30 - Uma neura de cada vez

          Diego acordou atrasado para trabalhar, levantou num pulo e enfiou a primeira roupa que encontrou. Mônica tomava café e Gabriela fazia sua vitamina matinal. Sentou-se e virou a garrafa de café no copo, sujando a toalha de mesa. Foi fuzilado pelos olhos de sua mãe.


– Não come correndo, tá indo tirar seu pai da forca? – Mônica repreende.

– Você sabe que eu deixaria ele lá.

– A propósito, você precisa convidá-lo.

– Não quero.

– Eu também não, mas é preciso, infelizmente.

– Os convites já foram impressos contados.

– Eu mandei fazer mais alguns, inclusive mandei pra Laura. Como que você me esquece deles?!


          Gabriela derrubou a tampa do liquidificador e encarou o irmão, que travou a xícara no meio do caminho, já não sabia se estava a levando à boca ou voltando à mesa. Droga, não era para convidá-los.


– Mas mãe, eles não estavam na lista.

– Uai moleque, você é um grude só com eles e não quer que eles venham? Pensei até que seriam seus padrinhos.

– Tem razão, mãe. Obrigado por enviar o convite do meu casamento por mim.


          Diego virou o pouco que restava de seu café, pegou seu capacete e saiu batendo a porta, sequer se despediu. Mônica olhou para Gabriela sem entender, que deu de ombros, como se também não soubesse e continuou limpando a bagunça que fez.

          A primeira aula acabou. Diego foi até a cozinha, pegou seu café e se sentou na cadeira mais afastada da falação dos professores das outras turmas. Desbloqueou seu celular e foi até a conversa de Duda. Não conseguia pensar em outra coisa desde que chegou na escola. Conseguia imaginar com perfeição a reação de Duda ao receber o convite, e isso o embrulhava o estômago. Imaginou quantas palavras diferentes ela foi capaz de xingá-lo. Suas últimas palavras para ela foram "Vai ficar tudo bem", e, de repente, as coisas não estavam nem perto de bem.

          Chegou a procurar seu número, mas não sabia se ela o atenderia. Enviou uma mensagem. "Queria falar com você". Tomou dois copos de café e roeu todas as unhas da mão esquerda enquanto encarava a tela do celular. No segundo em que viu "online" escrito embaixo do nome dela, bloqueou a tela. Maior que o medo da resposta, era o medo de não tê-la. Seu celular vibrou e todo o seu interior também.


– Pode falar.

– Queria me desculpar.

– Pelo quê?

– Pelo convite.

– Tá.

– Não fui eu que mandei. Vocês não estavam na minha lista. Minha mãe se sentiu no direito de mandar.

– Ok.

– Eu sei que vocês não vão vir, mas, ainda assim, me desculpa.

– Tá bom.

– Tão monossilábica.

– O que você quer que eu diga?

– Eu não sei. Só me diz algo. Me xinga, sei lá. Só me diz alguma coisa.

– Não tenho muito mais pra te dizer. Eu tô tentando te apagar.

– Não diz isso...

– Você pediu para que eu dissesse algo. Você quer que eu diga mais o quê? Que eu chorei quando vi o convite enfeitando a mesa? Ou que eu tô indo embora e deixando tudo pra trás, incluindo você?

– Como assim?

– É só isso. Insistir na gente é dar murro em ponta de faca.

– Pra onde você vai?


          Diego continuou encarando aquela conversa por uma, duas horas. As unhas da mão direita também foram embora. Voltou os olhos para o relógio na parede e precisou desligar-se. Sua próxima aula começaria em quinze minutos e ele precisava respirar fundo, se recompor. Ser o professor Diego pelas próximas três horas. Não pensar em Duda nas próximas três horas.

          O dia terminou, Diego chegou em casa carregando uma tonelada nas costas. Se jogou na cama e voltou a procurar a conversa de Duda. Voltou para o primeiro Oi. Releu quase um ano de mensagens e, quanto mais recente, mais triste ficava. "Pra onde você vai?". Fim. Nada mais que isso.

