𝟎𝟕. › DIG YOUR GRAVE

𝟎𝟎𝟕.                   CAVE SUA COVA

OUTONO⠀──⠀ NOV. 22, SEGUNDA.
UNIVERSIDADE DE GOTHAM.

O CORPO estava perfeitamente envolvido e contornado pelo papel azulado. Deitado de lado dentro do porta malas, as pernas dobradas para caber melhor por ser um homem alto e possivelmente esguio. Havia ainda por cima uma palavra escrita sobre o papel. Escrita em um tom de vermelho que muito se assemelhava a sangue. Presente. Cada letra separada uma da outra, como se a palavra tivesse sido soletrada e grifada para que o entendimento não se perdesse. Deixando claro que não era apenas um presente, claro, mas também um aviso.

Delilah respirou o ar noturno como se não fosse capaz de respirar a muito tempo. Gotham a sufocava. Aquela investigação a sufocava. Algumas vezes, ela se esquecia como se respirava e precisava ensinar a si mesma como fazer algo tão simples e tão mundano. 

As luzes azuis e vermelhas piscavam pelo estacionamento, refletidas em seus olhos enquanto ela observava o lugar e a movimentação que foi criada graças a um telefonema. O lugar que até então estava calmo e vazio, agora inundado pelos policiais fardados e uma faixa amarela que proibia a entrada de veículos não autorizados na, até então, nova cena de crime ── Delilah não acreditava que o crime havia sido cometido ali, porém os oficiais estavam seguindo com o procedimento padrão e não poderia intervir.

O corpo foi devidamente retirado do porta-malas, sendo carregado por dois policiais. Ela os seguiu com o olhar até que desaparecessem de vista, até uma forma maciça ficar a sua frente, bloqueando sua visão. Foi necessário que Delilah erguesse suas orbes verdes até o rosto irritado do homem à sua frente. As linhas de expressão se aprofundando no rosto dele até que um vinco se formasse entre suas sobrancelhas.

── O que diabos você e Bruce Wayne estavam fazendo no estacionamento da Universidade de Gotham, Morgan? ── O questionamento áspero partiu de Alistair que parecia altivo, irritado. Ele levou as mãos aos quadris ── Em uma possível cena de crime ainda por cima.

── Não era uma cena de crime, Alistair. ── Ela respondeu, sem expressar qualquer reação adversa. ── Encontramos um corpo, não significa que ele morreu aqui. O corpo nitidamente foi deixado aqui com algum propósito.

── Ah, só um corpo ── Ele debochou, cruzando os braços e espelhando a posição dela. ── Era pra amenizar a situação? Porque se for pra isso, saiba que não funcionou, Morgan.

── Eu já disse tudo o que precisava para o tenente Gordon ── Disse Delilah, olhando para a pilastra do outro lado e massageando a nuca. Ela sentia uma dor de cabeça se formando.

── Eu quero saber o que Bruce Wayne tem a ver com esse caso.

── Ele estava me ajudando com algo.

── Ele é um civil ── Alegou Alistair, irritado. ── Não tem direito algum de se meter em uma investigação policial.

── Isso não diz respeito a você.

Alistair colocou-se na frente dela. A barra da camiseta de botões azul marinha saindo de dentro da calça e o sobretudo longo que vestia movimentando-se, enquanto o distintivo preso ao cinto reluzia por conta da luzes amareladas do estacionamento.

── Claro que diz. Eu sou um oficial. ── Argumentou Carroll. ── Você não é uma detetive, Morgan. É uma legista. Seja lá qual merda estiver fazendo, saí dessa. E tire o riquinho metido a besta também. ── Alistair murmura a última parte ── Se ele não estiver fazendo a sua cabeça.

── Sou uma patologista forense, tenho tanto direito de investigar esse caso quanto você ── Delilah o encarou, podendo fuzilá-lo com os olhos se tivesse a chance. Aquela noite estava se tornando ainda mais estressante ── Entenda isso de uma vez por todas, Alistair. Não me trate como uma criança, eu não sou uma.

── Está tentando cavar sua própria cova, por acaso?

── Se eu estiver, o que você tem a ver com isso?

Com o canto dos olhos, Delilah notou que Bruce se aproximava. A conversa dele com o tenente Gordon havia sido encerrada e os dois estavam indo na direção dela e de Alistair. Delilah desviou o olhar para Carroll mais uma vez, a fim de encerrar aquela discussão antes que ela crescesse mais do que o necessário.

── O que eu faço ou deixo de fazer não diz respeito a você. Nem a ele. Ninguém está fazendo a minha cabeça ── Seriamente, Delilah o respondeu. ── Se realmente me conhecesse, saberia que sou muito bem capaz de tomar minhas próprias decisões.

