𝟐𝟓. › THE BELL JAR

𝟎𝟐𝟓.                     A REDOMA DE VIDRO

INVERNO⠀──⠀ DEZ. 7, TERÇA-FEIRA
GOTHAM MERCY GENERAL HOSPITAL

O CORPO ESTENDIDO na mesa pertencia a um homem. Pele escura, cabelo curto e encaracolado. Jovem, talvez nem tivesse passado dos trinta. Magro, quase frágil, o tipo que a vida não parecia ter poupado muito. Ainda sem nome, sem identidade. Um ninguém, por ora. Mais uma vítima para engrossar as estatísticas de Gotham, a cidade onde corpos eram apenas números e nomes se desmanchavam no esquecimento. Em vinte anos, talvez ele fosse apenas uma sombra na memória, tão irrelevante quanto os mortos da última onda de crimes do Ceifador. Arquivos encerrados, casos frios, e as famílias - aquelas que ainda tivessem fôlego - gritando por justiça no vazio.

Mas Delilah não ia deixar que isso acontecesse. Não dessa vez. A história adorava se repetir, cruel e previsível, mas ela estava determinada a quebrar o ciclo. Porque se não fosse ela, quem seria?

Eram cinco da manhã quando a gravação começou. O torpor que pesava em sua mente desde a madrugada foi enterrado sob o som do gravador. Delilah encarou o corpo, os olhos resistindo à tentação de fecharem por cansaço. A noite mal dormida cobraria seu preço mais tarde, mas agora, tudo o que importava era o trabalho. Autópsia primeiro, sono depois. Talvez.

Ela havia tomado um banho rápido, trocado de roupa e engolido duas canecas de café forte - o tipo que queimava a língua e fazia os nervos acordarem à força. Ignorou a dor surda das lesões espalhadas pelo torso, resquícios de um encontro recente que ela preferia não revisitar agora. Era um dia como qualquer outro em Gotham: cheio de tragédias, escasso em respostas.

A análise externa já estava feita, e o padrão começava a emergir, tão familiar quanto uma velha cicatriz. Um golpe na cabeça para incapacitar. A vítima, seguida até algum beco, algum canto sem olhos curiosos. Depois, o Rocurônio, normalmente usado anestesia geral e procedimentos de emergência, e por fim à epinefrina, direto no sistema - o toque sádico que dizia tudo. Eles não morriam de imediato. Não. Eles viam. Eles sentiam. Toda maldita vez.

── Eu sou a vítima de alguém... ── murmurou, quase sem perceber para si mesma enquanto fazia seu trabalho. Sua voz foi abafada pelo vazio da sala, mas a frase reverberou em sua mente, cada palavra se assentando em seu cérebro. ── O que ele queria de mim?

Delilah afastou o bisturi do peito do homem e olhou para a costura precisa que cruzava sua pele. Um corte limpo, meticuloso, que alguém havia fechado como se quisesse preservar sua obra. O brilho do metal sob a luz fria do necrotério refletiu em seus olhos, e ela girou a lâmina entre os dedos imaginando como deveria ter sido feito.

O Ceifador, ela sabia, era uma sombra - alguém que deslizava por entre os becos de Gotham, invisível, mas sempre presente. Ele não podia se fixar em um lugar por muito tempo, vivendo como um parasita nos cantos mais abandonados da cidade. Provavelmente escondido em um porão mofado, o cheiro de madeira podre e ferrugem impregnado no ar, cercado por instrumentos improvisados e relíquias de suas vítimas. Um altar grotesco para sua obsessão.

Ela se imaginou no lugar daquele homem. Sentiu o frio de uma superfície dura contra suas costas nuas, a pele eriçada não só pela temperatura, mas pelo medo. O ar teria um cheiro estranho - de umidade, de metal oxidado, misturado ao odor agridoce do próprio sangue que começava a ser exposto. Olhos bem abertos, corpo petrificado sobre uma mesa estéril ou talvez uma mesa de madeira gasta. O corpo nu, limpos pela mão do seu agressor. Sim, ele o limpou como fez das outras vezes.

Passa por sua mente que ele deveria estar preparado. O rocurônio paralisa todos os músculos esqueléticos, incluindo o diafragma, o principal músculo responsável pela respiração. Se a vítima não estiver conectada a um respirador, a falta de oxigênio levará à hipóxia cerebral em cerca de 3-5 minutos, e a morte cerebral ocorre após 6-10 minutos de anóxia. Além disso, a epinefrina aumenta o consumo de oxigênio do corpo ao acelerar a frequência cardíaca e estimular o metabolismo. Isso pode acelerar a hipóxia, reduzindo ainda mais o tempo de vida sem ventilação. Ele sabe disso, e ela sabia que, para ele, essa não era uma corrida contra o tempo - pelo contrário, ele queria tempo. E se ele precisava disso, tinha que ter um respirador, algo que mantivesse a vítima viva, forçando o corpo a seguir seu curso enquanto ele, calmamente, aperfeiçoava sua obra.

Ele era meticuloso. Ele era um perfeccionista Talvez até tivesse cantarolado para si mesmo, uma melodia baixa e descompassada, enquanto traçava as linhas que orientariam seu bisturi. O bisturi de obsidiana. Roubado da universidade, uma peça única que ele guardava como um troféu. Era isso que ele usava para criar suas "cirurgias". Um instrumento tão afiado quanto suas intenções, algo que lhe conferia uma sensação de legitimidade, de controle.

Naquele exato momento, Delilah imaginou seus olhos arregalados em pânico. O único movimento real que poderia emitir quando seu corpo não lhe obedecia, paralisado pelo Rocurônio, mas em alerta total por conta da Epinefrina administrada. As pupilas dilatadas, o olhar frenético que nunca abandonava o objeto cortante na mão do assassino, implorando silenciosamente, dentro de sua mente para ele não fazer isso, para poupar sua vida. Mas não havia uma voz real, não havia qualquer som. Era tudo silencioso até o bisturi partir a pele, seguindo as linhas finas desenhadas da incisão em Y como se traçasse pequenos pontos e os ligasse. Ela sentia cada centímetro da lâmina explorando o torso, partindo os tecidos com precisão.

A dor ainda era real, ainda perceptível. O rocurônio, ela sabia, é um bloqueador neuromuscular. Ele impede os músculos de se moverem ao bloquear os sinais nervosos que controlam a contração muscular, mas não afeta a consciência, a percepção de dor, ou qualquer outro aspecto do sistema nervoso central. A administração de epinefrina nesse estado aumenta o efeito, eleva o estado de alerta e intensifica as sensações corporais, incluindo a dor e o pânico. Ali residia apenas dor, medo, e a consciência cruel de que ninguém viria salvá-la. E então, com a mente ainda prisioneira de seu corpo paralisado, ela percebeu que o silêncio não era seu único carrasco. Era também a maior arma dele.

