Capítulo 2

Respiro fundo tentando absorver tudo o que acabei de ouvir. Não esperava por uma confissão, não levando em consideração tudo o que ela fez. Tomo mais um gole de café, arrependo-me no mesmo instante, está completamente frio, suspiro frustrado sentindo o gosto amargo na boca.

Pego a segunda ficha, sentindo a derrota crescente em meu peito, com o intuito de ao menos entender o que me espera. Releio o nome e simplesmente prefiro não acreditar no que está diante de meus olhos. Ouvi boatos do que houve...realmente não será um dia fácil.

O nome Cinderela está em negrito, tomando a maior parte da folha. Consigo lembrar das notícias e dos boatos, não consigo entender as motivações da menina, ela tinha tudo... A troco de que ela colocaria todo seu conforto em risco?

Logo, outro policial entra na sala com a moça. Seus fios loiros estão bagunçados, suas olheiras evidentes e, garanto que se a visse na rua, não diria que um dia já foi a princesa do reino do Castelos dos Sonhos, fielmente diria que é uma sem teto.

Assim que a garota me olha, percebo que, diferentemente da senhorita Snow, Cinderela não aparenta ter um pingo de remorso. Honestamente, seu olhar é vazio e perdido, ela soa insana...

A breve lembrança de sua ficha me toma, e então entendo o motivo de ter vindo diretamente do manicômio, ela não parece meramente sã.

– Sente-se, por favor – Digo sentindo seu olhar de julgamento.

Apesar de já ter conhecimento de seu laudo psiquiátrico, acabo por me assustar com toda a raiva que encontrei em seus olhos. Tudo parece extremamente reprimido dentro dela. Engulo em seco, controlando todos os meus instintos de sair da sala.

Ela, obviamente, não gostaria de estar aqui e, obviamente, não foi com a minha cara. Observo-a atentamente enquanto senta-se diante de mim. Como já disse anteriormente, fisicamente ela não se parece em nada com uma princesa, mas seus trejeitos delicados e leveza em movimentos são semelhantes com os da detenta anterior, o que me faz imaginar que, mesmo sendo coroada a princesa depois de velha, sua infância foi repleta de uma boa educação.

– Senhorita Cinderela, sabe as motivações que a levam a estar nesta sala de interrogatório? – A garota apenas observa-me atentamente. – Em sua ficha diz que está sendo acusada por manipulação e assassinato de um membro da corte real, de forma que, de acordo com as leis dos sete reinos, será sentenciada em seu julgamento a prisão perpétua, o que pode ser revertido para uma pena menor caso a senhorita confesse seus crimes! – Apesar de ter falado rápido, minha voz foi clara. Odeio protocolos.

Ela não reage. Apenas fica ali, paralisada, observando-me. Um questionamento surge em minha mente: A garota ao menos tem condições de estar passando por um interrogatório?

Repasso os olhos por sua ficha, pela milésima vez, focando-me na parte médica. Não há nada aqui sobre não ser comunicativa. A frustração em meu peito fica cada vez maior, por que ela não me responde?

Troco a sequência de folhas e deparo-me com as fotos do crime em questão. O príncipe Henry ficou completamente desfigurado. Ao que parece, a garota o golpeou com a coroa real enquanto estava distraído e, aparentemente, não se contentou com a queda do homem... Pergunto-me onde raios seu olho esquerdo foi parar. Volto-me para a ficha médica

"Conforme relatório assinado pelo Dr. Sebastian, responsável pelo departamento de saúde mental da delegacia dos Sete Reinos, a requerente apresenta laudo de esquizofrenia, sendo essa a causa de seus surtos de alucinações"

Tudo o que temos é um laudo médico afirmando que a garota enlouqueceu. Ok, vou me contentar com isso. Volto-me para as fotos do príncipe, ela o manipulou para dar fim em sua madrasta e em suas meias irmãs.

O que infernos está havendo com as madrastas?!

