1 - Naquela Mesa

 Cá estou, acordada às 7:30 da manhã em pleno domingo, sem perspectiva nenhuma. Não preciso dizer que o dia – que acabou de começar – está um tédio né? Sinto falta da época do MSN. Tenho certeza que se eu entrasse agora, teria, pelo menos, umas dez pessoas online porque perderam o sono ou porque ainda nem foram dormir. Eu acho que essa saudade do passado deve ser uma síndrome, sei lá. Já vi algum vídeo falando sobre como queríamos voltar ao passado, mas se voltássemos, teria graça por um, dois dias... no máximo um mês. Mas enfim, se eu ficar nesse assunto, será um looping eterno. (mas que eu sinto falta do MSN, ah, eu sinto...)

Enfim, descobri ontem, durante o jantar, que viajarei com a minha família (ou seja, minha mãe e o Jonathan). Sabe aquele lugar onde Judas perdeu as meias (porque as botas ele perdeu ainda antes)? O interior do interior de Minas Gerais. Minha mãe marcou algumas reuniões com uma construtora e quer que a gente vá junto. Para não gastar com estadia e até mesmo para matar a saudade, ficaremos no sítio dos meus tios-avós. Tenho minhas coisas aqui em São Paulo, sinceramente não queria ir, mas serão poucos dias e faz uns sete, oito anos que não vamos lá, além de que será a primeira vez que voltaremos depois da morte do meu pai, e, para ser sincera, não quero que minha mãe passe por isso sozinha. Meu irmão não se importou muito, inclusive gostou, vai entrar de férias essa semana e ele adora essas coisas de contato com a natureza e tal. Diz que é muito bom para lavar a alma nas cachoeiras da vida.


– O que você está fazendo aí?

– Oi Jhonny. Nem te vi entrar. Estou publicando no meu blog.

– Nossa Du, quem usa blog hoje em dia? – ri sarcasticamente

– As mesmas pessoas que sentem falta do MSN – sorri

– Mas você posta mesmo sabendo que quase ninguém lê?

– Mas eu leio. Às vezes eu sinto como se fosse um diário pra mim, já sou grandinha, não pega bem ter um diário nessa altura do campeonato. E eu só posto quando sinto que preciso desabafar algo, a terapeuta disse que seria bom pra mim.

– Você tá precisando desabafar? Você sabe que se precisar, eu estou aqui. Posso ser seu blog. – sorri e se inclina para abraçá-la, que está sentada na cama com o notebook no colo.

– Eu só não sei se estou pronta para voltar no sítio depois de tantos anos e tantas lembranças – responde com a voz abafada pelo abraço.

– Fica tranquila, a gente tem que ficar firme para apoiar a dona Laura.

– Acho engraçado você chamar a mãe pelo nome – sorri.

– E é por isso que eu chamo! Faz ela rir. Enfim, eu vou deixar você aqui, com o seu "blog" – sai fazendo aspas no ar.


O dia passou e tudo foi igual a todos os dias. Cada um no seu canto, Laura organizando suas coisas para a viagem, Duda lendo um livro que pegou emprestado de sua amiga e Jonathan assistindo a seus filmes.

A viagem seria assim que ele entrasse de férias, dali a dois dias. Jonathan fazia administração e conseguiu um estágio na sua área. Trancou o curso porque não era o que queria, mas o escritório gostava dele e decidiu efetivá-lo. 

Quando seu pai morreu, Duda deixou de prestar atenção nas aulas e repetiu de ano. Se formou no ensino médio no ano anterior, um mês depois de completar dezenove anos e não quis tentar um vestibular de imediato. Dizia que decidir uma faculdade é o mesmo que traçar seu futuro, que não dá pra ser decidido assim, tão nova e em tão poucos meses que separam o fim das aulas do início do ano letivo, então quis se dar um ano livre para descobrir o que realmente gostava. Trabalhou por um tempo em uma loja do bairro, mas estava desempregada. 

Laura não cobrava a faculdade de nenhum dos dois, já passou pelo mesmo até decidir sua profissão. Se tornou Engenheira Civil.

***

Chegou o dia da viagem. Jonathan colocou os fones de ouvido e se espremeu no pequeno espaço da poltrona do ônibus. Duda colocou a almofada de pescoço e se acomodou no ombro de Jonathan. Duas paradas e onze horas depois eles chegaram na cidade de destino. Mônica, a prima de Laura, os esperavam para levá-los ao sítio.


– Laura! Quanto tempo!

– Mônica, minha querida! Como você está?

– A gente vai levando a vida né? Nossa! Como seus meninos cresceram! Olha a Maria Eduarda, está uma moça! Faz o quê? Uns sete anos que não nos vemos? O Roberto ainda era vivo e...

– Sim tia, ele era vivo, ele veio com a gente e faz só cinco anos que ele não está mais aqui – Duda interrompe.

– Ah, me desculpe... Não... Não foi minha intenção.