Naquela estacionamento agora vigiado pela polícia, os dois se encaram em silêncio. Alistair é capaz de ver a ferocidade nos olhos dela, algo que não era um costume de acontecer entre eles, um impasse tão grande como aquele. Ela o enfrentou, sem qualquer arrependimento. Se Alistair estava bravo por isso, não verbalizou em palavras.

── Tudo bem? ── Bruce a questionou, olhando diretamente para ela ao falar. Delilah assentiu.

── Tudo ótimo. Se já terminamos por aqui, estou indo ── Disse ela. Estava decidida a deixar toda aquela tensão para trás. Seu olhar chegou a Gordon. ── Tenente.

── Doutora, estarei no hospital amanhã. Ainda temos muito o que conversar ── Gordon avisou, enquanto Delilah se afastava. Tudo o que ela fez foi acenar.

Morgan não se deu ao trabalho de olhar para trás enquanto se encaminha para a saída do estacionamento e enfim encarava novamente o campus da universidade.

Ela passou as duas mãos pelo rosto, tentando se livrar daquela sensação que a perseguia desde que encontraram o corpo no estacionamento, o formigamento na espinha que nunca a abandonava. Inquieta, ela pescou a caixa de cigarros do bolso do sobretudo e o isqueiro.

Quando tragou a nicotina, em primeira instância, seus ombros relaxaram e ela olhou para a rua, onde o baixo movimento era tudo que poderia encontrar. Sem seu carro, Delilah precisaria pedir um táxi para casa. Seria uma longa viagem desde Old Gotham até Narrows, entretanto teria um tempo para pensar.

── Precisa de carona? ── Morgan virou-se para trás, observando Bruce parado a uma distância considerável. A luz do poste mais próximo iluminava o corpo dele parcialmente, formando uma meia lua naquele rosto famigeradamente taciturno. Ela retirou lentamente o cigarro dos lábios e expeliu a fumaça para longe, desviando o olhar.

── Não, obrigada. Vou chamar um táxi ── Ela dispensa a oferta dele, voltando-se para a frente mais uma vez.

── Está tarde. Depois do anúncio do Comissário, tem poucos táxis na rua ── Bruce insistiu, aproximando-se. ── Aceite minha oferta, Delilah.

── Eu moro em Narrows, a torre Wayne fica no Upper East Side. ── Argumentou a mulher quando ele parou exatamente ao lado dela.

── Eu sei muito bem onde minha casa está localizada. ── Ele respondeu, forçando-a a revirar os olhos. As chaves do carro tilintam nas mãos dele.

── Quis dizer que eu moro bem longe de você. ── Explicou ela. ── Vou acabar te atrasando. Não perca seu tempo comigo.

── Não vai ser uma perca de tempo, não tem ninguém esperando por mim em casa. ── Bruce retrucou. Em seguida, ele parou e deu de ombros. ── Bom, só o meu mordomo. Mas ele sabe que, às vezes, eu demoro para voltar para casa.

── É por que você não sai com frequência e por isso tem que aproveitar até o último minuto? ── Delilah arqueou uma sobrancelha. Bruce não respondeu. ── Ou gosta muito de farrear às escondidas?

── Vou te deixar livre para imaginação ── Wayne apertou o botão de destrancar o carro, fazendo com que os farois se acendessem. O veículo estava estacionado próximo a eles na calçada e o mesmo abriu a porta para ela ── Vamos, entre. ── Insistiu mais uma vez. Sem querer discutir, Delilah suspirou e o seguiu.

Antes de entrar, ela abandonou o cigarro em uma lata de lixo próxima. Sentou no banco do passageiro, Bruce fechou a porta e deu a volta no veículo para ocupar o lado do motorista. Delilah colocou o cinto de segurança em silêncio, observando o quão luxuoso era o carro de Bruce. O veículo também tinha um cheiro bom, um cheiro que lembrava seu dono. Perfume caro, é claro. Ela não poderia esperar menos do mais jovem bilionário de Gotham.

Bruce acelerou o veículo pela rua, afastando-se do prédio da universidade conforme aventuravam-se noite adentro pelas vielas da Old Gotham, ela compartilhou com ele onde estava localizado o prédio em que morava. Apenas o rádio estava ligado, tocando uma música do Simple Plan. Quando estavam passando do distrito Diamond para a Robinson Park, o silêncio entre eles foi finalmente quebrado.

── O que aconteceu com seu carro? ── Bruce perguntou.

── Um problema no motor. Precisei deixá-lo no mecânico pela manhã ── Disse ela, de braços cruzados e olhando pela janela fechada. Bruce havia ligado o ar em um volume mais baixo que parecia ser confortável para os dois. ── Comprei de segunda mão. Uma hora ou outra iria dar algum problema.