Os músculos eram puxados de lado, suas fibras ainda pulsando com o calor que restava. E então, a visão mais aterradora: as entranhas. O interior dela. O cheiro de sangue quente misturado ao ar frio e seco do ambiente. Ela podia sentir o peso do bisturi enquanto ele removia a pele do tórax, revelando os pulmões, que pareciam murchos e inertes, e o coração, agora um objeto passivo, incapaz de sustentá-la adequadamente.

Delilah piscou, retornando ao presente. O necrotério estava quieto, a sala mergulhada naquele tipo de silêncio que parecia pesar no ar. O corpo diante dela continuava imóvel, inerte, mas o sentimento persistia. A fragilidade da visão que tivera - a posição impotente, a exposição total - deixava um resquício incômodo. Não era apenas sobre abrir um corpo. Era sobre invadir. Rasgar o que, em vida, continha segredos, medos, humanidade. O corpo é sempre um ferimento, alguém lhe dissera uma vez. Agora fazia sentido.

O som metálico do bisturi encontrando a mesa ressoou baixo, abafado pelo silêncio denso da sala. Delilah inclinou-se sobre o corpo, suas mãos enluvadas abrindo o corte com cuidado clínico, expondo a carne dividida. A pele cedeu sob a pressão, revelando o interior do cadáver. Os órgãos da vítima repousavam ali, encharcados, ainda intactos - mas algo estava errado. Ela sentiu antes de ver, como se o próprio corpo lhe dissesse que havia uma ausência onde deveria haver presença. Seus olhos já tão familiarizados com o interior de um corpo humano, notam imediatamente o que falta.

── Fígado ── murmurou. A palavra saiu baixa, mais para ela mesma do que para qualquer registro formal. ── Ele tirou o meu fígado.

Delilah começou a retirar os órgãos um a um, ignorando a forma como o sangue começava a manchar suas luvas.

── A remoção do fígado resultaria em perda maciça de sangue em segundos a minutos, levando ao choque hipovolêmico. ── disse ela, recitando aquelas palavras para o gravador sobre a mesa ── O choque faz com que o coração seja incapaz de bombear sangue suficiente para os órgãos vitais, incluindo o cérebro, causando inconsciência em 1-2 minutos. Presumo que a morte ocorreu entre 3-5 minutos após o início da remoção

Se ele administrou epinefrina antes ou durante a extração, poderia ter prolongado a consciência, talvez por um breve segundo ou até um minuto, um intervalo cruel, um prolongamento do terror enquanto o sangue continuava a escorrer. A adrenalina aumentaria a pressão arterial, mas também aceleraria a hemorragia, dilacerando qualquer chance de sobrevivência. Mesmo sem esse empurrão químico, a falência múltipla de órgãos tomaria conta, e a morte seria rápida.

O som úmido da carne sendo separada ecoava no necrotério, misturado ao gotejar persistente de sangue acumulado no fundo da cavidade torácica. Ela colocava os órgãos sobre a mesa auxiliar, cada um cuidadosamente alinhado, mas a cena era tudo menos limpa. Mesmo no ambiente asséptico, havia algo visceral, quase primitivo, naquele ato de desmembrar as entranhas de um desconhecido.

Então, algo a fez parar.

── Não só o fígado ── murmurou, inclinando-se mais perto.

Todos os outros órgãos estavam em seu lugar, menos um pedaço. O estômago. Faltava um pedaço dele, exatamente como na autópsia de Julia Thornton. Julia, segundo vítima do assassino e aquela que teve seu pâncreas retirado. O pedaço de estômago não estava na caixa de órgãos devolvida. Ele nunca havia sido encontrado e foi um corte irregular, quase apressado. Agora, Delilah acreditava que aquilo só a aconteceu por conta de um deleite pessoal.

── Não é premeditado ── disse ela para si mesma, enquanto girava lentamente a cabeça, como se tentando se convencer. ── Ele tenta se conter. Tenta não levar nada além do que precisa.

Houve uma pausa. Ela respirou fundo, os dedos ainda mergulhados na cavidade aberta, como se procurassem respostas na carne.

── Mas ele não consegue. É como uma fome que ele não pode ignorar. Tão viciante quanto matar é provar uma parte deles.

Então Delilah se recordou de semanas atrás, quando o Ceifador a atacou no necrotério para terminar com o corpo de Susan. Ele provou o sangue da vítima, levou os dedos sujos de tecido torácico e vísceras até a boca. Delilah o viu fazer isso antes de desmaiar. Escutou enquanto ele dizia aquelas palavras que ficaram marcadas em sua mente.

Eu sou um homem e você é uma mulher. Irei provar o seu medo.

O medo. Ele gostava disso. Não apenas do medo, mas do que ele fazia com as pessoas. O desespero gravado nos olhos, o grito contido na garganta - ele bebia aquilo, um som que só ele conseguia ouvir.

Mas não era só isso. Ele tinha fome, uma fome que transcendia o ato de matar. Ele queria consumir mais do que vidas; queria consumir essência. Era isso que Delilah entendeu mais tarde, ao ligar as pontas soltas. A antropofagia tinha suas raízes em culturas ancestrais - tribos que acreditavam que devorar carne humana era mais do que um ato físico, era uma forma de absorver o que fazia de alguém... alguém. A coragem, a força, até mesmo a alma. Tribos da Nova Guiné comiam partes de seus mortos como um ato de respeito, mas o Ceifador não era movido por reverência. O que ele fazia era para preencher um vazio interno.

Ele acreditava que estava quebrado, incompleto, como uma máquina que falta engrenagens. Os órgãos que ele arrancava não eram escolhidos ao acaso; cada pedaço retirado era uma tentativa de se consertar.

── Não é apenas o meu fígado que ele queria ── Delilah parou seus movimentos, seus olhos travados com o rosto sereno do homem, os olhos fechados e a pele com um tom acinzentado. ── Quem eu sou... Não, como eu sou também importa. O que eu tenho a oferecer a alguém que se vê como nada?

Ele não escolhia vítimas ao acaso. Cada uma delas carregava algo que ele julgava necessário, uma peça específica para o quebra-cabeça da sua reconstrução. Mas o quê? Sabedoria? Coragem? Algo tão abstrato e visceral quanto a própria vida?

Gordon tinha investigado exaustivamente as vítimas. Não havia padrão aparente. Idades, crenças, histórias de vida - nada disso parecia conectá-las. Algumas eram religiosas, outras nunca haviam pisado numa igreja. Algumas eram bem-sucedidas, outras lutavam para sobreviver.

── Ele quer uma parte daquilo que nos compõem ── disse Delilah, como se a compreensão finalmente a alcançasse. ── Para compor a si mesmo.