***

          O sábado amanheceu com clima de ressaca, por mais que ninguém tivesse saído na noite anterior. Gabriela se arrumou e foi acordar Diego, que tentava se atrasar o máximo que pudesse. Ele se trocou contra a vontade, pegou o envelope em cima da mesa e revirou os olhos ao ouvir o "boa sorte" de sua mãe. Entraram no carro em silêncio e seguiram até um bairro nobre da cidade vizinha.

          Assim que estacionaram, Diego e Gabriela sentiram náuseas. Aquela maldita casa. Não iam naquele lugar há uns cinco anos. Desceram do carro e Diego segurou a mão de sua irmã, tão tensa quanto ele. Tocaram a campainha, mas a vontade era sair correndo. Diego foi direto ao ponto antes mesmo que aquela mulher loira que abriu a porta pudesse se surpreender ou até mesmo dizer qualquer coisa.


– Meu pai tá aí?

– Ah, oi... oi Diego. Ele está sim. Pode entrar.

– Prefiro esperar aqui.


          A porta ficou aberta e os dois parados do lado de fora. Observavam o interior e tudo estava diferente da última vez que estiveram ali. As mãos dadas suavam. Gabi abaixou os olhos quando viu a sombra masculina se aproximando. Diego não se intimidou e o encarou diretamente nos olhos.


– Que surpresa! O que traz os meus filhos até aqui?! – sorri.

– Toma. Só vim trazer isso, já estamos indo embora.


          Diego esticou o convite e se virou para ir embora, mas Gabriela segurou sua mão. A feição de Felipe mudou no mesmo instante.


– Preciso dos meus óculos pra ler. Por favor, entrem, Vou pedir pra Sueli passar um café pra gente.


          Diego hesitou, mas estava nítido nos olhos de Gabriela que ela queria entrar, conversar, estar perto de seu pai mais uma vez. Talvez até perguntar a razão pela qual ele esqueceu dos filhos. Assentiu com a cabeça e seguiu porta adentro. Felipe foi atrás de seus óculos e pediu para que se sentassem.

          Voltou para a sala e eles continuavam de pé. "Vocês não vão se sentar?", encarou por cima dos óculos. Gabriela foi até o sofá e Diego se ajeitou ao lado dela. Felipe abriu o envelope e leu em silêncio. Colocou na mesa de centro e se voltou aos filhos.


Uai sô, mas que bela novidade, filho. Não sabia nem que você namorava.

– Você não sabe muito da nossa vida.

– Me desculpa, é que é tudo tão corrido por aqui... Eu tento ser presente...

– Não, você não tenta.

– Então me deixa ser pelo menos agora. Como é o nome da sua noiva? Faz tempo que estão juntos?

– Você acabou de ler o convite e já não lembra o nome da minha noiva. – ri inconformado.

– Diego! – Gabi repreende.

– Tá bom... – suspira – O nome dela é Nicole.

– Eu estou tentando, Diego. Por favor, eu estou tentando.

– Tudo bem, vamos brincar de ser família. O que mais o senhor quer saber?

– Faz tempo que estão juntos?

– Não.

– Como se conheceram?

– Na formatura da Gabi. Aquela que você não foi porque foi no mesmo dia da formatura do filho da sua esposa.

– Diego, você tome tento que eu ainda sou seu pai, me respeite.

– Vou te respeitar da mesma maneira que você respeitou a minha mãe.

– Eu abri a porta da minha casa pra vocês. A Sueli abriu a porta da nossa casa pra vocês. Você não pode entrar aqui pra me desrespeitar.

– Eu nem queria estar aqui, pra começar.


"CHEGA!", Gabriela grita. Os dois ficam em silêncio e a encaram.


– Abrir a porta é sua obrigação, nós somos seus filhos! Você teve dezenove anos pra me conhecer, mas você decidiu trocar a sua família por uma mulher desconhecida. Adotou os filhos dela e se esqueceu dos seus. Eu me perguntava todos os dias se meu pai ainda me amava, ficava garrada no telefone esperando por uma ligação que fosse.

– Uai mas é claro que eu te amo, filha...

– Espera que eu não terminei. Na hora que chamaram os pais para dançar valsa com as filhas na formatura, eu saí injuriada e me escondi pra chorar. Desde que você largou a gente, você achou que visita uma vez por mês era ser pai, mas você só criou um muro. E eu pelejo um bocado pra me relacionar bem com as pessoas, porque eu acho que a qualquer momento elas podem me abandonar, assim como fez.