Duda assentiu com a cabeça e sorriu sem graça, sua grosseria também foi um tanto quanto desnecessária. Todos seguiram para o carro, para mais uma viagem de uma hora até o sítio.

O sítio era bem simples, mas muito aconchegante. A tia Maria e o tio Pedro viviam por aquele lugar, construíram sua história ali, tinham muito orgulho de tudo aquilo. Tudo começou com três cômodos, mas 55 anos depois se tornou uma enorme casa. Só de quartos eram sete. Parece muito, mas quando houve a Bodas de Ouro faltou quarto para os familiares que vieram para a festa. A família de Laura não compareceu, pois dias antes Roberto havia falecido.

Chegaram e cumprimentaram seus tios-avós, Maria e Pedro, que os receberam com a mesa farta. A mesa era enorme, de um lado era um banco e do outro, várias cadeiras diferentes. A toalha de mesa era estampada com vaquinhas e em cima da mesa havia pão caseiro, biscoito de polvilho, queijo fresco, pão de queijo, broa de milho, leite, sequilho... O cheiro do café inundava a cozinha de chão de vermelhão e fogão a lenha.


– Meu Deus tia, a senhora fez café para um batalhão! - Jonathan observava a mesa maravilhado.

– Uai, imagina meu filho, isso é pouco ainda. Espera só seus primos acordarem que isso tudo vai embora rapidinho. – ria ao abraçar o rapaz muito mais alto que ela.

– Boa ideia mãe, vou acordar aqueles dois. Onde já se viu, ficar dormindo enquanto temos visita?


Todos tomavam café e conversavam. Mônica voltou para a cozinha com Gabriela, que soltou um "bom dia" durante um bocejo enquanto acenava para todos e Diego, que cambaleava de sono enquanto cumprimentava um a um. Quando foi cumprimentar Duda, se desequilibrou e acidentalmente deu uma cabeçada em sua boca.


– Me desculpa, por favor! Foi sem querer, eu tropecei no pé da cadeira e... – fica sem graça.

– Fica tranquilo, acidentes acontecem, não foi nada.


Duda sorriu, apesar da dor latejante no lábio inferior e o leve gosto de sangue na boca. Meio desconsertado, Diego se sentou à mesa para tomar café com os demais. Gabriela já estava sentada ouvindo um sermão da sua mãe, que estava brava por ela ter chegado tão tarde. Alguns pães de queijo depois, Diego convidou os primos para irem até a piscina aproveitar o sol da manhã, que não precisaram pensar duas vezes antes de aceitar. Estavam jogando vôlei quando Diego se distraiu e Duda acertou a bola em seu rosto.


– Ai meu Deus, me desculpa Diego! Eu fui jogar pra você mas você não pegou, me desculpa!

– Está tudo bem, nem tá doendo tanto – Diego respondeu enquanto sentava na borda da piscina.

– Seu rosto está muito vermelho, essa bola é pesada, me desculpa. – Duda se aproximou para olhar mais de perto enquanto os outros continuavam o jogo.

– Fica tranquila, tá tudo bem... Eu percebi que você quis se vingar – ri.

– Me vingar de quê? Tá doido? – se sentou na borda ao lado dele.

– Da cabeçada ali na cozinha, quando te cumprimentei.

– Até parece né? Eu disse, não foi nada, só um cortinho bobo, esquece isso.

– Estamos quites então, porque também não foi nada – sorri.

***

O dia passou rapidamente, os quatro passaram a manhã na piscina, ora tomando sol, ora jogando bola ou curtindo a água. Como estavam muito cansados da viagem, dormiram após o almoço e só acordaram para o jantar. Depois de comerem a maravilhosa comida da tia Maria, decidiram jogar baralho. Laura e Mônica faziam questão de que todos ficassem bem próximos para se conhecerem melhor.


– Nossa, faz muito tempo que eu não me divirto assim! – Mônica diz enquanto distribui as cartas.

– É mesmo, lembro da última vez que estive aqui, que dia maravilhoso... Nossos filhos eram todos pequenos, ficavam lá fora brincando de esconde-esconde e quando voltavam o Roberto ficava doido porque eles se escondiam dentro do carro, deixavam tudo sujo de terra. – Laura encarava o vazio, como se revivesse a cena.

– Ele era maravilhoso né? – Mônica reforça.

– Sim, era incrível. A gente nem imaginava o que estava por vir. – Laura abaixa a cabeça.


Duda não conseguiu terminar de ouvir, se levantou e foi para o quarto com os olhos cheios de lágrima. Jonathan foi atrás e se sentou ao lado dela, fazendo cafuné.


– Duda, o que aconteceu?

– Eu não aguento mais, tudo aqui me lembra o pai, tá tudo muito difícil, mas ela não está nem aí, ela fala como se ele estivesse só viajando e fosse chegar amanhã.

– Du, a mãe sente muito a falta dele. Eu sinto muito a falta dele... Mas a gente tem que continuar. Ele ia querer isso.

