5 - Porta-retratos
A quente manhã de São Paulo estava preguiçosa, Laura se revirava pela cama até ter ânimo o suficiente para se levantar. Ela odiava os fins de semana, principalmente os domingos. Depois que Duda se mudou para Boston e Jonathan se casou, os dias de descanso perderam a graça. Acendeu a luz e esticou a mão sobre o lado vazio da cama, como fazia todas as manhãs nos últimos oito anos. "Bom dia, meu amor", proferiu como se Roberto ainda estivesse ali.
Se levantou com muito custo e foi até a cozinha, mas não sem antes abrir as portas tão frequentemente fechadas dos quartos de seus filhos e vê-los vazios mais uma vez. Ela não se arrependia por ter feito a proposta para Duda deixar o país, também se orgulhava do homem que Jonathan se tornou, adorava sua nora e não era capaz de imaginar seu filho com outra pessoa, mesmo que em outro Estado. Só não imaginou que seria tão difícil vê-los bater asas.
Preparou seu café na cafeteira nova, que fazia apenas um copo. Ela não precisava de mais do que isso porque agora não tinha mais ninguém para tomar café. Pegou algumas torradas no armário e se sentou sozinha na mesa.
Se lembrou de como sua casa era há uma década. As quatro cadeiras ocupadas, a falação das crianças, as piadas de Roberto, as broncas quando os filhos saíam correndo da mesa antes de terminarem a refeição. Pareciam até aquelas famílias de comercial de margarina. Mas o pequeno apartamento agora parecia enorme. A casa constantemente barulhenta agora exalava o silêncio. Ela sentia falta até mesmo da bagunça que os dois deixavam por todos os cômodos, mesmo depois de grandes.
Laura terminou seu café e foi até as prateleiras que exibiam alguns porta-retratos. A maioria estava ali há alguns anos, mas quatro eram novos: um de Duda ainda na maternidade com Arthur; outro, ela com seu neto no Natal; o terceiro, uma foto com Jonathan e Daniela no cartório, após assinarem os papéis do casamento e, por fim, um dela com os dois filhos no aeroporto, a última foto que os três tiraram juntos.
Uma foto da família ao lado de Roberto lhe trouxe recordações. Lembrou do dia em que foi tirada. Dias depois de entrarem em um gélido consultório e receberem a notícia que tanto temiam: o tumor já estava espalhado pelo corpo, não havia muito mais o que se fazer, o tratamento já não faria mais efeito. Tudo o que podiam fazer era dar uma boa qualidade de vida – ou o que restava dela. Talvez isso a prolongasse por dois meses, no máximo três. A notícia de que não havia mais nada a ser feito jamais foi contada aos filhos.
Roberto não queria tristeza nos dias que lhe restavam, então fez questão de fazer uma bela ceia no Natal e tirar muitas fotos. Uma delas, aquela que Laura olhava. Ele jamais assumira, mas tinha medo que seus filhos se esquecessem dele, por isso quis eternizar cada momento. O mesmo se repetiu no Ano Novo. Mesmo estando em uma cadeira de rodas e com uma feição visivelmente doente, ele fez questão de muitas fotos. Estas foram reveladas e guardadas em uma caixa, jamais foram expostas em porta-retratos. Jonathan e Duda gritaram alegremente a contagem regressiva para 2009, mas Roberto e Laura não. Ambos sabiam que ele jamais veria o ano de 2010 chegar. O que não esperavam é que sequer veria o mês seguinte.
Foi durante a madrugada do dia onze de janeiro que Laura, assim como em todas as outras noites, colocou a mão no peito de Roberto e não sentiu seu coração bater. Acendeu a luz e o chamou, mas ele não se moveu. O chacoalhou, e, aos gritos, tentou acordá-lo. Mas não era mais possível.
Durante todos os dias desde que receberam a notícia, Laura preparava seu psicológico para o pior. Roberto fez questão de se sentar com a esposa e conversar abertamente sobre sua morte, mas, quando ela chegou, todo o preparo de Laura foi pelo ralo. Por mais que a gente tente, ninguém está preparado para lidar com a morte.
Jonathan ouviu os gritos da mãe e correu até o quarto. Ele já tinha quase dezessete anos, sabia que o pai não estava bem, sabia a gravidade de um câncer, mas ele tinha esperanças de que ele ficaria curado. Esperanças que foram desfeitas ao vê-lo imóvel sobre a cama. Abraçou sua mãe e deixou que o choro entalado em sua garganta saísse.