– Eu não sabia... não sabia que vocês se sentiam assim...

– Eu te disse, você nunca tentou. – Diego interrompe.

– Não, Diego, nem vem. Vocês falaram até agora e eu escutei calada. Você encasquetou que queria que eu viesse com você porque sabe que não teria coragem sozinho. Você veio convidar o pai pro seu casamento só porque a mãe mandou, mas já chegou com as pedras tudo na mão. Eu queria fingir por alguns minutos que estava tudo bem, mas o tempo todo você ficou com faniquito, espezinhando ele igual criança. Pra mim já chega e eu quero ir embora daqui.


          Gabriela se levantou e saiu. Foi até o carro e se sentou no capô para esperar seu irmão. Diego se levantou em seguida, atônito, e se dirigiu à porta. Voltou ao ouvir Felipe chamar seu nome. Encostou no batente da porta e encarou o pai. Pela primeira vez desde que chegou, reparou bem nele. Ele já não estava tão novo quanto se lembrava, mas nem de longe estava velho. Seu cabelo tinha mais fios brancos do que a última vez que se viram, mas, ainda assim, eram poucos. Já a barba estava repleta deles. Os olhos azuis agora pareciam mais opacos e escuros. Já não se pareciam mais com os de Diego. O silêncio fez com que os ânimos se acalmassem.


– Filho, você só tem vinte e dois anos... Não é um pouco novo para se casar?

– Você e a minha mãe se casaram com vinte e cinco.

– Mas nós estávamos juntos desde os dezoito.

– E ainda assim se separaram.

– Diego, você já é adulto, aja como um. Por que você vai se casar?

– Porque eu não quero ser você.

– Como assim?

– A Nicole está grávida e eu não vou fazer a mesma palhaçada que você.

– Eu vou ser avô? – seus olhos ficam marejados.

– Sim.


          Mesmo contra a vontade de Diego, Felipe o abraça. Com o tempo, o abraço foi completo pelos braços incômodos do filho. Não, Diego não perdoou o pai, e nem perdoaria nas próximas horas ou semanas, não sabia nem mesmo se nos próximos meses, mas permitiu uma trégua para poder abraçá-lo pelo menos uma vez depois de tantos anos.


– Você quer a minha presença no seu casamento? Mesmo sabendo que a Sueli estará ao meu lado e não a sua mãe?

– Tem dois convites aí, um é seu e o outro de quem você quiser levar. Não vou achar ruim se você for e nem se decidir não ir. Eu só não te quero no altar, só quero quem me criou ao meu lado.

– Eu sinto muito por tudo o que eu causei na vida de vocês.

– E deveria sentir.


          Diego saiu sem se despedir, só agradeceu Sueli por recebê-los. Ele e Gabriela entraram no carro e olharam pela última vez para Felipe parado na porta. "Me desculpa. Hoje era a chance de vocês se aproximarem e eu estraguei tudo", disse, pousando sua mão sobre a da irmã. "Tudo bem. Eu pude dizer tudo o que eu sempre quis", Gabi respondeu. Ficaram em silêncio até chegar em casa.

          Bastou entrarem para Mônica fazer mil perguntas. Nenhuma respondida, já que os filhos não queriam nem lembrar daquela manhã desastrosa. Gabi se trancou no quarto e Diego se jogou no sofá, ainda pensativo. E se estivesse se casando para não ser como o pai, mas se tornasse exatamente como ele? Seus pais se amavam e ainda assim, acabou do jeito que acabou. Como ficaria seu filho se, por alguma razão, ele e Nicole se separassem? "Uma neura de cada vez", repetiu em voz alta. O problema é que todas as angústias aconteciam ao mesmo tempo e ele já não sabia por qual caminho seguir. 

__________________________________________

Bom dia, amores! Como estão?!
O que acharam do capítulo?
Este é um dos meus favoritos, porque tem tanta mágoa acontecendo que eu nem sei o que sentir rs

Votem e comentem bastante!
Vejo vocês na segunda! ♥

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top