– A gente não sabe o que ele ia querer porque ele morreu, ele não pode dizer mais o que ele quer. Ele foi arrancado de nós! – respondeu em lágrimas.

– Mas meu amor, você tem que entender que...

– Eu te amo, você sabe, mas por favor, me deixa sozinha.


Jonathan assentiu, fechou a porta e seguiu para a cozinha, sabia que não adiantaria insistir. Duda continuou sozinha, olhando para o nada por um bom tempo, quando a porta se abriu novamente. Era Diego. Ele não acendeu a luz, iluminando o quarto somente com a claridade do corredor.


– Ei, como você está?

– Tentando digerir isso aqui. – responde olhando em volta do quarto.

– Eu não entendi o que aconteceu com você, estávamos nos divertindo. O Jonathan também não quis falar nada...

– Só é difícil pra mim. Voltar aqui depois de tanto tempo e tantas lembranças.

– Faz um tempo já né?

– Cinco anos. Apenas cinco anos.

– Tenta esquecer isso, já passou...

– Esquecer?! A última coisa que eu quero é esquecer o meu pai! Você me diz pra esquecer porque o seu pai tá aí, vivinho, se você quiser é só ligar pra ele e dizer "papai, quero te ver" que ele logo aparece pra você! Deixa eu te contar uma coisa, Diego: eu NUNCA mais vou ver o meu pai, entende? Eu não tenho essa facilidade que você tem! – chorava de soluçar.

– Eduarda, calma, eu não quis dizer isso... Disse pra deixar a tristeza de lado, você tem a sua mãe e...

– Ah, a minha mãe! A incrível mulher que tirou de letra todo o luto, que voltou a trabalhar rapidinho, me largou com a minha avó que tinha acabado de perder um filho e se enfornou no escritório, inclusive isso é o que ela mais faz, se enfornar naquele lugar. Não tá nem aí para os filhos, vive enfiada em cubículos com computadores ou obras. Seria mais fácil né, se ela ficasse só administrando os "bens" da família, os imóveis, sempre disponível quando eu precisasse. A vida não é assim Diego, nem todo mundo tem a facilidade de ter pais iguais aos seus.

– Ah, sinceramente Eduarda, vá pro inferno. Você não tem a mínima noção do que está falando, não é porque você tem a sua dor que os outros não tem também. A vida não é uma competição não, sabia? Todos temos problemas e o seu não minimiza o do outro. Você acha que com o meu pai é fácil assim? Deixa eu te contar só uma coisa, eu não vejo meu pai há mais de três anos, ele acredita que mandar presentes de aniversário e natal todo ano pode suprir a falta que ele fez a vida toda, a Gabriela terminou a escola e ele não teve a coragem de comparecer na formatura da própria filha! Então não vem dizendo que eu não entendo, ou que meu pai isso, minha mãe aquilo, porque você entende da sua dor e somente dela. Cresça.


Diego saiu batendo a porta e Duda ficou deitada pensando no que ele disse. Desde que tudo aconteceu, ninguém teve coragem de falar assim com ela. Sempre pensaram uma, duas, dez vezes antes de falar, procuravam uma maneira de não machucá-la ainda mais. Sentindo um aperto enorme no peito, sentiu que precisava escrever. Pegou seu celular para desabafar em seu blog.


Meu nome é Maria Eduarda. Me chamam de Duda, Du, Madu (apelido da escola), Eduarda, Maria (este último com bem menos frequência, mas meu pai me chamava assim quando eu aprontava). Tenho 19 anos e há cinco anos eu perdi meu pai. Mais precisamente, dia 11 de janeiro de 2009. Ele não estava presente no meu aniversário de 15 anos, não esteve na minha formatura e nem na do meu irmão.

Ele não viu a gente atingir a maioridade, não viu meu irmão entrar na faculdade, conseguir seu primeiro emprego. Ele nunca verá um de nós nos casar. Ele, aliás, não entrará comigo na igreja se este dia chegar.

Porém tudo isso que ele nunca viu ou vai ver, não anula tudo o que ele viu, tudo que pôde nos ensinar. Nossos primeiros passos, primeiras palavras, lágrimas, risadas, nosso primeiro dia de aula.

Ele presenciou tudo isso... Mas, como diz a música do cantor boêmio Nelson Gonçalves, "naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim".

Não é fácil estar aqui, onde tudo me lembra ele e todos falam dele com tanta alegria. Ele não estar mais aqui não é motivo de alegria. O pior é me pedirem para esquecer. Impossível esquecer a melhor pessoa que já passou pela minha vida. Eu só queria um abraço dele enquanto dizia que 'vai passar'.

Pai, sinceramente, eu espero que passe.


Duda terminou de escrever, enxugou suas lágrimas e decidiu tentar dormir. No fundo, sabia que Jonathan e Diego tinham razão. Este foi só o primeiro dia naquele lugar, uma hora ela teria que conviver com a ausência do pai ecoando por todos os cantos.

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