A cada corte, a cada órgão arrancado, o Ceifador buscava mais do que carne. Ele buscava identidade. E o mais perturbador era a meticulosidade disso tudo. Ele escolhia com cuidado, julgava a dedo. Ele não matava por impulso; ele colecionava. Ela só precisava descobrir o que ele estava buscando em cada uma. Delilah sabia que a chave estava ali, escondida entre os corpos que ele deixava para trás, mas ainda não conseguia ver o padrão completo.

Depois de terminar o trabalho - os órgãos removidos, catalogados, as amostras cuidadosamente embaladas para análise - Delilah deixou escapar um suspiro pesado, recostando-se na mesa de aço fria. As luvas descartáveis já haviam sido jogadas no lixo, as mãos limpas com álcool, mas a sensação de sujeira persistia. Era como se algo da cena ainda estivesse impregnado nela, agarrado à pele, rastejando pelos cantos da mente.

Com um movimento automático, pegou o celular e o colocou sobre a mesa de trabalho, ligando o viva-voz enquanto se concentrava nos relatórios que começava a redigir. A voz de Jim Gordon ecoou pelo pequeno espaço, firme, mas com uma nota de cansaço - o mesmo cansaço que ela carregava. Ele estava do outro lado da cidade, envolvido em outro caso, mas atento. Era assim que ele preferia receber notícias: pessoalmente. No entanto, naquela manhã, isso não seria possível.

Delilah detalhou tudo o que descobrira sobre o corpo. Descreveu o padrão das incisões, a precisão de sempre, e, finalmente, destacou o detalhe que tornava aquele caso único. O detalhe que fazia aquele homem diferente das outras vítimas, assim como acontecera com Julia.

Do outro lado da linha, Gordon ficou em silêncio por alguns instantes antes de murmurar, pensativo:

── Hmm, é uma teoria interessante, doutora. ── comentou o tenente ── Faz sentido, sinceramente. Vou revisar as informações que tenho sobre as vítimas, ver o que as conecta, no que elas se destacam.

Delilah assentiu, como se ele pudesse vê-lo, e sugeriu com cautela:

── O histórico acadêmico pode ser útil. Talento, conquistas... qualquer coisa que o Ceifador possa ter considerado "valiosa". ── disse ela, folheando as anotações das outras vitimas em sua mesa ── Falar com as famílias novamente talvez também ajude. Sei que é uma abordagem delicada, que pode trazer dor, mas é necessária. Precisamos descobrir o que ele via em cada uma delas. Isso pode nos dar uma direção mais clara.

Não era uma certeza, Delilah sabia disso. O Ceifador seguia uma lógica própria, mas também era um homem religioso, metódico. Talvez estivesse seguindo um padrão que conseguisse identificar.

── Vou ver o que consigo fazer ── Gordon respondeu. ── Recebi uma ligação da delegacia a pouco, conseguiram identificar nossa vitima. Nesse instante estou indo na casa dos familiares dele, conseguimos identificá-lo. Se chama Malcolm Brecker, 28 anos, morava sozinho em Alleytown, enquanto a mãe e as irmãs moram em Bowery. Estou indo para lá agora informá-las do ocorrido.

A parte mais difícil, Delilah pensará, nunca foi lidar com os mortos, mas sim com os vivos. Poderia ser rude da sua parte, mas ela sentia um certo alívio em não estar no lugar do Jim naquele momento.

Ela deixou o pensamento se dissipar rapidamente. Não era o momento para isso. Em vez disso, pegou uma ficha limpa e começou a anotar os detalhes. Malcolm Brecker. Alleytown. Família em Bowery. Escreveu cada palavra com a mesma precisão metódica de sempre.

── Ele está na mesma faixa etária que as outras vítimas, entre 20 a 30 anos ── disse Delilah, compartilhando algo que Gordon provavelmente já havia percebido. ── Pessoas adultas e saudáveis. Sem histórico de doenças, nem mesmo alergias.

── Então, ele realmente tem um tipo. ── Gordon bufou. ── Também vou cruzar esses dados com os relatos sobre a vida pessoal das vítimas que temos de amigos, colegas, até mesmo conhecidos. Alguém pode ter mencionado algo sem perceber que era importante.

Delilah tamborilou os dedos sobre a mesa de aço, o som seco ecoando pelo necrotério.

── Ele não está só escolhendo talentos ou características. Está buscando peças que acredita que faltam nele. Uma espécie de... reconstrução. Como se estivesse tentando criar uma versão idealizada de si mesmo. ── Sua voz saiu arrastada, enquanto ponderava sobre suas palavras ── Isso explica o padrão das escolhas.

── E também o porquê dele precisar de você ── Gordon sugeriu, sua voz cautelosa. ── Não como vítima, mas como observadora. Como alguém que compreenda a obra dele.

── Ele está tentando me enviar uma mensagem. ── A ideia parecia absurda e, ao mesmo tempo, horrivelmente possível. ── Usando os corpos como... cartas.

── É uma possibilidade ── admitiu Gordon, com um suspiro pesado. A ideia o desagradava tanto quanto desagradava ela ── Mas isso o torna ainda mais perigoso. Se você é parte do plano dele, não vai parar até que ele termine.

A mente de Delilah voltou ao estacionamento naquela noite, ao som das palavras dele, espessas como sangue: "Você vai me encontrar. É isso o que eu quero. Mas só quando eu estiver completo". Ele a via como uma amiga, não como uma inimiga. Achava que os dois eram iguais, achava que Delilah o entendia. Isso era como um jogo para ele, como Bruce já havia dito.

── Ele não quer apenas que eu entenda ── disse ela, quase para si mesma. ── Ele quer que eu participe. Que eu veja o mundo pelos olhos dele.

Gordon não respondeu imediatamente, mas quando o fez, sua voz estava quase autoritária: ── Então vamos garantir que ele nunca tenha essa chance.

Delilah não respondeu de imediato. Ela olhou para o corpo dissecado à sua frente, para os órgãos cuidadosamente alinhados em bandejas metálicas, e sentiu um peso quase insuportável em seu peito. Ela sabia que o Ceifador estava observando. De alguma forma, ele estava sempre um passo à frente, sempre ciente do que ela fazia. Isso, em particular, era o que a preocupava.

Seus olhos desceram até suas mãos que descansavam sobre a mesa, os hematos que acompanhavam seus nós dos dedos da mão direita, e isso a fez se questionar se o Ceifador não estava certo. Talvez... eles realmente fossem parecidos como ele julgava.

── Avise-me se precisar de algo, tenente ── disse, tentando manter a voz firme, mas havia um toque de vulnerabilidade ali, que Delilah mascarou fechando os punhos e umedecendo os lábios.

── No momento, tudo o que eu preciso é que você vá para casa e descanse, doutora ── respondeu Jim. ── Você já fez muito hoje e noite passada.