Imediatamente se lembrou de sua irmã, e antes que ela acordasse com toda a gritaria e visse seu pai morto, foi até o quarto dela para dar a notícia com o pouco de calma que o restou. Mas, ao entrar, viu a menina abraçada ao cobertor, abafando seu choro com o travesseiro. Sentou-se ao lado da irmã e a abraçou.
A notícia foi dada baixinho, mas um alto grito saiu de sua garganta e ela o empurrou, se levantando em seguida e correndo até o quarto de seus pais. Logo o viu ali, deitado, parecia dormir. Procurou por sua mãe, precisava de seu colo, mas ela estava em estado de choque. Deitou ao lado do pai e segurou sua mão pela última vez. Ainda não estava fria, mas já não era quente como antes. Era como se ele não estivesse mais ali... e de fato, Roberto não estava.
Um pedaço de cada membro da família também se foi junto ao patriarca. Jonathan afogou suas mágoas no álcool e descontou sua raiva no cigarro, e assim se manteve até os dezenove anos, quando finalmente percebeu que isso não mudaria nada, já que todos os maços tragados e garrafas ingeridas apenas o prejudicaria mais, mas não traria seu pai de volta.
Duda tinha apenas quatorze anos, não entendia muito bem o que acontecia, as idas frequentes ao hospital, os remédios e mais remédios. Sabia que ele estava doente, mas acreditava que poderia se curar assim como se cura um resfriado. Não entendia como aquilo pôde acontecer com uma pessoa tão boa quanto Roberto. Questionava muitas coisas, se fechou em seu mundo, procurava maneiras de ir ao encontro de seu pai. Só iniciou a terapia quando sua mãe ouviu de sua boca que ela já não desejava mais viver. Os anos adormeceram a revolta e a tristeza, mas jamais a saudade.
Já Laura não soube o que fazer. Ele era seu companheiro há dezenove anos, se conheceram ainda adolescentes, se casaram quando ela tinha vinte e dois anos e desde então sua vida foi ao lado dele. Todos os bons e maus momentos foram ao lado do amor de sua vida.
Nos primeiros dias ela sequer levantava da cama. Dali um mês trocou todos os móveis do quarto e pintou o cômodo, pois não queria se lembrar de sua morte todas as vezes que entrasse ali. Em dois meses, passou a viver pelo trabalho. Sabia que sua família precisava dela, mas sentia um vazio todas as vezes que entrava em casa.
A falta de Roberto era diária, então encontrou no trabalho uma maneira de ocupar sua mente, e de fato conseguia, pois quanto mais se ocupava com as obras, menos pensava no seu falecido marido. Mas bastava abrir a porta do apartamento para que as lembranças voltassem com tudo. Depois de algum tempo ela passou a conviver bem com a saudade, as memórias dos anos passados lhe davam a sensação de que ele estava apenas em uma viagem e que em breve retornaria. Estas foram as maneiras que ela encontrou para superar a maior dor que já sentiu.
Laura voltou o porta-retrato no lugar e enxugou uma lágrima antes que ela pudesse cair. Olhou ao redor e decidiu sair daquele lar vazio. Precisava ver outras pessoas, deixar o sol bater diretamente em seu rosto, sentir uma brisa que não fosse o ar condicionado do carro.
Foi até seu quarto e abriu o guarda-roupas. Passeou a mão pelos cabides até um casaco que usou pela última vez quando visitou Duda, retirando do bolso uma folha de caderno dobrada. Releu o que escreveu meses antes para a filha e voltou o papel para o bolso do casaco. Revirou o armário até encontrar algo que não fosse social.
Colocou uma calça leve e estampada e uma regata branca, calçou as rasteirinhas que nem lembrava que tinha e foi até a varanda que nos últimos dois anos ficou constantemente fechada. Debruçou no beiral empoeirado e passou a observar as pessoas caminharem na rua naquele domingo preguiçoso quando ouviu seu celular tocar. Sorriu ao ver seu filho na tela.
Jonathan contou para sua mãe que o Bobiça's Delivery estava recebendo bastantes pedidos naquele primeiro mês, que Daniela voltou a ser a mesma de antes, que até mesmo seu trabalho o deixava animado, mesmo não gostando da ideia de ficar fechado em um escritório como antes. Também disse estar exausto, pois com o aumento nos pedidos, ele mal chegava do trabalho e já saía para entregar os lanches. Laura sentia orgulho do filho e não escondia isso. Ele se despediu de sua mãe, pois o horário do almoço se aproximava e logo os primeiros pedidos do dia surgiriam.