── Deveria se desfazer daquela lata-velha. ── Comentou ele, casualmente.

── Com licença? Você nem viu o meu carro, não sabe se é uma lata-velha. ── Argumentou Delilah, soando indignada. Sua expressão ofendida voltou-se para ele.

── Eu vi o seu carro.

── Quando?

── Ontem a noite. Você passou por mim quando estava deixando a lanchonete, só não percebeu. ── Ele respondeu.

── Tanto faz. ── Ela dá de ombros e desviou o olhar para a janela, ajeitando-se no acento ── Ainda não lhe dá o direito de ofender o meu carro. Não temos intimidade o suficiente para isso.

Bruce murmurou em afirmação, contendo o que Delilah presumia ser um sorriso, mas ela não sabia dizer. Ele não sorria com frequência, algo que era fácil de perceber. Bruce costumava apresentar um fantasma de um sorriso no rosto, um que nunca alcançava seus olhos.

Por um momento, parecia que ele queria dizer algo a mais, porém não o fez. Bruce se conteve e Delilah perguntou a si mesma o que deveria estar se passando na mente dele naquele momento.

── Seu amigo parecia irritado ── Bruce enfim comentou, sem deixar de prestar atenção na estrada. Quando Delilah lançou um olhar que dizia "quem?", Bruce completou ── O policial que estava falando com você antes, aquele com o sobretudo.

── Ah, sim. É o Alistair ── Ela respondeu, retornando o olhar para a frente mais uma vez. Delilah suspirou ── Ele é um pouco cabeça dura e, as vezes, superprotetor também. Não o julgo por isso, mas chega um ponto que irrita.

── Acho que a preocupação dele é valida, levando em conta que você quase morreu e semana passada recebeu uma caixa com os órgãos das vitimas no seu apartamento.

── Você andou se informando ── Delilah murmurou.

── Gordon deixou esse fato escapar enquanto me interrogava. ── Explicou Bruce, impassível. ── O que me leva a questionar o porque de você ser tão negligente com a sua própria segurança?

── Gosto de viver perigosamente ── Debochou.

── Ou desesperadamente.

Delilah se atém a paisagem, como se não entendesse o que Bruce quis dizer com aquela resposta. Para o bem dos dois, ela escolhe manter a farsa.

── Tenho certeza que não sei o que você quer dizer.

Eles caem em um silêncio mais uma vez, porém torna-se momentaneamente estranho. Se Bruce tem algo para dizer para ela dessa vez, ele decide manter para si mesmo. A música no rádio continua, dessa vez dando espaço para "Lithium" do Nirvana.

── Olha, eu sei que esse acordo mau tem 24 horas, ── Delilah disse, atraindo momentaneamente a atenção de Bruce. Ele olha para ela através de sua visão periférica e depois retoma para a estrada. ── porém eu acho que seria uma boa escolha encerrarmos ele o quanto antes... Para o seu bem.

── Não tem que fazer isso. Se é minha segurança que te preocupa, não precisa se preocupar comigo. Eu sei me cuidar. ── Ele garante, sem tirar os olhos da estrada. ── E muito bem, a propósito.

Há uma mordida de confiança no tom afiado dele que faz Delilah querer soltar alguma ironia, porém ela se contêm e decide explicar as coisas de forma mais simples, sem expor totalmente o que pensa para não soar insensível.

── Não é por isso... ── Delilah suspira, massageando a têmpora. ── Eu já tenho muito com o que lidar. Envolver mais alguém nisso não me parece certo. Você ajudou, e eu aprecio isso, mas não quero o fardo de ter mais alguém do meu lado se tornando um alvo. Ele pode não me matar, mas pode fazer isso com pessoas que eu conheço e isso por si só é alarmante o suficiente. Deveria ser um sinal vermelho pra você.

── Já disse, sei me cuidar. ── Ele retrucou, irrefutável ── Eu não tenho medo do ceifador, muito menos do que ele pode fazer. Ele não me assusta. Mas, se assusta você, talvez seja o momento de você se afastar.

── Meio impossível agora, não acha? ── Ela indagou, rindo fracamente ── Eu não vou abandonar esse caso, não vou parar o que comecei. Vou colocá-lo atrás das grades, fazê-lo pagar por tudo o que fez. Se o objetivo dele foi me fazer recuar, só conseguiu me impulsionar mais a ir até o fim. Não importa o que isso me cause.

── Está mesmo disposta a arriscar tudo? ── Bruce indagou, desviando o olhar para ela momentaneamente.

── Eu não tenho mais nada a perder ── Delilah respondeu, friamente ── E você? Ainda tem tempo de mudar de ideia.

── Não estou indo a lugar nenhum.

