8 - Insônia

          Os eventos seguintes passaram de maneira automática para Duda. Por mais que tentasse se lembrar, apenas flashes do cortejo até o túmulo de sua família surgiam, como o momento em que Gabriela quase pisou em um rato morto e soltou um grito, assustando os demais que subiam para acompanhar o sepultamento, ou então a chuva que caiu repentinamente quando o caixão foi baixado dentro da sepultura. Até o céu chorava por aquela perda, mas Duda não conseguia.

          Quando se deu conta, já estava de encontro a Steve no saguão do velório. O rapaz não era muito fã de cemitérios e tudo era diferente demais de sua terra natal. A começar pelos túmulos. Todas aquelas construções para fora da terra, estátuas e cruzes passavam um ar macabro. Ele sabia que era normal em outros países, mas ainda assim achava estranho. Ele estava com Arthur. Duda não queria que o filho presenciasse nada daquilo, então desde o início o manteve alheio a tudo, mesmo sabendo que ele não se lembraria de nada.

          Sua roupa encharcada pela chuva já estava desconfortável e tudo o que desejava era ir para casa. Enquanto alguns se despediam, Jonathan – igualmente molhado – a chamava para ir embora. Carol se ofereceu para levá-la, afinal as malas não caberiam no Fusca. Bastou entrarem no carro para que Duda apagasse, acordando somente quando o carro estacionou em frente ao prédio.

          Jonathan já estava sentado no capô do Fusca com Daniela, mas a esperava para subir. Um frio na espinha surgiu quando pararam em frente à porta do apartamento. Ele esteve lá no dia anterior para pegar alguns documentos e a roupa para o velório, mas sabia o que este primeiro impacto poderia causar em sua irmã. Virou a chave e esperou que ela movesse a maçaneta.

          A sensação era a de que Duda passou apenas uma semana longe. Tudo continuava igual, menos o vazio que ecoava ali. Jonathan acendeu a luz e um ou outro detalhe diferente foi percebido por sua irmã, mas coisas tão ínfimas que sequer eram relevantes. Estar no lar de sua mãe sabendo que ela não voltaria mais lhe dava um nó na garganta. Ela seguiu até seu antigo quarto e um lamento doído saiu de sua garganta. Ele também continuava igual, como se Laura estivesse sempre pronta para recebê-la. Deixou suas malas ali e seguiu para um banho junto com Arthur, o menino já estava agoniado por estar tantas horas em meio a tanta gente desconhecida.

          Algumas vozes foram ouvidas por ela, que terminava de amamentar o menino em seu quarto. Reconheceu o sotaque de seu tio-avô mesmo em meio a toda falação. Arthur acabou pegando no sono e Duda o deixou em sua cama, indo para a sala em seguida. Sua surpresa foi ver que ele e sua tia-avó não eram os únicos ali.

          Gabriela dava risada ao arriscar seu inglês com Steve, que fumava na varanda. O casal de idosos tomava café sentado à mesa na companhia de Mônica enquanto Jonathan conversava no sofá com Diego, que segurava o filho adormecido no colo. Já as vozes de Daniela e Nicole vinham da cozinha, juntamente com o cheiro de café recém passado. A casa estava cheia, mas nunca pareceu mais vazia. E todos pareciam bem, mesmo depois de um velório. Ela não julgava, afinal ela também estava bem, para sua tristeza.

          Os olhares se voltaram para ela. Todos sabiam muito bem tudo o que ela passou quando seu pai morreu e esperavam uma reação parecida. Mas Duda apenas caminhou até a mesa com um sorriso, colocou café em uma xícara e se sentou na cadeira livre. Ficou tentando lembrar quando foi a última vez em que se sentou ali com sua mãe.

          "Duda, a gente vai dormir por aqui, tá? Já falei com o Jonathan, o hotel ficaria muito caro", Mônica a tirou de sua lembrança. "Claro", respondeu com um sorriso falsamente aberto. Não via problema nenhum em seus tios dormirem ali. Nem mesmo Mônica e Gabriela. Ela sabia bem quem ela não queria a companhia, mesmo que por uma noite.