Passo as mãos no rosto, preparando-me para o que vou fazer, talvez seja um pouco antiético e maldoso da minha parte, mas não consigo pensar em nada melhor. Pego uma das fotos do príncipe desfigurado viro para a garota, deixando perto o bastante para que fitasse a imagem. Seu corpo se contrai no instante em que vê o estado de seu ex-marido. Ela desviou os olhos e focou-se em um ponto qualquer do chão, encolhendo o corpo como pode.

– A senhorita realmente acredita que o príncipe merecia isso? – questiono feliz em ver sua primeira reação - O futuro rei do reino em que a senhorita cresceu, o homem com quem se casou, o homem que a livrou dos tormentos que vivia com sua antiga família... Acredita mesmo que, justo o homem que a salvou, merecia morrer dessa forma covarde?

Cinderela finalmente volta a me olhar, mas agora, a incredulidade percorre toda sua íris. Ela entreabre os lábios para dizer algo, mas volta a se calar novamente. Se eu forçar mais um pouco...

– Não consigo imaginar um motivo para tal ato grotesco. O príncipe era um cavalheiro com a senhorita, não? Ele a acolheu em sua casa e a amou desde a primeira vez que se viram. Como pode fazer algo tão brutal?

Observo as mãos da garota fechando-se em punhos firmes. Está ficando irritada, isso é bom, muito bom!

– Realmente senhorita...-faço uma pausa dramática – Acredita que seu pai ficaria orgulhoso de suas atitudes? – Observo sua respiração ficar cada vez mais tensa - Acredito, fielmente, que a senhorita tornou-se a maior vergonha da vida daquele pobre homem!

A única atitude da menina é cair no choro. Apesar de não saber lidar com mulheres chorando, fico feliz com a reação da garota. Assim ao menos tenho como saber se está consciente.

– Ao menos tenho a paz de saber que irá ficar presa pelo resto dos seus dias! – A garota chora ainda mais – É o que criminosos como você merecem, por matar homens tão bons!

– Isso não é justo! – A garota finalmente fala. Um tipo orgulho cresce dentro do meu peito, me daria um tapinha nas costas se pudesse! Mas logo esse orgulho é substituído pela vergonha, o que fiz é cruel...

Observo a maneira como ela parece muito mais descontrolada agora. A garota balança seu corpo para frente e para trás, repetindo em um sussurro que aquilo não é justo.

– O que a senhorita quer dizer com isso? – pergunto já pegando a caneta em cima da mesa, preparando-me para anotar seu depoimento.

Ainda balançando o corpo, Cinderela continua:

– Ele não me deixava em paz, eu nunca tive paz. – Seu rosto molhado pelas lágrimas reluzia diante da luz - Como eu poderia passar o resto dos meus dias daquela maneira? Casei-me acreditando na sua palavra, acreditando que me protegeria! – Ela se volta para mim, é notório o pavor em seus olhos, sua voz expressa como toda a situação a afeta - No começo parecia real, ele até as matou para que eu me sentisse mais segura...Henry nem ao menos me deixava dormir, nada era o suficiente, nada bastava! As aulas de etiqueta, história, cálculo... Eu tinha que ser perfeita o tempo todo, caso não o agradasse….Céus, se não o agradasse eu sofria as piores punições que se possa imaginar!

Anoto freneticamente o discurso da garota. A história estava sendo montada na minha cabeça. Qualquer um enlouqueceria devido às condições, ouvi boatos de como era tratada na casa da madrasta... Ela saiu de um inferno para entrar em outro.

– Os ratos tentaram me ajudar. Bolamos um plano de fuga, mas Henry descobriu e me prendeu em nossos aposentos. – O corpo magro e pequeno da garota estremece com a memória, como se realmente estivesse revivendo tudo em sua mente.

A vaga lembrança de uma manchete comentando sobre o desaparecimento da princesa, toma meus pensamentos. Todos acreditamos que ela estava distante por uma possível gravidez. Mas na verdade, era feita de refém...