Delilah não estava disposta a tentar mudar a mente de Bruce, não quando ele parecia tão decidido, e não estava mentindo ao dizer que não tinha nada a perder.

── Tudo bem, então espero que os seguranças da Torre Wayne sejam capazes de impedir que um serial killer tente te matar.

Durante o restante do percurso, eles não trocaram mais nenhuma palavra. Bruce trocou de estação no rádio, deixando que as notícias da noite preenchessem o ambiente. O locutor falava apenas do assunto da noite: a declaração de Pete Savage. Nada havia abalado tanto Gotham como aquela notícia. Era, é claro, a afirmação de que o Ceifador realmente havia retornado que perturbava toda a cidade ainda mais.

Fazia anos que o lugar não tinha o serial killer e agora, com a confirmação do retorno do Ceifador, tudo voltava à tona. Delilah respirou fundo, pensando que tudo estava se repetindo mais uma vez, incluindo os atos e a opinião pública. Se ela não encontrasse o Ceifador logo, outras pessoas morreriam. Ele não pararia até que ela o encontrasse. Era o que ele queria.

Um toque de recolher não era o que Delilah esperava de Savage. De todas as soluções possíveis que ele poderia escolher, essa era a única que não havia passado pela mente dela. Sabia que alguns estabelecimentos e escolas estavam fechando mais cedo por conta do medo do Ceifador, mas transformar isso em algo geral, obrigar todos em Gotham a estar em suas casas antes das 23hrs, parecia loucura.

Mesmo que aquele fosse um tempo de desespero que obrigava as pessoas a tomarem medidas desesperadas, aquilo parecia um grande equívoco. Se o Comissário esperava conseguir tranquilizar as pessoas, após anunciar publicamente que, sim, havia um serial killer em Gotham, aquilo foi um grande fracasso.

A decisão não havia partido unicamente de Savage, o prefeito Mitchell havia concordado com a ideia e pensado ser o certo a ser feito. Porém os efeitos dessa decisão causaram um certo alvoroço na cidade. O toque de recolher só estaria ativo a partir de amanhã. Pessoas que trabalhavam de noite não poderiam sair de seus empregos até as 8hrs do dia seguinte, assim como os moradores que estão dentro de suas casas.

Apenas pessoal autorizado poderia perambular por Gotham tão tarde, e esses eram os oficiais. Delilah leu casa informação no site que Pietra compartilhou com ela pois, quando teve a oportunidade de falar com Alistair, ele não estava dando importância para o assunto em questão e sim para o fato dela estar em uma suposta cena de crime com Bruce Wayne.

Delilah apertou o gravador que estava dentro do bolso do sobretudo. Não havia dito para a polícia que o encontrou, muito menos a Carroll. Não sabia o que a impulsionou a isso, porém achou que seria melhor não compartilhar com eles aquele detalhe. Um pensamento cruzou a mente de Delilah enquanto eles passavam em frente a algumas lojas em Narrows, após ela dizer onde seu apartamento ficava naquele distrito.

── Seu pai fez a autópsia de algumas das vítimas antigas do Ceifador ── Ela comentou, olhando na direção de Bruce. ── Eu li que Thomas Wayne ajudou na investigação, mesmo não sendo legista.

── Sim, ele... Ajudou no caso na época.

── Eu não tive acesso às antigas autópsias feitas por ele, acha que poderia conseguir? ── Questionou Delilah.

── Pra que precisa delas?

── Análises comparativas. Eu quero saber o que ele descobriu naquela época, se teve algo que ele acabou deixando passar ou algo que pode me ajudar. Até mesmo anotações antigas ── Ele a encarou enquanto o carro estacionava frente ao prédio. ── Se você puder compartilhar comigo, é claro. Eu li tudo sobre o caso que tem na internet, mas eles não compartilharam tudo com a mídia.

── Vou ver o que posso fazer ── Respondeu Bruce e, de certa forma, Delilah sentiu-se aliviada ── Nós chegamos.

Ela olhou pela janela e depois para ele. O rosto de Bruce parecia cansado, mesmo que ele se esforçasse para não deixar transparecer. Ou talvez já estivesse acostumado com o cansaço, pois seu rosto severo e anguloso parecia diferente sobre a luz pálida da lua. O olhar taciturno que ele direcionou a ela parecia mais suave pela baixa iluminação no local e Delilah se pegou fitando-o por mais tempo do que julgava necessário. 

Aquela era a primeira vez que ela se preocupou em analisar o rosto dele com mais cuidado e se ater ao detalhes, ao ponto de seguir da boca até os olhos azuis escuros e notar que Bruce estava encarando de volta.  Antes que toda a situação ficasse ainda mais estranha, desviou o olhar ocupando-se em se desfazer do cinto de segurança, desprendendo-o de seu corpo e se libertando do confinamento que ele proporciona.