Delilah soltou um riso seco, mas sem humor sabendo que Jim se sentia um tanto culpado por ter a arrastado para o trabalho depois de tudo o que havia acontecido.

── Descansar. Claro. Depois que eu terminar de cruzar essas informações e revisar os laudos das amostras, eu irei.

── Delilah ── Gordon começou, o tom de advertência.

── Vou tentar, Jim. Prometo ── ela cortou, sabendo que seria mentira se não colocasse o "tentar".

Ela encerrou a ligação e ficou ali por um instante, o celular ainda sobre a mesa, os olhos fixos no vazio. O necrotério estava silencioso, e a luz fria do teto parecia mais opressiva agora. Ela sentiu a tensão familiar na nuca, o peso do cansaço se acumulando nos ombros. Mas, ao mesmo tempo, algo em seu interior não a deixava parar.

Levantou-se, os movimentos quase mecânicos enquanto organizava os relatórios e registrava as análises. Apenas quase 1 hora depois, Delilah se arrastou até a sala de descanso do hospital como alguém movendo um corpo que já não lhe pertencia. Cada passo parecia uma negociação dolorosa entre mente e músculos, um protesto silencioso vindo de todas as partes do seu corpo. Era o horário de almoço, mas comer estava fora de questão. O apetite era um luxo que ela não tinha tempo de reivindicar. O sono, por outro lado, era uma necessidade inadiável - e ainda assim, ela sabia que não dormiria bem.

Há mais de 24 horas acordada, lidando com o peso da própria exaustão e a pontada insistente de uma enxaqueca que ameaçava explodir, Delilah encontrou refúgio na cama de baixo da beliche. Não era conforto o que procurava, apenas um alívio momentâneo, um intervalo entre o caos externo e a tempestade que rugia dentro de sua mente.

Ela se jogou no colchão fino, a coluna protestando contra o impacto, e cobriu o rosto com o braço, tentando bloquear tudo - a luz, os pensamentos, a culpa que ainda pesava em sua consciência. Não era inteligente se destruir pelo trabalho; ela sabia disso. Mas quando Gordon mencionou aquele corpo, a urgência na voz dele a atingiu como um chamado impossível de ignorar. Ele precisava dela, e, no fundo, ela sabia que não conseguiria descansar até ter feito a autópsia.

O silêncio denso da sala foi interrompido pelo som discreto da porta se abrindo, um som que foi suficiente para cortar sua linha de pensamento.

── Te achei. Estava te procurando. ── Pietra entrou no cômodo, fechando a porta atrás de si e encerrando o único feixe de luz que escapava para dentro do quarto.

Delilah não se mexeu.

── Por que não foi almoçar?

── Dois motivos. ── Sua voz saiu abafada, quase um suspiro, enquanto ela mantinha o antebraço firmemente sobre os olhos e erguia dois dedos da mão oposta. ── Não estou com fome. E não trouxe marmita.

Pietra bufou, o som carregando uma mistura de cansaço e exasperação.

── Você poderia ter comprado alguma coisa.

── E aí voltamos ao motivo número um.

A resposta seca fez Pietra suspirar alto, mas ela não recuou. Delilah sentiu o colchão afundar ao lado de suas pernas enquanto Pietra se sentava, o peso dela inclinando levemente o colchão já gasto.

── Qual o motivo do mau humor? ── Pietra perguntou, cruzando os braços. ── Além do óbvio, é claro. Aconteceu mais alguma coisa?

Delilah não respondeu imediatamente. As palavras pareciam congelar na ponta da língua, presas pela fadiga que embrulhava sua mente como um véu opaco. Ela finalmente moveu o braço, apenas o suficiente para deixar escapar um olhar de cansaço na direção de Pietra.

── Só o dia... e a noite... e tudo entre eles.

Era vago, mas era verdade. Não havia uma única coisa que pudesse resumir o peso daquele momento. O corpo na mesa, a falta de respostas, a pressão incessante que vinha de todas as direções e a noite turbulenta que tivera ainda fresca em sua memória. E agora, a enxaqueca, o sono perdido, a fome ignorada.

Pietra suspirou novamente, dessa vez mais leve, e deu um tapinha quase carinhoso na perna de Delilah.

── Você precisa aprender a desligar. Não vai conseguir continuar assim.

Delilah deixou escapar um riso curto e amargo. Ela virou de lado, o braço escorregando para revelar seus olhos, agora fixos na amiga.

── Desligar? No dia em que eu descobrir onde fica esse botão, prometo que aviso.

── Sabe como você desliga? ── Pietra retrucou, a voz decidida como a de quem já tinha ensaiado aquele discurso antes. ── Indo para casa e tirando o resto do dia de folga.

Delilah revirou os olhos, mas não conseguiu evitar que um canto da boca se erguesse em um sorriso irônico enquanto fechava os olhos mais uma vez, tentando relaxar no colchão fino daquele beliche.

── Você está horrível ── Pietra continuou, como se fosse uma constatação casual, mas sem crueldade.

── Obrigada. Sempre bom ouvir isso ── retrucou a legista, o tom seco, mas com um toque de sarcasmo afetuoso.

── De nada, estou aqui para isso. ── Pietra respondeu, com um sorriso singelo, mas a suavidade logo se dissipou quando Pietra a analisou por mais um momento, pensando em algo dentro de sua mente. Seu rosto endureceu, a postura mudando para algo mais autoritário quando ela se levantou e cruzou os braços. ── Vou avisar ao Morrison que você está indo para casa.

Delilah abriu os olhos lentamente, um protesto silencioso já formando no fundo da mente, mas ela não disse nada de imediato. Quando finalmente falou, sua voz saiu arrastada, marcada pela exaustão que ainda pesava sobre ela.

── Me dá uma hora. Depois eu vou para casa. ── Delilah respondeu com a voz calma, embora internamente soubesse que estava pedindo algo que não poderia ser negociado.

Pietra arqueou uma sobrancelha, como se estivesse ouvindo uma piada sem graça.

── Uma hora? Você vai acabar encontrando outra desculpa para ficar. ── Sua resposta foi rápida, sem espaço para contestação. ── Não, você vai agora. Onde está o seu celular? Vou pedir um Uber para você.

Ela franziu o cenho, irritada, e um leve impulso de resistência se formou em sua garganta.

── Eu sou perfeitamente capaz de fazer isso sozinha.

── Não confio em você. ── Pietra estendeu a mão com uma certeza de quem sabia exatamente o que estava fazendo. ── Vamos, Morgan. Não tenho o dia todo. E se eu descobrir que você ainda está aqui daqui a duas horas, vou ser obrigada a te arrastar até a porta pessoalmente. Vai ser muito mais vergonhoso para você.

