35 - Não vou. Não posso. Não quero.
Dezoito de novembro. Duda acordou cedo e passou pelos cômodos ainda escuros. Observou alguns detalhes que havia se esquecido, como o porta-retrato de vidro trincado na prateleira com a foto da formatura de Jonathan. O lado direito do varão da cortina da sala, poucos centímetros mais alto que o esquerdo, mas o suficiente para incomodar sua mãe – que mesmo assim, nunca arrumou. O espelho do banheiro com algumas pequenas manchas do tempo, mas que também não incomodavam. Voltou para seu quarto e sentou-se na cama. Quanta coisa viveu naquele cômodo de seis metros quadrados. Se lembrou de todas as vezes que seus pais se reuniam para montar um ninho de cobertores no pé da janela para o coelho da páscoa deixar seus ovos. Ou então, quando chegava o Natal e Jonathan entrava correndo no quarto, gritando que o Papai Noel havia passado e deixado presentes. Se agarrou ao seu colchão. Não sabia como seria a semana seguinte. E se na nova casa a cama fosse desconfortável? E se precisasse dividir o quarto com alguém desconhecido? Como seria o seu aniversário? O Natal, o Ano Novo? Droga... primeira vez que passaria por isso longe da sua família. Bom, longe de qualquer pessoa que conhecesse, na verdade.
As horas passavam e ela terminava de arrumar os últimos detalhes antes de ir para o aeroporto. Jonathan a ajudava o quanto podia, queria curtir a companhia da irmã antes dos meses que os separariam. "Eu tenho uma surpresa pra você", disse antes de correr até a cozinha e voltar com um saco de papel.
– Você não pensou que ia passar tanto tempo fora e não ia se despedir da coxinha, né?!
– Você não existe! – sorri.
Jonathan devorou a coxinha, já Duda saboreou lentamente cada pedacinho. Até mesmo Laura, que não era muito fã de frituras, experimentou um pedaço. O fato de sua mãe ter deixado de trabalhar para passar o dia com ela significava muito.
***
O microfone chiado anunciava a última chamada para o embarque. Por mais certeza que tivesse, Duda tentou atrasar este momento o quanto pôde. Laura abraçou a filha e começou a chorar. "Mãe, fica tranquila, eu não morri, já já eu estou de volta", a consolou. Jonathan abraçou a irmã e segurou as lágrimas. Duda também precisou segurar. "Vai lá, maninha. Vai se redescobrir. Independentemente do que acontecer, você sabe que eu e a mãe estaremos do seu lado". Ela assentiu com a cabeça e puxou os dois para um abraço. "Jhonny, cuida da mãe. Mãe, cuida do Jhonny", sorriu. Foi até o embarque e entregou sua passagem. Deu uma última olhada para trás e acenou. Continuou seu caminho rezando para estar fazendo a coisa certa.
Duda encaixou sua almofada de pescoço no lugar e se acomodou em sua poltrona. Olhou pela janela e, apesar de toda a insegurança, fantasiou sua vida dali pra frente. O avião decolaria logo e para disfarçar todo o barulho das turbinas que tanto a intimidava, procurou seus fones de ouvido na bolsa. Assistiu o avião tomar o céu com certo medo.
Todas as horas de voo não foram as mais tranquilas. Duda mal conseguia dormir, a ansiedade a fez correr para o banheiro para vomitar. O fato de estar trancada em um ambiente fechado, sem ninguém conhecido, a Deus sabe quantos mil pés de altura e 800 km/h por tanto tempo também não ajudavam muito. Seus músculos falharam ao se levantar para desembarcar, dando um pequeno choque nos joelhos. Todo o frio que ela achou que seus casacos suportariam, a rotina para entrar no país e todas as perguntas do consulado americano também atacaram sua gastrite.
Depois de muitas horas passando muito frio e estresse, finalmente viu seu nome em um pedaço de sulfite nas mãos de duas crianças muito bem agasalhadas e se apressou até elas. "Meu Deus, Maria Eduarda, você está uma mulher!". Era Elisa, a amiga de Laura com quem moraria. Reconheceu Olivia e Noah das tantas fotos que recebeu. Foram conversando por todo o caminho. Chegaram na casa e Duda se sentiu acolhida pelo calor agradável que fazia lá dentro.
– Vem, vou te mostrar seu quarto! – Olivia a puxou pela mão.