── Obrigada ── Disse abrindo a porta do veículo, mas ainda não saindo dele. ── Se conseguir algo, não se esqueça de me falar.

── Não vou esquecer. ── Ele garantiu. Delilah o observou por um minuto, assentindo brevemente.

── Boa noite, Bruce. ── Disse ela, após sair e fechar a porta do carro, olhando para ele através da janela que agora estava aberta.

── Boa noite, Delilah.

Após se despedir, ela deu as costas para ele e entrou no hall do prédio, cumprimentando brevemente os policiais que estavam fazendo a vigia dentro do carro estacionado próximo ao edifício. Delilah só escutou o motor do veículo de Bruce ganhar vida e desaparecer na noite quando estava dentro da segurança da recepção, onde apenas o vigia estava.

Ela o comprimentou rapidamente enquanto seguia até o elevador, da mesma forma que fez com os oficiais. Quando estava dentro do confinamento que era aquela caixa de metal, apertou o botão de seu andar e deixou suas costas contra a superfície fria, inclinando sua cabeça subitamente para trás e inalando profundamente.

Todo o cansaço daquele dia se apoderou dela, fazendo-a desejar poder fechar os olhos e esquecer todos os últimos acontecimentos de sua vida. A tensão não foi embora, permanecia sobre seus ombros. Delilah nunca foi familiarizada com noites de sono tranquilas, porém as desejava mais do que tudo nos últimos dias.

Ela saiu do elevador quando o mesmo parou. Caminhou até seu apartamento, escutando os murmúrios e os sons baixos da TV que vinha dos apartamentos de seus vizinhos que ainda não dormiam.

Destrancando sua porta, Morgan entrou e retirou os sapatos, deixando os mesmos perto da entrada enquanto fechava a porta e acendia as luzes. Apenas por um momento, ela deu a si mesma o tempo de parar e analisar a sua volta. Esperando encontrar algo fora do lugar ou qualquer indício de que alguém esteve ali, mas tudo permaneceu o mesmo.

Nada lhe chamou atenção. Tudo parecia dentro dos conformes. Também não houve qualquer ligação, como naquela noite. Parecia que o Ceifador estava em silêncio agora. E, enquanto eles estivesse em silêncio, Delilah estaria inquieta. Bunca saberia o que esperar dele.

Abrindo e fechando as mãos ao lado do corpo, Delilah força a si mesma a andar pela casa. Retira o casaco e o coloca sobre a cadeira em frente ao computador em seu quarto. Depois, encaminha-se em direção ao banheiro onde, retirando peça por peça, coloca suas roupas dentro do cesto de roupa suja e desfaz o coque no cabelo.

Dentro do box, abre a água quente que cai em cascata sobre seu corpo, acha que pode lavar aquela noite da sua mente. Mantendo os olhos bem fechados, aproveitando a sensação calmante que lhe inunda. Por mais que possa ser temporária, Delilah a recebe de bom grado. Afasta toda a tensão sobre seus ombros, ensaboa a pele e a limpa como se pudesse retirar algo além de toda a sujeira. Esfrega a pele até sentir que é demais. Até que não aja mais nada em sua mente.

Quando ela sai, minutos depois. Enrola-se na toalha felpuda de cor branca. Caminha com cuidado pelo azulejo liso e para em frente ao espelho em cima da pia. Encara a própria face molhada, os cabelos úmidos caídos sobre os ombros, grudando em sua pele bronzeada.

Seu olhos fecham por um momento, uma única respiração se esvai e, quando abre os olhos mais uma vez, o sangue substitui a água. Há rastros carmesim por todo o seu corpo, descendo como uma cascata, circulando sua pele irregularmente. Sangue que não lhe pertence. A cena parece tão natural, tão familiar. O espanto não vem. Delilah apenas observa a si mesma até piscar os olhos uma única vez e tudo voltar ao normal.

NOVEMBRO 23, TERÇA-FEIRA
GOTHAM MERCY GENERAL HOSPITAL.

── Jeremiah Stirk está morto a, pelo menos, duas semanas.Tudo indica que ele passou os últimos meses sendo torturado ── Retirando o pano que cobre o corpo e deixando apenas até o torço exposto, Delilah encara Jim Gordon. ── Assim como as outras vítimas, o Ceifador o paralisou e cortou partes do corpo dele. Nenhum corte ou perfuração letal. O mais recente, aquele que causou sua morte, foi feito a praticamente duas semanas.

── Parece algo pessoal ── Gordon comentou. ── Por que mais ele manteria uma pessoa em cativeiro, torturando-a por meses, se não fosse?