– A senhorita quer dizer que o assassinato foi legitima defesa? – pergunto pronto para anotar sua confissão. A garota respirou fundo, tentando se recompor para continuar a falar.

Assim como fiz com a senhorita Snow, ofereço-lhe um copo de água, ela precisa manter sua mente sã, caso contrário a confissão não poderá ser levada ao seu julgamento. Mas ela também recusa.

– De certa forma sim. – Ela, agora um pouco mais calma, responde minha pergunta - Eu consegui convencê-lo a me soltar, prometi que voltaríamos a ser como éramos antes de planejar a fuga. Prometi um herdeiro... – Cinderela engole em seco, como se a ideia lhe desse enjoou e, logo prossegue – Aguentei voltar ao que éramos por poucas semanas, ele estava bem mais agressivo do que antes... Em uma noite, eu apenas tive o instinto...

Posso ver todo o assombro transpassando sua íris. Foram momentos muito difíceis para a moça e sua linguagem corporal deixa tudo isso muito explícito. Posso sentir um desconforto me tomar também.

– Teríamos um baile e Henry pediu para que eu pegasse sua coroa. - A garota se perde em sua própria mente e, quando volta a falar, é quase um sussurro – Na primeira oportunidade que tive... em seu primeiro momento de distração eu o ataquei e descontei em seu rosto toda minha raiva...

Termino de anotar completamente incrédulo com o que eu estava ouvindo. O príncipe Henry realmente parecia ser uma boa pessoa...As aparências com toda certeza enganam.

Releio tudo o que escrevi até agora, com o laudo e a confissão, talvez a garota só fique no manicômio por alguns anos até conseguirem provar que Cinderela estava sendo torturada. Provavelmente, tudo ficará bem mais fácil. Realmente torço para que tenha um bom advogado a sua disposição. Cinderela,assim como a senhorita Snow, merece um pouco de paz.

– A senhorita tem algo a mais a declarar sobre seu caso? - pergunto o mais tranquilo que posso, o mínimo é tentar passar um pouco de calmaria para a garota.

– Acredito que não...- Cinderela encolhe-se na cadeira, parece envergonhada por suas atitudes.

– Tudo o que disse aqui será usado contra a senhorita no tribunal - falo vendo-a apenas assentir - Um policial irá acompanhá-la até o transporte que a levará de volta para o local ao qual tem residido devido às condições psicológicas.

Vejo-a suspirar enquanto levanto da mesa, encaminhando-me para chamar o policial.

– O senhor acha que meu pai realmente se envergonha do que fiz? – sua voz soa doce e tranquila.

Não sei o que dizer a garota. Tudo vai parecer forçado demais para ser dito. E, além disso, dependendo da minha resposta, posso acabar influenciando-a, de forma que mude seu discurso no dia do tribunal e isso pode interferir gravemente em todo o percurso de sua vida.

Mas ao mesmo tempo, sinto a empatia de ter usado contra ela fatos dos quais sabia que a machucariam e ofenderiam, o que não foi nada ético da minha parte. Como vou dormir à noite sabendo que joguei tantas coisas na cara de uma garota que só está doente por conta de vivências horríveis que é obrigada a guardar?

Viro-me em sua direção e observo seu rosto. Ela, claramente, está mais tranquila do que antes. Mas é nítido o quanto espera ansiosamente por minha resposta.

–Eu menti para conseguir sua confissão, e sinto muito por isso - A garota sorri delicadamente para mim – Seu pai estaria orgulhoso em vê-la lutar tanto pela própria vida!

A gratidão é quase palpável em seus olhos. A culpa que me consumia por tê-la manipulado diminui lentamente e finalmente some completamente quando a ouço dizer:

– Muito obrigada por isso! –Assim como fiz com a senhorita Snow, apenas assenti em resposta.

Realmente sinto-me mal em pensar que essas garotas só precisavam conversar com alguém e que o fato de que eu as ouvi, já é suficiente para que tenha sua gratidão.

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