Parecia até que tinham combinado, pois assim que Jonathan desligou, Duda enviou uma mensagem perguntando se a mãe estava acordada. Laura sentia tanta falta da filha que não se contentava com mensagens, então fez uma chamada de vídeo.
"Olha só! Dona Laura, quanto tempo não te vejo sem uma camisa social!", Duda tratou de dizer antes mesmo que sua mãe pudesse cumprimentá-la. As duas passaram um bom tempo colocando a fofoca em dia – coisa que Laura adorava fazer. Arthur surgiu na tela e abriu um sorriso, exibindo os dentes de leite. Logo em seguida, pegou o celular da mão de sua mãe e saiu correndo pela casa. Duda pegou o aparelho de volta e pareceu cansada.
Contou à mãe que era mais fácil correr atrás do filho quando moravam em apenas um cômodo, mas que depois que foram para a casa de dois quartos, isso se tornou uma tarefa árdua. Ainda mais porque Steve sempre entrava na onda do menino e o incitava a fugir de Duda. Disse também que teria uma entrevista de emprego na manhã seguinte, em uma cafeteria um tanto quanto afastada de sua casa. Estava ansiosa por isso, pois seria a primeira vez que trabalharia sozinha desde que chegou lá, sem fotografar com Steve ou sem ser babá para Elisa.
Laura se animou pela filha e mais uma vez questionou se ela e Steve não tinham um caso, mesmo tendo a certeza que não – era apenas uma esperança. Duda já estava cansada de negar, então só revirou os olhos, mas sua mãe insistia que amigos não moram juntos tanto tempo. "Mãe, por Deus, nós moramos juntos porque 70% do aluguel quem paga é ele! E outra, ao menos uma vez por semana tem alguma mulher nova chamando meu filho de sobrinho", concluiu.
As duas continuaram conversando por muito tempo, vez ou outra o menino pegava o celular e abraçava sua avó pela tela. Esses momentos com seus filhos, mesmo que longe, faziam Laura se sentir acolhida. Sentia como se seu lar estivesse cheio novamente. Podia até mesmo fantasiar seus filhos ali em um fim de semana normal, seus muitos netos correndo pela casa, Roberto no sofá... Mas bastava desligar o telefone para voltar à realidade: agora era só ela. Estourou pipoca no micro-ondas, tirou a roupa e vestiu seu pijama novamente. Se jogou no sofá e zapeou os canais da TV a cabo pelo resto do dia. E assim, terminava mais um fim de semana. Tudo igual.
***
Laura acordou mais cedo que de costume na segunda-feira. Às cinco e meia da manhã já calçava seus tênis de caminhada e alongava seu corpo para sair. Normalmente acordaria às sete e meia, mas quis iniciar a semana com um hábito que abandonara há alguns anos. Adorava caminhar, mas dedicava tanto tempo ao trabalho que acabou deixando os tênis no fundo do armário e deu lugar aos sapatos sociais. Mas naquela segunda-feira não.
Apertou o botão do elevador e desceu até a portaria. Mais uma alongada antes de sair. Fechou o portão e saiu para a primeira volta. As ruas ainda escuras já estavam movimentadas, os pontos de ônibus, cheios. A cidade que nunca dorme; a cidade que acorda cedo. Depois de dois quilômetros, parou em uma padaria e pediu um pingado e um pão na chapa. No início ela caminhava na intenção de emagrecer, mas depois de um tempo isso deixou de ser importante. Passou a caminhar porque gostava, sentia-se mais leve para encarar o dia.
Terminou seu café da manhã e partiu para seu caminho de volta. O vento gélido da manhã contra as bochechas a fizeram acelerar o passo. A poucas quadras de casa, uma sensação de indigestão a fez se arrepender de andar tão rápido, mas mesmo diminuindo o ritmo, o cansaço aumentou e uma tontura repentina a fez parar e apoiar as mãos nos joelhos. Laura se sentou na calçada e tentou respirar fundo, mas a forte dor em seu peito não permitiu. Estendeu a mão até uma moça uniformizada que passava em sua frente e em um sussurro pediu ajuda, rezando para que não fosse tarde demais.
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Olá meus amores!
Olha eu aparecendo do nada mais uma vez.
Pela primeira vez vimos as coisas pela perspectiva da Laura... O que acharam?
Tenham uma boa semana, não esqueçam do votinho maroto e dos comentários que amo!
Beijinhos e até qualquer hora ♥
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