── Também acredito que seja, tenente. ── Morgan assentiu. Ela pousa as duas mãos sobre a mesa, seus olhos passando brevemente pelos oficiais presentes para depois retornar a Gordon. Além do tenente, Alistair e Pete Savage estavam no necrotério, escutando tudo o que ela tinha a dizer sobre aquele corpo recém descoberto ── Stirk não foi morto como as outras vítimas, o que me leva a crer que matar ele não estava nos planos do Ceifador.

── Como assim? ── De braços cruzados e observando Delilah a distância, Alistair a questionou. Ela deixou o incômodo que sentia de lado para responder.

── As outras vítimas... O Ceifador retirou algo delas. Estômago, pulmão, coração, vísceras. Ele não retirou nada do Stirk. ── Explicou ── Ele o lavou, como fez com todas, seguiu seu ritual. Mas não o concluiu da mesma forma.

── O que causou a morte dele? ── Perguntou o tenente, coçando a barba por fazer em seu rosto.

── Parada cardíaca. Causada de forma proposital, eu suponho ── ela respondeu.

── Supõem? ── Indaga Savage de braços cruzados. ── Sem suposições, Morgan. Não pagamos você por isso.

Delilah sentiu necessidade de dizer que ele não lhe pagava para nada, na verdade. O acréscimo em seu pagamento por trabalhar para o DPGC era um benefício do estado, nada vinculado a delegacia, não era ele quem controlava o que ela recebia. Porém ela não estava em bons lençois por causa de ontem e preferiu ignorar o mau humor notável do comissário.

── Tudo indica que a parada cardíaca foi causada propositalmente. Ele sofreu diversos choques que solidificam essa teoria. Em determinado momento, o coração parou ── Respondeu Delilah, explicando. Ela expôs o corpo de Jeremiah para eles, seu corpo cheio de cortes, seu cabelo raspado e as pontas dos dedos queimadas ── Estão vendo os dedos dele? Esse tipo de queimadura não foi causada por fogo, mas sim pela indução de eletricidade.

Ela observou os três homens com olhares desgostosos em seus rostos.

── Ele tem buracos nas palmas das mãos ── Comentou Alistair.

── Sim, as mãos foram pregadas. ── Disse ela ── E os cortes no corpo foram causados por um chicote. Eu diria que isso é quase uma reprodução da crucificação, mas sem a parte da cruz.

── Certo, cobre essa merda ── Savage movimenta uma mão, pedindo para Delilah cobrir o cadáver e levando as mãos a cintura e perambula pela sala ── Não há... nada que ligue esse homem ao Ceifador, então não vamos vincular essa morte a ele. Ainda.

── Mas é o mesmo padrão e-

── Você mesma disse que ele não morreu como as outras vítimas, doutora. ── Interveio Pete ── Até onde todos nós sabemos, esse cara pode ser só mais babaca que mexeu com as pessoas erradas e foi morto.

── Sim, porque é muito comum gangues de rua fazerem esse tipo de coisa bizarra com os outros ── Ironizou Delilah, expondo o corpo mais uma vez.

── Eu já disse pra cobrir essa merda! ── Savage apontou um dedo gordo na direção dela, enquanto Delilah o encarava como se o desafiasse.

── Comissário, ── interveio Gordon, colocando-se na frente de Pete, que não desviou o olhar da doutora ── não é hora de perder a razão. Devemos pensar racionalmente.

── Eu estou pensando racionalmente, Jim. Sou o único pensando racionalmente aqui ── alegou Savage, olhando para Gordon ── Agora todo corpo que foi encontrado vai ser atribuído a esse Ceifador? Tudo porque uma legista inconsequente quer que seja.

── Inconsequente? Eu sou a única que está fazendo progresso aqui, comissário.

── Ou é isso que você pensa que está fazendo. ── Retrucou Savage ── Não sei como funciona as coisas de onde você veio, garota, mas aqui trabalhamos de forma diferente.

── É, eu vejo. Tão diferente que trabalha mau.

── Você quer mesmo ficar sem emprego, não é? ── Pete a fuzilou com os olhos, Jim chamou o nome de Savage para que ele se acalma-se.

── Ei, vamos acalmar os ânimos pessoal ── Alistair intercalou o olhar entre os dois. ── De um tempo a ela, comissário. A doutora passou por muita coisa. Não é, doutora?

Carroll a encarou com um olhar que dizia "estou tentando salvar seu pescoço, não fale mais nenhuma merda" e Delilah teve que engolir o próprio orgulho para não xingar Savage.

A tensão na sala estava crescendo, prestes a explodir. O lado racional de Delilah dizia para ela que não valia a pena discutir com o comissário. Ela precisava se manter naquele caso e iniciar um conflito com ele só complicaria tudo.