– Nós não vamos ficar.


          A voz de Diego surtiu um efeito já conhecido por Duda. E mesmo não querendo a presença dele, ouvir isso lhe deu um pequeno desânimo. Não pretendia nem ao menos trocar algumas palavras com o rapaz, mas era inegável que ele ainda mexia com ela de uma forma que ninguém jamais mexeu.


– Aqui vai ficar apertado para todos – continuou – O Jonathan e a Maria Eduarda estão cansados, a Daniela e o rapaz gringo ali também. Fora que um quarto de hotel só para nós três não vai ficar pesado. Já conversei com o Jonathan e ele concorda comigo.


          Duda sabia que esse não era o único motivo – apesar de concordar que ficaria apertado – e agradeceu silenciosamente por ele ter o bom senso que ela talvez não teria. Seria desconfortável para os dois aquela situação. Mônica ponderou, mas percebeu que ele tinha razão. Sendo assim, Diego se levantou com a criança no colo, chamou Nicole e os três seguiram para um hotel perto dali.

          As horas passavam e o sono chegava. Antes mesmo das onze todos já estavam dormindo. Também, pudera, as últimas vinte e quatro horas foram cheias e não é nada cômodo passar o dia em um cemitério. O casal de idosos ficou no quarto de Laura. Arthur dormiu com Duda na cama de solteiro da mesma. Steve ficou pelo sofá – nada que ele não estivesse acostumado – enquanto Gabriela e Mônica dividiram a cama de solteiro de Jonathan, que dormiu em um colchão inflável com Daniela.

          Duda pensou que quando voltasse para casa teria sua melhor noite de sono, mesmo sua cama não sendo mais confortável do que a que possuía em Boston. Mas a verdade é que quando amanheceu parecia que ela não descansou nada, apesar de ter dormido a noite toda. Se levantou e todos já estavam acordados. Jonathan preparava o café enquanto as visitas se aprontavam para pegar a estrada novamente.

          Assim que Arthur veio caminhando ao lado da mãe, segurando na barra de seu pijama, as atenções se voltaram para ele. Desde o dia anterior ele praticamente só dormia, compensando tudo o que não descansou no avião. Mônica foi a primeira a brincar com a criança, fazendo com que ele se escondesse atrás da perna de Duda, com um sorriso tímido.

          Gabriela franziu o cenho e afirmou que ele se parecia com alguém, mas não conseguia se lembrar quem, fazendo Duda engolir seco. "Uai menina, ele parece com vocês tudo quando eram pequenos", tia Maria afirmou e sorriu, fazendo a mãe do menino soltar um suspiro aliviado.


          A despedida acontecia na calçada em frente ao prédio, logo após o café da manhã. Enquanto Mônica tentava convencer Duda e Jonathan a irem com eles para Minas Gerais o carro de Diego estacionou. Como sempre, ele escondia as olheiras de uma noite mal dormida atrás de seus óculos escuros.


– Que cara é essa, Diego? – Gabriela perguntou assim que ele desceu do carro.

– Não dormi a noite toda. Acho que minha insônia chegou.


          Por trás das lentes escuras, Diego olhou de soslaio para Duda. Será que ela se lembrava dessa metáfora que ele usou tantas vezes com ela? Ela apenas encarava o chão, mas ele percebeu o esboço de um sorriso querendo se formar no canto de seus lábios. Abriu um sorriso também.

          Enquanto conversava com Jonathan, Diego viu Arthur se aproximar e abraçar a perna do tio, que o pegou no colo. Ele ainda não tinha visto o menino acordado, e se surpreendeu com a beleza da criança. Os olhos azuis e brilhantes o fez ter a impressão que o conhecia, mesmo sendo a primeira vez que o via. Brincou com o menino, o fazendo rir. O sorriso largo se instalou no rosto dos dois.

