quando descobriram algumas de minhas anotações sobre os crimes do Sam, como fui estúpida! Ele me questionava do porquê eu não o ter ajudado antes.
— Você sabia que o Sam tinha cometido aquele crime e mesmo assim me deixou ser responsabilizado. Por quê? Fala alguma coisa!
Mas quando ele começou a acusar o Sam de todo o mal de nossa família eu simplesmente me retirei. Acho que foi mais que o suficiente para ele ir embora... para sempre.
Samael nunca fora um santo, mas me abriu janelas e portas de uma psique que parece me dominar fervorosamente de forma maligna, e isso é bom, é como se fosse eu mesma. Não posso dizer que é algo da psicopatia, mas me sentiria melhor ao lado dele do que ao lado do Josef.
Nossa família já estava arruinada. Minha mãe, Laura, era uma ex-alcoólatra que lutava todos os dias para não encher a cara, uma doida com transtornos obsessivos compulsivos que parecia nutrir certo receio em relação ao filho do meio. Seu próprio filho! Acusando-o de ter sido responsável por um aborto quando Samael e seu gêmeo ainda estavam em seu útero, sobrevivendo apenas Sam.
Que mulher louca. Por outro lado, conhecendo bem o meu irmão, eu não duvidaria que ele matasse o próprio gêmeo ainda dentro do ventre da mãe.
Tenho meus pensamentos interrompidos quando o guarda me empurra para dentro do consultório do meu psiquiatra, o Dr. Dorneles Pitágoras, o infeliz adora me provocar, e sinto o cabo de minha escova de dente queimar abaixo de minha calcinha. Entro no consultório ainda algemada, mas pelo menos aqui é silencioso, tranquilo. Sem ninguém brigando por algum canal idiota de TV, ou a falta de uma peça de dominó, ou simplesmente alguém sendo agredido, além de apanhar dos próprios pacientes, claro.
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