── Sim... ── disse ela, a contragosto. ── Sinto muito, comissário. Eu não sabia onde estava com a cabeça. Me desculpe.

Havia uma mordida de raiva na voz dela mas, se Pete percebeu, ele ignorou. O homem corpulento deu um passo para trás e respirou pesadamente pelo nariz.

── Tudo bem, desculpas aceitas. ── Respondeu ele, achando-se a pessoa dominante na sala. Delilah gostaria de poder acabar com o olhar presunçoso que ele tinha no rosto ── É assim que vamos agir: esse corpo, até onde sabemos, não tem nada haver com o caso do Ceifador. Enquanto não encontrarmos nada que ligue Jeremiah Stirk ao caso, ele permanece sendo um caso à parte. Jim, hora de voltar ao trabalho. Carroll, você vem comigo, precisamos conversar.

Savage se afastou, murmurando e praguejando para si mesma palavras que Delilah não conseguiu entender e nem queria.

── Jim, ── Ela o chama, antes que ele tenha a chance de sair. ── vocês descobriram algo sobre o Jeremiah? Sabe se ele tem familiares vivos?

── Estamos investigando sobre isso, doutora. ── Respondeu Jim, levando as mãos aos bolsos da calça. Ele parecia distante, desconfiado. A conversa de ontem teve aquele efeito sobre ele ── Mantenha sua atenção em seu trabalho, nós lidamos com isso.

Delilah os observou caminhar até a saída. Alistair dando um último olhar para trás antes de sair. Os dois não estavam se falando desde a pequena discussão da noite passada e ela não saberia dizer em que estágio a relação dos dois estava agora, porém esperava que tudo retornasse ao normal logo.

Ela retirou as luvas e suspirou. Percebendo que não obteria informações da polícia, o único pensamento que tinha em sua mente era de dar continuidade a sua investigação sozinha. Não totalmente sozinha, pois ainda tinha Bruce ao seu lado e, de certa forma, Delilah sentia-se aliviada por isso.

Noite passada, quando antes da polícia aparecer, ela chegou a dizer a Bruce que fosse embora. Estava disposta a arcar com as consequências de encontrar o corpo sozinha, porém Bruce foi relutante quanto a isso. Ele não foi embora, alegando que cedo ou tarde eles descobririam que ele também estava envolvido e isso apenas complicaria mais a situação dos dois. E, de certa forma, Bruce estava certo.

Delilah ainda desconfiava de que Jim não havia acreditado totalmente nas desculpas dos dois. Ambos disseram que estavam investigando juntos o caso do Ceifador. Delilah alegou que conhecia pessoas na universidade e que queria conversar com alguns auxiliares de necropsia sobre uma suposta pista ── pista essa que ela não compartilhou com a polícia ── e os dois acabaram encontrando o corpo ao tentarem contatar Stirk.

Faltavam algumas peças, porém Gordon não insistiu e para Savage pouco importava o que Delilah fazia, tudo o que ele se importava era em tentar controlar a mídia e abafar mais uma possível vítima do Ceifador para não causar um escândalo. Mesmo assim, o tenente estava mantendo certa distância e Morgan entendia os motivos dele. Infelizmente, nada que ele fizesse a faria parar.

Após devolver o corpo à gaveta, Delilah se desfez do jaleco e saiu do necrotério. O horário era propício para o seu almoço e partiu para encontrar Pietra no estabelecimento próximo ao hospital, onde elas às vezes costumavam comer juntas.

── Não sei como você consegue comer depois de passar a manhã olhando para gente morta ── Comentou a Gilcrest, torcendo o nariz. As duas estavam sentadas em uma mesa do lado de fora do restaurante. Pietra segurava uma revista e passava a folha de forma despretensiosa, focada em sua leitura.

── Com o tempo você se acostuma. ── Delilah deu de ombros, enrolando o macarrão no garfo. Pietra escolheu um prato vegetariano, mas nem ao menos havia tocado no mesmo. Seus olhos ainda estavam muito focados na revista em suas mãos.

── Eu passo. Não quero me acostumar com isso. ── Retrucou a doutora.

── A morte é algo natural. Você é médica, deveria saber disso. ── Disse Morgan, levando uma garfada à boca.

── Uma coisa é acabar perdendo um paciente, outra é lidar com pessoas totalmente mortas o dia todo. E sabe, perder um paciente não é uma opção que nós, médicos de verdade, cogitamos ── Respondeu Pietra, erguendo os olhos da revista. ── Sabe que estamos em situações bem diferentes aqui.

── Está dizendo que não sou médica de verdade? ── Delilah arqueou uma sobrancelha para ela.

── Enquanto você trabalhar naquele porão gótico, está mais para conde Dracula ou zumbi do que para um médico de verdade, querida ── respondeu a mulher.