Duda entrou no quarto e se surpreendeu com o tamanho. Não era enorme, mas para quem cresceu em um quarto minúsculo, aquilo era maravilhoso. "Eu tenho um closet!", comemorou sozinha. Deixou as malas de lado e desceu as escadas para conhecer melhor a família que a abrigou.
Elisa era um pouco mais nova que sua mãe. Se mudou para Boston há onze anos, quando aceitou uma proposta de emprego. Era divorciada há três anos. Olivia tinha oito anos e era uma menina extrovertida e brincalhona, falava pelos cotovelos e não parava quieta. Noah tinha quatro anos, era uma criança tímida, mas amorosa. Um tanto quanto mimado também. A casa era muito maior que seu apartamento, mas não chegava nem perto das maiores casas do bairro. Elisa passou todos os horários das crianças, todas as regras da casa. Duda ouvia atentamente, tentando memorizar tudo. Não seria fácil, mas tudo bem, ninguém disse que seria.
Duda subiu para o quarto e começou a pendurar suas roupas. Se arrependeu no mesmo instante. Não tinha muitas roupas, mas o suficiente para deixá-la irritada com a bagunça. Desistiu. Pegou o celular para avisar que chegou. Droga, precisaria de um chip novo, se esqueceu deste pequeno detalhe.
Se conectou ao Wi-Fi e várias mensagens de Jonathan e Laura chegaram. Avisou que estava bem, já estava com Elisa e que o lugar era incrível. Virou a bolsa na cama para procurar o carregador do celular e achou um papel que não se lembrava. Desdobrou e reconheceu a letra de Diego.
"Nós estamos cheios de nós"
Ela não entendeu muito bem, mas uma leve tranquilidade aqueceu seu corpo, como se aquele pedaço de papel fosse um velho conhecido que a fazia companhia. Guardou o pequeno bilhete na carteira como um tesouro.
***
Vinte de novembro. Diego e Nicole acertavam os últimos detalhes da nova casa. Ela guardava todos os presentes no armário que Diego tanto enrolou para montar – montou no dia anterior – e ele fazia a limpeza pesada. Estava exausto, foi até a cozinha tomar um copo d'água e viu Nicole guardando as poucas coisas do bebê. "Licença", pediu antes de tirar um cabide do guarda-roupa. Pegou aquele macacão branco minúsculo e se imaginou com seu bebê no colo. Não conseguia visualizá-lo tão pequeno quanto aquele pedaço de pano. Sentiu medo. "Fica tranquilo, vai dar tudo certo", Nicole apoiou a mão em seu ombro, notando claramente o pânico estampado em seu rosto. "Tomara", respondeu, guardando o cabide de volta.
***
Vinte e dois de novembro. Jonathan e Laura chegaram no sítio depois de todas as horas na estrada. Maria e Pedro os receberam de mesa farta – assim como todas as vezes – e perguntavam notícias de Duda. Jonathan contou com a mesma animação da irmã que ela estava adorando o lugar, apesar da temperatura beirando o negativo. "Deus me livre, menino. Um friozinho a mais que faz aqui sua tia já fica toda se espirrando, ocê imagine um lugar debaixo do zero!", Pedro riu. "Bobiça!", Maria deu um tapinha nas costas do marido.
Jonathan deixou sua mãe conversando com seus tios e tentou ligar para Daniela. Depois de muita conversa, decidiram que se encontrariam apenas no casamento. O fusca de Dani não estava em seus melhores dias para pegar a estrada e Jonathan não conhecia o caminho, se perderia facilmente. "Já estamos esperando há tanto tempo, o que é um dia?".
Diego chegou no sítio com Mônica e Gabriela para almoçar e encontrou Jonathan deitado na rede. Engoliu seco, não sabia como agir, queria perguntar de Duda, mas não sabia se deveria. E se Duda tivesse contado para ele do último encontro dos dois? Estava envergonhado sem saber o porquê. Jonathan, ao contrário, parecia estar bem à vontade.
– E aí, cara! – o abraça.
– Oi... oi Jonathan! – fica sem graça.
– Beleza?
– Tudo indo, né...
– Amanhã vai ser difícil, né?
– Nem me fale. Quase tive um treco quando fui buscar meu terno.
– Eu imagino.