          Duda observou a cena de longe, enquanto conversava com Gabriela e Steve. Não sabia o que sentir, o pai de seu filho estava ali, o conhecendo sem saber. Ela tinha a impressão que qualquer um que se atentasse àquele momento perceberia imediatamente que os dois eram pai e filho. Desviou o olhar para Pedro, que estava no colo de Nicole. Ele e Arthur tinham mais semelhanças do que ela imaginou. A maior diferença entre os dois é que o mais velho puxou os olhos castanhos da mãe. Já os azuis de Arthur sempre estiveram lá para lembrá-la de quem ela nunca esqueceu.

          "Fica bem" foi a frase mais falada durante os abraços de despedida. Algumas lágrimas rolaram, mas bastou Mônica confundir os idiomas e soltar um "adios" para Steve para que o clima ficasse menos triste. O abraço de Nicole e Duda foi rápido e sincero. Diego se aproximou para um abraço de adeus – mais um entre tantos que já deram.

          Ela ainda não se sentia à vontade com isso, ainda mais na frente de tanta gente. Sabia que era coisa da sua cabeça, mas sentia como se uma respiração um pouco mais forte ou um segundo a mais nos braços dele pudessem entregar tudo o que tiveram e tudo o que sentiram um pelo outro. Já Diego queria abraçá-la mais uma vez.

          Os braços dele a trouxeram para si e um enlace apertado se formou. Ele abaixou alguns bons centímetros até seu ouvido e ela sentiu o coração acelerar. "Você vai achar ruim se eu disser que minha insônia chegou?", sussurrou. Antes de soltá-la do abraço, deixou um beijo silencioso em sua bochecha.

          Nicole observava de longe aquela despedida e o sorriso que mantinha ao conversar com Daniela se desmanchou. Será que era coisa da sua cabeça? Só podia ser. Já haviam mais de dois anos que eles não tinham nenhum tipo de contato, ele já teve tempo de superá-la. Ela também nunca teve certeza que ele gostava de Duda, só desconfiava. Vai ver, no fim das contas, não era nada. E outra, ela e Diego eram felizes... não eram?

***

          Depois de todas as despedidas, os cinco que ficaram em São Paulo voltaram para o apartamento. A sensação de vazio era cada vez mais presente naquele lugar e mesmo em meio a risos de Jonathan e Arthur, a tristeza era presente. Duda aproveitou que seu filho estava distraído na sala e foi até o quarto para descansar – ou pelo menos, para não ver as fotos de sua mãe por todo lado. Steve a seguiu e fechou a porta, se sentando na beirada da cama em seguida.


– Então... Como você está?

– Cansada e apenas existindo.

– Quer conversar? – deitou com as pernas viradas para ela.

– Sobre a minha mãe? Não. Eu não consigo acreditar ainda, e quanto mais me forço, mais difícil é.


          Steve assentiu e abraçou as pernas dela, que estavam próximas ao seu ombro. Na outra beirada da cama, Duda mantinha o olhar perdido através da janela. Alguns minutos de silêncio estavam fazendo o rapaz pegar no sono, mas a voz dela o despertou.


– Ele estava aqui, Steve.

– Eu percebi – disse em meio a um bocejo – E a tensão entre vocês também.

– Ficou muito na cara?

– Até um cego seria capaz de ver.

– Ele brincou com o Arthur... – arquejou e jogou a cabeça para trás.

– Eu vi! Os dois são muito parecidos, não sei como ninguém desconfiou que ele é o pa...


          "Cala a boca!", Duda exclamou, levando rapidamente a mão na boca do amigo, olhando assustada para a porta. "E se o Jonathan te escuta?!", sussurrou. Sentiu algo úmido e quente em sua mão e o soltou, a limpando na roupa no mesmo segundo.


– Eu não acredito que você lambeu minha mão!

– Você me calou! Eu ia fazer o quê?

– Ai que nojo, Steve! Você sabe que eu troquei a fralda do Arthur agora há pouco né?