Houve um instante de hesitação. Delilah sabia que, em outra ocasião, teria encontrado forças para revidar, para retrucar. Mas naquele momento, seu cansaço venceu qualquer resquício de resistência. Ela retirou o celular do bolso com um suspiro baixo, desbloqueou a tela com dedos trêmulos e entregou-o, finalmente, nas mãos de Pietra que tinha um pequeno sorriso vitorioso nos lábios.

Enquanto Pietra digitava rapidamente no aparelho, Delilah se permitiu fechar os olhos mais uma vez e cochilar, sentindo o peso do dia acumulando-se nas suas costas, na sua mente, no fundo da garganta. O silêncio reinou entre as duas por esse meio tempo, um tempo que Delilah nem ao menos viu passar. Foi só quando sentiu a mão de Pietra tocando seu ombro e chamando seu nome para que acordasse que seus olhos se abriram, a visão um tanto embaçada focou aos poucos, encontrando o rosto de Gilcrest a sua frente com um olhar amigável.

── Desculpa atrapalhar o seu sono, mas o carro chegou ── disse Pietra, dando um meio sorriso. ── Hora de ir para casa.

Com um suspiro pesado, Delilah se sentou na cama. O movimento enviou uma onda de dor por sua coluna, como um lembrete de que seu corpo estava no limite. As horas estendidas de pé, os músculos tensionados pela concentração, o peso mental que agora parecia transbordar para o físico. Ela passou as mãos pelo rosto, a textura das luvas de látex que usava mais cedo ainda presente em sua memória tátil.

Olhando para o relógio na parede, ela percebeu que dormiu por uns 30 minutos. Delilah sentiu a tensão em seu corpo relaxar um pouco, enquanto massageava o pescoço.

── Você saiu? ── perguntou ela, se levantando com um movimento lento, aceitando o casaco e o celular que Pietra lhe entregava.

── Sim, só por alguns minutos. Recebi um bip, tive que sair para lidar com isso ── Pietra respondeu, colocando as mãos dentro dos bolsos do jaleco branco, o tom de sua voz mais leve, mas ainda com um traço de seriedade. ── Aproveitei para pegar suas coisas e avisar ao doutor que você não está se sentindo bem.

── Bom, não é uma mentira ── Delilah respondeu, vestindo o casaco, o sorriso meio cansado aparecendo em seus lábios. Ela pegou a bolsa, guardando o celular dentro dela e aproveitou para conferir se não estava esquecendo nada.

As duas saíram da sala de descanso e caminharam juntas pelo corredor, o som dos passos ressoando levemente sobre o piso frio. A luz branca e crua do hospital cortou o ambiente, fazendo os olhos de Delilah se estreitarem instintivamente, a visão momentaneamente ofuscada pela intensidade. Por um momento, ela teve que piscar, forçando os olhos a se ajustarem à luz impessoal e penetrante que parecia refletir tudo de forma aguda.

O Mercy estava, como sempre, um caos organizado. O burburinho constante de conversas e movimentação criava uma atmosfera de frenesi. Enfermeiros circulavam com rapidez pelos corredores, e Delilah notou Patrick no meio deles. Ele acenou com um sorriso rápido enquanto elas passavam, o cumprimento descontraído passando sem muito alarde. As conversas no corredor se entrelaçavam como um pano de fundo contínuo - duas mulheres discutindo algo com um médico cujos detalhes ela não conseguia recordar no momento. Mais rostos surgiam e desapareciam enquanto ela e Pietra seguiam em direção à saída.

Foi então que o olhar de Delilah se prendeu em uma sala à direita, quase sem querer. As janelas estavam fechadas, mas as persianas abertas o suficiente para que ela pudesse ver o que acontecia ali. A visão imediatamente captou sua atenção, como um reflexo involuntário.

Primeiro ela identificou Rachel deitada na cama, dormindo pacificamente com alguns fios ligando seu corpo ao monitor. Depois, seu olhar encontrou a senhora Vand sentada na poltrona ao lado da cama onde a filha descansava. Ela estava se cobrindo com um casaco e também de olhos fechados, descansando junto de Rachel naquela sala onde a jovem provavelmente ficaria por mais alguns dias.

Após o transporte de Rachel para o hospital, Delilah não teve coragem de procurá-la. Naquele momento, seu mundo parecia estar em pedaços, e ela optou por esperar, por não se aproximar. Quando chegou, horas depois, não foi até o quarto. Apenas recebeu as informações do médico que estava acompanhando a jovem.

A cirurgia de Rachel havia sido bem-sucedida, segundo o doutor. A bala no ombro foi retirada com êxito, e tanto ela quanto o bebê estavam estáveis. A recuperação ainda exigiria paciência, mas o médico parecia otimista, dizendo que ela ficaria bem em algumas semanas, desde que seguisse o tratamento e os cuidados necessários. Essas palavras, ainda que simples, foram o alívio que Delilah precisava para cortar a tensão acumulada. Ela sabia que poderia continuar, pelo menos por agora, sem o peso dessa preocupação constante em seus ombros. Um pequeno sorriso cresceu em seus lábios quando passou em frente aquela sala, seguindo em frente.

Ao alcançar o lado de fora, observou a neve na calçada e os pequenos raios de sol que de pouco serviam naquele clima frio. O dia não era tão gélido quanto a noite, mas ainda assim Delilah escondeu suas mãos dentro dos bolsos do sobretudo que estava vestindo. Ela puxou os bolsos do sobretudo para aquecer as mãos, os dedos se encolhendo como se quisessem escapar da brisa cortante.

Não foi preciso muito esforço para localizar sua carona. O carro preto estava parado no meio-fio, inconfundível não apenas pelo modelo sofisticado, mas também pelo homem que estava ao lado, de braços cruzados, observando-a com uma mistura de preocupação e expectativa.

── O que faz aqui, Bruce? ── ela perguntou ao se aproximar dele, um tanto confusa por ele estar em frente ao Hospital naquele horário. Delilah quase sentiu uma inquietação se formando com a possibilidade de algo ter acontecido.

Enquanto se aproxima dele, Delilah aproveita para observá-lo. Bruce está vestindo um casaco de lã escuro, de corte reto, que parece feito sob medida. O tecido, de uma tonalidade cinza-escuro, se ajusta perfeitamente ao seu corpo, sem ser apertado, mas expondo sua estrutura física que é impossível de ignorar.

Debaixo do casaco, ele usa uma camisa preta simples, de manga longa e gola alta. As calças, de um tom igualmente escuro, são de um tecido mais pesado, provavelmente gabardine, e caem com perfeição sobre seus sapatos de couro polido que são práticas, mas elegantes. Combinam com ele.

── Você enviou uma mensagem, pediu que eu viesse ── respondeu Bruce, descruzando os braços e dando um passo em direção a ela. A expressão em seu rosto era de leve preocupação, o olhar analisando-a com cuidado.