Diego ficou em silêncio, esperando que Jonathan lesse sua mente e respondesse todas as perguntas que ele queria fazer. Por sorte – e por anos de convivência com Duda, que fazia a mesma coisa – Jonathan tinha esse superpoder.
– Vai, me diz o que você quer dizer. Tá na sua cara que você quer perguntar dela.
– Ela está bem? – se senta de frente para ele e rói as unhas.
– Sim. Passando um pouco de frio até se acostumar, mas tá bem. Só o inglês que ela dá umas travadas às vezes, mas a menininha que ela cuida está ajudando bastante.
– Ela sabe que vocês vieram?
– Sabe. Não achou ruim nem nada. Sabe que a gente não tem nada a ver com o rolo de vocês dois.
– Ela falou alguma coisa de mim?
– Não.
Ao mesmo tempo que sentiu como se um balde de água fria virasse sobre sua cabeça, se sentiu aliviado por saber que ela guardou segredo quanto ao fim de semana dos dois.
– Desculpa, Diego. Eu tô sendo totalmente sincero com você.
– Eu sei. Eu já imaginava.
– Você não tem noção de como foi difícil voltar pra casa sem ela aquele dia...
– Eu tenho.
***
Duda enviou uma mensagem para Jonathan perguntando se chegaram bem, mas ele demorava muito para responder. Deixou o celular em casa e saiu com Elisa para comprar roupas de inverno. Não fez uma supercompra, mas pegou pijamas realmente quentes e peças básicas e coringas que seriam muito úteis naquele inverno rigoroso. Saíram da loja e foram até uma cafeteria na Boylston Street. Pediram um chocolate quente e se sentaram nos fundos. Duda estava maravilhada com o lugar que mais parecia cenário de filme.
– Você sente falta do Brasil?
– Eu sinto falta da minha família, minhas irmãs, meus sobrinhos... Mas de morar lá? De jeito nenhum! Por quê?
– Não sei, é que faz tanto tempo que você está aqui que me bateu essa curiosidade. Eu já estou até com saudade da minha mãe brigando porque eu não lavei a louça ou algo do tipo – ri.
– Assim que a gente chega aqui dá vontade de ir embora no dia seguinte. E no outro dia, e no outro... O começo é solitário e você passa o tempo todo pensando na sua família, nos seus amigos e na vida que você tinha, mas logo isso passa e você vê tudo o que esse lugar tem a oferecer.
– Espero que não demore...
– Amanhã tem o aniversário de um amiguinho da Olivia. Vem com a gente, é uma chance para você conhecer mais pessoas além de nós e se divertir um pouco.
Duda ponderou, mas acabou aceitando. Tudo o que queria era se distrair daquele vinte e três de novembro. Se desconectar da imagem de Diego dizendo "sim" diante de todos. Virou o que restava de seu chocolate e seguiu com Elisa para a última loja. A temporada de neve se aproximava e ela não queria congelar os dedos em uma bota que só era bonita, mas não era térmica.
Chegaram em casa com o almoço comprado e se sentaram à mesa para comer. Noah contava que a vizinha que cuidou deles nas últimas horas deixou os dois tomarem café assistindo desenho e pedia para Duda fazer o mesmo. O menino falava muito rápido e misturava português e inglês na mesma frase, deixando Duda ainda mais confusa.
Terminaram a refeição e ela subiu com suas sacolas para o quarto. Pendurou os casacos pesados nos cabides e guardou de volta na mala as poucas roupas de calor que havia levado – já tinha a certeza de que não usaria nada daquilo tão cedo. Pegou seu celular e finalmente recebeu a resposta de Jonathan.
– Chegamos sim. Estamos no sítio.
– O tio e a tia estão bem?
– Sim.
"Não vou perguntar". "Não posso perguntar". "Não quero perguntar".
– O Diego está aí?
– Sim haha
– Por que a risada?!
– Vocês são iguais, meu Deus!
– Ele perguntou de mim?
– Adivinha.
"Não vou ficar feliz por isso". "Não posso ficar feliz por isso". "Não quero ficar feliz por isso". "Droga, já estou sorrindo por isso".
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Boa noite meus amô!
Me desculpem pelo horário que estou postando hoje, o dia foi cheio, mas não me esqueci rs
E aí, o que acharam do capítulo?
O temido casamento está chegando...
Deixa aquele votinho e os comentários incríveis ♥
Vejo vocês na segunda que vem. Beijinhos! ♥
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