          Steve abriu um sorriso sem graça e o nojo estampou seu rosto. Duda caiu na gargalhada, a primeira risada totalmente sincera desde que chegaram no Brasil. Os dois deixaram o assunto de lado e foram até a sala. O gringo se sentou no chão para brincar com Arthur, já Duda se sentou ao lado do irmão, que passou o braço por seu ombro e a abraçou. Tudo parecia bem, mas infelizmente é durante a noite que as tristezas surgem.

***

          Quando questionada se queria dormir com Arthur na cama de Laura, Duda negou de imediato. Dormir com seu filho em uma cama de solteiro não era tão confortável, mas ela sabia que se aceitasse, não conseguiria pregar os olhos. Então Jonathan e Daniela foram para o quarto daquela que já não estava mais ali, deixando uma cama livre para Steve.

          Foi no meio da noite que sua bexiga a acordou, a fazendo correr para o banheiro. Assim que saiu, ao invés de voltar para o quarto, foi até a sala. Passeou entre os porta-retratos assim como fez no dia em que foi para Boston. Algumas lágrimas escorreram ao ver a foto de sua mãe com Arthur; o menino cresceria sem os avós. Pegou o porta-retrato e se sentou no sofá. Ali, fantasiou tudo o que poderia ter vivido ao lado dela se não tivesse ido embora. E mais lágrimas surgiram.


          Daniela acordou cedo e encontrou a cunhada dormindo no sofá. A fotografia ainda estava em sua mão. "Duda?", chamou baixinho. Ela demorou a despertar, seus olhos pareciam ter quilos e mais quilos de areia. A sensação de lágrima seca no rosto a lembrou do momento em que caiu no sono. "Eu vou comprar pão e já volto. Você quer que compre algo pro Arthur?". Duda negou com a cabeça. "Vai deitar lá no quarto, o Jonathan tá acordado", falou sem ter a certeza que ela entendeu. Duda resmungou algo incompreensível e sorriu.

          Ainda sonolenta, ela colocou o porta-retrato no lugar e foi até seu quarto. Arthur dormia esparramado pela cama, então Duda sequer tentou deitar, fechou a porta e parou na porta entreaberta do quarto de Laura. Deu duas batidinhas e Jonathan disse para entrar.

          Seu irmão estava deitado mexendo no celular. Duda olhou ao redor do cômodo e sentiu a falta que a mãe fazia. Seus saltos ainda estavam em frente à porta do guarda-roupas, esperando pelo próximo expediente que não chegou. A toalha de banho pendurada na porta do banheiro, como sempre. No mancebo, a roupa que Duda elogiou em sua última chamada de vídeo. Jonathan deu dois tapinhas no travesseiro ao seu lado, a convidando para se juntar a ele. Ela assentiu e se encolheu na cama, do lado em que Laura costumava dormir.


– Ela tá fazendo muita falta... e só fazem dois dias.

– A mãe morreu, Jonathan... – abraçou as próprias pernas.

– Sim, Du...

– A mãe morreu!


          Sua voz, antes tão baixa, saiu quase que em um grito. Um lamento rasgou sua garganta e as lágrimas surgiram feito um vulcão em erupção. E elas queimavam feito lava. Finalmente a ficha caiu. Laura havia partido; Roberto havia partido. Ela e Jonathan estavam órfãos. Nada seria capaz de trazer seus pais de volta, mas se magicamente houvesse algo, eles dariam a vida por isso. Jonathan a abraçou e chorou junto dela. Ninguém mais entendia a dor deles a não ser eles mesmos. Pode ter demorado um pouco, mas Duda sentiu. E o mais importante é que Jonathan estava lá para sentir junto com ela.

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Olá meus amores! Como estão?

Mais um capítulo fresquinho. O que acharam?

Não gosto de ver a minha menina sofrendo assim, dá uma dorzinha no coração :(

Sei que ainda estamos no começo da história, mas me contem o que estão achando até agora!

Beijinhos e até semana que vem ♥

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