Delilah parou, os lábios se entreabrindo, pronta para contestar, mas a frase morreu antes de se completar. Ela piscou, os olhos se estreitando enquanto virava a cabeça ligeiramente, olhando por cima do ombro em direção à entrada do hospital. E lá estava Pietra, parada diante das portas de vidro automáticas. O sorriso que se formava no rosto da amiga era inconfundível, cheio de uma satisfação travessa. Com um gesto casual, Pietra acenou e, em seguida, virou-se nos calcanhares, desaparecendo no interior do prédio sem dar chance a qualquer resposta.

Delilah balançou a cabeça, um murmúrio de incredulidade escapando de seus lábios.

── Inacreditável ── ela sussurrou, massageando as têmporas como se a atitude de Pietra fosse a causa de uma dor de cabeça iminente. ── Nunca mais deixo meu celular nas mãos dela.

Bruce arqueou uma sobrancelha, o rosto carregando uma expressão interrogativa que deixava claro que ele ainda não compreendia o que estava acontecendo. Ao perceber isso, Delilah suspirou, resignada, e decidiu esclarecer.

── Desculpe, Bruce. Minha amiga, Pietra... ela foi quem enviou a mensagem ── disse, a voz carregada de um tom de exasperação contida. ── Eu deixei meu celular com ela, achando que pediria um Uber. Nem me passou pela cabeça que ela faria algo assim.

── Isso explica os vários emojis de coração depois que respondi dizendo que estava a caminho ── Bruce comentou com falsa seriedade.

Ela bufou, os lábios formando uma linha fina.

── Eu poderia matá-la agora mesmo ── murmurou, a voz carregada de uma irritação que só alguém com uma amiga intrometida poderia compreender.

Bruce soltou uma risada baixa, aquela que parecia cortante e ainda assim contida, inclinando a cabeça de leve enquanto a estudava com aquele olhar que a fazia se contorcer por dentro. Não era só o olhar de alguém que a conhecia bem demais; era o olhar de alguém que via mais do que ela permitia, alguém que insistia em vasculhar além da superfície. Os olhos dele - aquele azul congelante que parecia sempre enxergar um pouco mais fundo - se demoraram no rosto dela, como se estivesse procurando algo ali. Era desconfortável, irritante, mas de alguma forma ela não conseguia desviar.

── Ainda precisa de uma carona? ── ele perguntou, a voz mais calma do que deveria ser, carregando aquela maldita preocupação que ele nunca sabia disfarçar.

Ela hesitou, o lábio inferior preso entre os dentes, como se mastigar o próprio nervosismo fosse uma resposta aceitável.

── Você não precisa fazer isso. Sei que tem outras coisas para resolver, então, se quiser ir embora, tudo bem. Eu posso...

── Se eu tivesse algo mais importante, não estaria aqui ── ele cortou, direto, mas sem agressividade. Era o tipo de honestidade que não permitia réplicas, o tipo de verdade que fazia as pessoas se calarem. ── E, sinceramente, você não parece bem o suficiente para ir sozinha.

Ela deixou escapar uma risada seca, sem humor, como quem confessa sem querer.

── É, você tem razão. Estou exausta ── admitiu, os olhos fechados por um momento enquanto os dedos pressionavam as têmporas. O gesto parecia automático, uma tentativa frustrada de apagar a tensão que a sufocava. Quando afastou as mãos, ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha, um movimento pequeno, quase insignificante, mas nada passava despercebido por Bruce.

── O que aconteceu? ── Ele perguntou, a voz abaixando como se não quisesse assustá-la, mas também não pudesse evitar a seriedade.

Antes que ela respondesse, Bruce segurou sua mão. O toque foi inesperado, os dedos dele fechando ao redor dos dela com uma firmeza cuidadosa, como se o simples ato de tocá-la fosse um gesto automático. Ele olhou para os nós dos dedos dela, os machucados saltando contra a pele, e sua expressão mudou. Não era só preocupação; era algo mais denso, mais bruto, algo que ela não conseguia interpretar.

O polegar dele passou devagar pelos ferimentos, traçando as marcas com uma delicadeza que a deixou inquieta. Não doeu. Não foi desconforto. Mas havia algo naquele toque - algo quente, algo que queimava contra o frio que a cercava.

Ela estremeceu, não de dor, mas de alguma coisa que não conseguia nomear. Uma sensação estranha, como se o simples fato de ele estar ali fosse o suficiente para torná-la vulnerável.

Delilah puxou a mão de leve, mas não o suficiente para que ele a soltasse. Talvez ela quisesse que ele segurasse mais firme, talvez quisesse que ele deixasse, mas a verdade é que não tinha certeza do que queria naquele momento.

── Não é nada ── ela disse, a voz baixa, quase como se estivesse tentando convencer a si mesma.

Bruce ergueu os olhos para encontrá-la, aquele olhar cortante dele cravando-se no dela, desarmando-a no mesmo instante.

── Delilah ── ele chamou, com a voz tão firme que parecia um comando.

Ela suspirou, desviando o olhar para a rua, para qualquer coisa que não fosse ele. O frio da manhã parecia arranhar sua pele, mas não era nada comparado ao calor do olhar de Bruce, aquele que queimava, que via demais.

── Foi só... uma noite ruim ── ela finalmente cedeu, a voz trêmula, como se cada palavra fosse um esforço. ── Algo deu errado. Eu tentei controlar, mas...

Ela parou, pressionando os lábios enquanto decidia o que era seguro dizer.

── Você se machucou ── ele apontou com o tom de voz neutro, sem qualquer sinal de acusação.

Ela soltou uma risada curta, amargurada.

── Não é a primeira vez.

Bruce apertou os lábios, como se estivesse tentando engolir uma resposta que sabia que não ajudaria. Ele soltou a mão dela devagar, mas não afastou o olhar.

── Você pode me contar o que aconteceu no caminho ── ele disse, finalmente.

Delilah o encarou por um segundo que pareceu mais longo do que era, como se tentasse decifrar se ele realmente estava falando sério. Então, ao notar que Bruce estava realmente disposto a escuta-la, seus ombros cederam e Delilah assentiu.

── Tudo bem ── ela respondeu.

Bruce havia soltado a mão dela, mas o toque persiste como um fantasma, uma lembrança que ainda aquecia a pele dela. Ele caminhou até o carro, abriu a porta do passageiro e indicou com um gesto simples que ela entrasse. Delilah hesitou por um segundo, como se precisasse recalibrar seus pensamentos, mas logo seguiu, acomodando-se no assento enquanto Bruce dava a volta e se sentava ao volante.