── Se você diz. ── Delilah revirou os olhos. Gilcrest passou a página da revista. ── Por que você não larga essa revista e come sua comida? Vai esfriar.

── Estou ocupada lendo o horóscopo ── Delilah fez uma careta ao escutar a resposta de Pietra ── E já está frio, é salada.

── Realmente acredita nisso?

── Essa revista sempre acerta. ── Disse Pietra, sem tirar os olhos da página. ── Madelyne Prescott é uma expert em astronomia. Na semana passada, ela disse que pessoas com o signo de Áries teriam novidades que iriam repercutir em seus ganhos e, advinha só, ganhei um aumento!

A empolgação de Pietra apenas fez com que Delilah revirasse os olhos mais uma vez. A normalmente fria e calculista Pietra Gilcrest parecia ter desaparecido naquele momento.

── Não faça essa cara. Horóscopos são úteis. ── Argumentou Gilcrest.

── Eu esperava essa fala de qualquer um, menos de você, madame satã.

── Vai se foder. ── Delilah riu, comendo mais uma porção de seu macarrão. Ela sabia o quanto aquele apelido irritava Pietra, mas não poderia perder a oportunidade ── Sabe o seu signo?

── Não vou fazer isso.

── Anda logo, Morgan. ── Insistiu Pietra.

── Já disse que não.

── Você não vai morrer se me disser apenas seu signo, cara. ── Argumentou ela. Delilah suspirou.

── Escorpião. ── Morgan murmurou.

── Hum, certo. Você tem cara de escorpião mesmo ── Comentou Gilcrest. Os olhos dela passando pela página. Delilah arqueou uma sobrancelha, mas não a confrontou sobre isso ── Aqui diz "você deve atrair aliados importantes, meu cristalzinho! Com seu jeito atencioso, prestativo e sua disposição para cooperar, vai ser fácil motivar colegas, chefes e clientes. O lema no trabalho será a união faz a força e você também vai contar com todo apoio das pessoas próximas, só tome cuidado pra não perder a esportiva com parentes e pessoas inconvenientes no início da tarde."

── Já errou porque eu meio que não tenho parentes para me importar ── Delilah riu, Pietra revira os olhos.

── Nem tudo é 100% sobre você, Delilah. São possibilidades ── Pietra argumenta. Em seguida, ela continua a ler. ── Também diz que a paixão será o ponto alto do seu dia e que deve abusar da sedução se quiser embarcar em um romance. ── Gilcrest ergueu os olhos para ela, vendo Delilah continuar a rir. ── E, sinceramente, acho que você está realmente precisando de alguém.

── Eu dispenso, estou bem sozinha.

── Não, você precisa urgentemente transar. ── Respondeu Pietra. ── Deixe o romance de lado, foda com alguém. Talvez assim você deixe de ser tão mórbida.

── Agora sou eu quem vai te mandar ir se foder. ── Delilah disse.

── Você vai fazer algo hoje a noite? Podemos ir ao bar da Izzie. Tenho certeza que vamos encontrar alguém que preste lá. ── Sugeriu Pietra. Em seguida, um olhar malicioso cruzou o rosto dela ── Ou você pode convidar aquele policial gostoso que tem uma queda por você.

Delilah franziu o cenho.

── Quem? O Alistair? ── Gilcrest assentiu. Ela negou, bebendo um pouco de suco em seu copo. ── Ele não tem uma queda por mim, não sei de onde você tirou isso.

── É, tá mais pra um penhasco mesmo ── Pietra riu. ── Ele segue você como um cachorro, faz questão de fazer sua segurança mesmo quando não precisa e se sentiu super culpado quando você quase morreu dias atrás. Esse cara ou está muito empenhado em te levar pra cama ou realmente gosta de você. Não tem meio termo.

── Pietra, por favor, cale a boca. ── Morgan pediu, fazendo a mulher rir ainda mais.

── Realmente, é como dizem, o pior cego é aquele que não quer ver. ── Gilcrest finalmente deu uma garfada em sua salada. ── Mas a proposta de sair ainda está de pé. Mesmo que você não encontre ninguém, acho que precisa tirar sua mente do trabalho.

Delilah ponderou sobre e abriu os lábios para responder, quando seu celular vibrou em cima da mesa, fazendo-a parar antes que pudesse dizer o que veio a sua mente.

Ela inclinou o aparelho para si com a mão, olhando para a notificação que recebeu, enquanto Pietra estava ocupada com seu próprio almoço. A mensagem clara em sua tela deixava evidente que Delilah não estaria disponível mais tarde e isso, de certa forma, a encheu de uma sensação estranha que muito se parecia com alívio.

BRUCE: Torre Wayne. 18hrs.

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