Só mais alguns minutos até em casa, ela pensou, sua atenção se mantendo na janela ao relaxar as costas contra o banco. O interior do carro era impecável, o tipo de perfeição e luxo que combinava com Bruce. O som do motor ligando foi quase inaudível, mas trouxe consigo um momento de calma, como se o mundo lá fora pudesse ser deixado para trás, pelo menos temporariamente.

── Então ── Bruce começou, enquanto o carro deslizava pelas ruas geladas. ── Por onde começamos?

Delilah respirou fundo, deixando o suspiro escapar lentamente enquanto recostava a cabeça no encosto do banco. O calor do carro contrastava com o frio lá fora, mas não era suficiente para dissipar a tensão acumulada em seus músculos. Ela podia sentir o olhar de Bruce alternando entre a estrada e ela, atento de uma maneira que não exigia palavras, mas ainda assim parecia encorajá-la a falar.

Depois de alguns segundos de silêncio, ela cedeu. A narrativa saiu em ondas, cada palavra carregada de lembranças recentes e vívidas. Contou a ele sobre a chegada desesperada de Rachel à sua casa, o tom urgente em sua voz, o peso da situação. Detalhou o resgate, a ação rápida e meticulosa, com a ajuda do Batman, que havia sido fundamental. Mas, quando chegou ao ponto em que enfrentou Rusty, algo em sua garganta apertou.

Ela desviou os olhos, fingindo observar a cidade passar pela janela, e omitiu os detalhes mais sombrios. Não mencionou o impacto de seus próprios punhos contra o homem, o som seco que ainda ecoava em sua mente e de como sentiu certo prazer ao fazer isso. Limitou-se a dizer que "houve uma briga", mas o vazio nas entrelinhas falava mais do que as palavras poderiam.

Bruce ouviu tudo sem interromper, seu silêncio não era vazio, mas cheio de atenção. Ele escutava cada palavra ao mesmo tempo que respeitava os limites que Delilah claramente impunha a si mesma. Ele sabia o que vinha depois. Sabia sobre a vítima que haviam encontrado, o peso que isso adicionava à carga que ela já carregava. E ainda assim, não pressionou.

Quando Delilah terminou, sua voz parecia mais leve, mas também mais frágil, como se o simples ato de compartilhar a tivesse deixado exposta. Ela olhou para as próprias mãos, as unhas ligeiramente cravadas na costura do casaco, antes de erguer o olhar para ele.

── Por mais arriscado que tenha sido, se não fosse por você, Rachel poderia estar morta agora ── Bruce disse finalmente, a voz baixa, mas firme. Não havia julgamento em suas palavras, apenas uma constatação. ── Foi muito corajoso da sua parte.

── Pensei que você fosse dizer que foi loucura da minha parte ── O comentário de Delilah foi carregado de ironia.

── Também ── ele respondeu, simplesmente. Arrancando uma risada dela pela sinceridade. ── Mas você já está acostumada a cometer loucuras.

── E você me segue em todas elas.

── Alguém precisa garantir que você não se mate no processo ── Bruce retrucou. ── Desde que eu te conheci, percebi que você tem uma tendência a agir impulsivamente.

── Disse o homem que não pensou duas vezes ao correr atrás de um cara em um beco, sem nem ao menos pensar na possibilidade dele estar armado ── ela debocha, arqueando uma sobrancelha e com um meio sorriso brincando nos lábios. ── Não podemos esquecer, claro, que você quase levou uma facada no processo.

Bruce não se apressou em responder, apenas a observou, os olhos profundos e pensativos, como se ponderasse a implicação de suas palavras. Não havia reprovação em seu olhar, apenas uma consciência crua de como as coisas aconteciam entre eles.

── Eu não sou um exemplo, Delilah ── a voz dele não era de condenação, mas de constatação, como se estivesse descrevendo uma simples verdade que não precisava ser questionada. ── Se eu fosse, estaria fazendo tudo de forma diferente.

Ela o encarou, um misto de fascínio e descrença no olhar. Ele sempre tinha essa maneira de se mostrar distante, quase inacessível, como se estivesse do lado de fora da própria vida, observando tudo de uma posição que ninguém mais podia alcançar. Mas ali, naquele momento, algo nele parecia... vulnerável. Não que ela fosse capaz de identificá-lo como vulnerabilidade. Ele se mantinha bem camuflado sob aquele exterior de implacável frieza.

── Então me explique ── ela disse, o tom desafiador escapando por entre os dentes. ── Por que, depois de tudo, ainda está aqui? Seguindo alguém como eu?

Bruce não respondeu de imediato. Sua expressão permanecia inalterada, fria e calculista. O silêncio entre eles cresceu lentamente, o que fez Delilah pensar que ele não iria responder. Ela quase aceitou que sua pergunta ficaria sem resposta quando a voz dele quebrou o silêncio dentro do veículo.

── Porque, no final, você não é a única a agir sem pensar.

O comentário pegou Delilah de surpresa, e ela desviou o olhar, sentindo uma onda de calor subir pelo rosto. Não era comum Bruce se abrir assim, nem mesmo em momentos de descontração. Ele sempre mantinha uma certa reserva, um cuidado em escolher as palavras.

── Isso foi... inesperado ── ela murmurou, ainda encarando o painel do carro.

── Não deveria ser ── ele respondeu, calmamente. ── Se tem algo que você me ensinou desde que entrou na minha vida, é que nem tudo precisa estar perfeitamente sob controle para funcionar.

Delilah soltou uma risada baixa, um misto de incredulidade e algo mais doce.

── Isso parece muito com um elogio.

Bruce olhou para ela de relance novamente, e dessa vez, um sorriso genuíno apareceu em seu rosto, entretanto era quase imperceptível.

── Talvez seja.

O silêncio que se seguiu não foi desconfortável, mas carregado de significado. Ela o observou por um instante, o perfil firme e determinado dele iluminado pelas luzes da cidade. Era nesses momentos, quando ele baixava a guarda mesmo que por um segundo, que ela entendia o porque estava atraída por ele.

── Você sabe que isso não vai mudar, certo? ── ela disse, quebrando o silêncio.

── O quê?

── Eu vou continuar fazendo o que faço. Por mais insano que pareça ── Delilah disse, sua voz carregada daquela certeza tranquila que era irritante e fascinante ao mesmo tempo para ele.

Bruce respirou fundo, o som áspero e contido, como se estivesse tentando moldar uma resposta na garganta antes que escapasse. Mas ele sabia a verdade, sempre soube. Perguntar era só uma formalidade.

── Eu não esperaria nada diferente de você.

Ela sorriu. Não um sorriso largo, nada fácil ou casual, mas um sorriso afiado, algo que parecia dizer ótimo porque, honestamente, seria um desperdício se você não estivesse lá para me salvar de mim mesma. Mas ela não disse isso. Não precisava. Era o tipo de pensamento que ela guardava para si, trancado a sete chaves. E ele? Ele sabia sem que precisasse ouvir.

Ele sempre soube.

Como na noite do incêndio na casa dos Stirk. Quando a fumaça ainda estava no cabelo dela e o álcool nas veias horas depois, queimando como ácido, e ela se despedaçava ali, na frente dele. Ou naquela outra vez, quando o pesadelo a agarrou pelos calcanhares, a arrastando para o fundo de algo escuro demais para se respirar. Ele nunca julgou, nunca pediu explicações, nunca colocou um preço no que dava. Só esteve lá.

E isso a irritava. Isso a atraía. Isso a deixava sem chão.

Ela apertou as mãos no colo, as unhas cravando na palma, e pensou que algum dia poderia retribuir isso. Quando ele estivesse pronto para deixar ela entrar um pouco mais. Só um pouco.

Mas, ao mesmo tempo, ela sabia que talvez esse dia nunca chegasse. Porque ela não sabia o que eram, e ele não parecia querer rotular. Casuais, ela dizia para si mesma. Uma noite e só. Era o que ela dizia, como um mantra. Mas era difícil ignorar o jeito como ele falava com ela. Como ele olhava para ela, como se ela fosse um enigma que ele não conseguia decifrar, mas que queria manter por perto mesmo assim.

Flerte. Preocupação. Alguma coisa que ela não consegue nomear, algo nessa linha cinzenta, difusa, onde tudo se mistura. Algo que torna o ar entre eles mais denso, mais carregado, como se a tensão pudesse explodir a qualquer momento. Algo que a deixa inquieta porque ela não sabe onde isso vai dar. Mas Delilah se força a não cair nesse redemoinho. Não agora. Não enquanto as perguntas que a rondam começam a se tornar rotina, um eco incômodo toda vez que Bruce está por perto. Então ela finge que não se importa, finge que está tudo bem, e mantém os olhos fixos na janela, assistindo a cidade do lado de fora sem realmente enxergar nada. Até perceber que alguma coisa mudou.

Delilah só percebeu que algo estava errado quando a cidade começou a passar de forma diferente do que ela estava acostumada, e, talvez, se ela estivesse mais desperta, teria percebido antes. Os prédios familiares, os letreiros neon que ela costumava reconhecer no caminho para casa, haviam desaparecido, substituídos por ruas mais largas, mais vividas. Ela franziu a testa, a mão descansando na perna como se o movimento fosse conter a inquietação que começava a brotar.

── Bruce ── sua voz cortou o silêncio, firme, mas cheia de dúvida. ── Você não está indo para a minha casa.

Ele não respondeu imediatamente, os olhos fixos na estrada, as mãos no volante com aquela dominância que ela já conhecia tão bem. Mas a falta de resposta só aumentou a tensão que pairava entre eles.

── Para onde estamos indo? ── Ela pressionou, agora girando ligeiramente o corpo para encará-lo.

Bruce finalmente falou, o tom tão calmo que quase a irritou.

── Para a torre Wayne.

Delilah piscou, surpresa. A resposta foi tão direta, tão sem rodeios, que ela precisou de um segundo para processá-la.

── Para a torre Wayne? ── Ela repetiu, como se a confirmação fosse necessária para acreditar no que ele acabara de dizer. ── Por quê?

Ele respirou fundo e deu uma breve pausa, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado.

── Porque você não deveria ficar sozinha essa noite.

Ela riu, mas o som saiu curto, ácido, quase cínico.

── Então agora você decidiu que eu não posso nem ir para casa sozinha?

── Não é sobre isso ── Bruce rebateu, e, pela primeira vez, havia um leve tom de irritação em sua voz. Ele olhou de relance para ela, o azul dos olhos capturando o dela por apenas um instante antes de voltar para a estrada. ── É sobre o fato de que você está exausta, machucada, e provavelmente não vai dormir.

Ela abriu a boca para retrucar, mas ele continuou, sem lhe dar brechas, como se já soubesse exatamente o que ela diria.

── E eu prefiro garantir que você esteja segura e descansando do que me preocupar com você a noite toda.

As palavras ficaram no ar por um longo momento, completamente impossíveis de ignorar. Delilah fechou a boca, cruzando os braços, como se o gesto pudesse protegê-la de qualquer coisa que ela estivesse sentindo naquele momento.

── Isso não é necessário, Bruce ── ela disse finalmente, mas sua voz saiu mais fraca do que pretendia, como se a convicção tivesse evaporado junto com a força de sua resistência.

Ele não respondeu. Não havia necessidade. O silêncio dele era mais eficaz do que qualquer argumento. Aquela era uma batalha ganha, tanto que o único ato de Bruce foi ligar o rádio e ignorar o que ela havia dito.

Delilah, por sua vez, suspirou, recostando-se no assento e desviando o olhar para a janela, o reflexo dela misturando-se às luzes da cidade.

── Tá bom ── Delilah murmurou, quase para si mesma. ── Mas só porque estou muito cansada para discutir com você agora.

Bruce deu um sorriso discreto, quase imperceptível, e continuou dirigindo. Ele não disse mais nada, e ela também não tentou preencher o silêncio. Porque, apesar de tudo, apesar da irritação, do orgulho ferido, ela sabia que ele não estava apenas sendo autoritário. Ele estava cuidando dela, da única maneira que sabia.

E, por mais que odiasse admitir, ela precisava disso. Mais do que queria.

٬  notas da autora ⠀✦ ⠀Informei no meu mural que esse capítulo provavelmente sairia mais cedo porque ontem eu já estava no final dele. Pensei que ia concluir ontem, mas acabei finalizando às 1h da manhã kkk. Cogitei a ideia de segurar até sexta, mas a minha ansiedade falou mais alto. Então, aqui estamos nós em mais um capítulo de Inner Demons.

٬  02 ⠀✦ ⠀Escrever esse capítulo foi estranhamente satisfatório e reler ele também. Pela primeira vez na vida, não tenho críticas à mim mesma (yay estamos fazendo progresso) e gostei de tudo que consegui escrever. O ponto alto para mim, é claro, foi a interação batred no final e eu to ansiosa para entregar mais conforto no próximo capítulo. Preciso deles se amando é sendo minimamente felizes juntos 🙏

٬  03 ⠀✦ ⠀Maaas não garanto que o capítulo 26 saía semana que vem. Escrever até o 25 era os meus planos ano passado, entretanto isso acabou não acontecendo pq o 24 me fudeu bonito. PORÉM prometo tentar não demorar e aparecer muito em breve com uma atualização gostosinha para vocês pq o cap 26 promete.

٬  04 ⠀✦ ⠀ Enquanto isso, leiam Wicked Game, minha fic do Bruce da trilogia do Nolan. A fic já tem 3 capítulos postados (contando com o prólogo). Amaria ter vocês por lá também 🫶

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