11

Jimin foi até sua biblioteca, fechou as portas e as trancou por dentro. Estantes ocupavam as paredes do chão ao teto. Uma escada de metal corria por um trilho que contornava todo o recinto, permitindo alcançar até a prateleira mais alta.

Não que ela precisasse da escada.

Pelos imensos painéis de vidro que formavam o telhado, pôde ver a lua e as estrelas piscando lá em cima. Ano após ano, século após século, havia fitado aquele mesmo céu. E a reação do céu era sempre a mesma: uma linda e fria indiferença.

O pensamento lhe arrancou um rosnado.

Não havia escolhido aquela vida; ela lhe fora imposta.

A Jimin tampouco tinham preparado, porque seus pais sempre quiseram protegê-la, mas morreram antes de lhe dizer a verdade sombria sobre o mundo em que viviam. As lembranças voltaram para sua mente com terrível clareza. No final do século XVI, Seul era um lugar brutal, especialmente para alguém que estava só no mundo. Seus pais tinham sido assassinados ante seus olhos dois anos antes, e ela tinha fugido daqueles que julgou serem demônios, pensando que sua covardia naquela espantosa noite era uma vergonha que devia suportar em solidão.

Era tremendamente magra, frágil e presa fácil para qualquer um em busca de diversão. Durante sua permanência nos subúrbios de Seul, tinham-na golpeado tantas vezes que se acostumara a que algumas parte de seu corpo não funcionassem bem. Para ela era habitual não poder dobrar uma perna porque tinham apedrejado seu joelho, ou ter um braço inutilizado porque tinham deslocado o ombro ao arrastá-la atada a um cavalo.

Alimentara-se do lixo, sobrevivendo à beira da inanição, até que, finalmente, encontrou trabalho como servente de um comerciante. Jimin limpara o chão, cadeiras de montar e pratarias até sangrar a pele das mãos, mas pelo menos podia comer. Seu leito se encontrava entre a palha da parte superior de um celeiro. Aquilo era mais fofo que o duro chão ao qual estava acostumada, embora nunca soubesse quando despertaria com um chute nas costelas porque algum cavalariço queria deitar-se com uma ou duas donzelas.

Naquele tempo, o amanhecer era a única coisa pela qual sua miserável existência ansiava. Sentir o calor no rosto, inalar a doce bruma, deleitar-se com a luz; aqueles prazeres eram os únicos que havia possuído, e os tinha em grande estima.

Tinha estado a serviço do comerciante durante quase um ano, até que todo seu mundo mudou de repente.

A noite em que foi acometida por uma terrível doença, jogou-se em seu leito de palha, completamente esgotada. Nos dias anteriores, havia se sentido mal e havia custado muito fazer seu trabalho, embora aquilo não fosse uma novidade.

A dor, quando chegou, atormentou seu frágil corpo, começando pelo peito e estendendo-se para os extremos, chegando à ponta dos dedos das mãos, dos pés, e ao final de cada fio de seus cabelos. A dor não era nem remotamente similar a qualquer das fraturas, contusões, feridas ou surras que tinha recebido até aquele momento. Dobrou-se e encolheu-se em meio da agonia e a respiração entrecortada. Estava convencida de que ia morrer e rezou para mergulhar o quanto antes na escuridão. Só queria um pouco de paz e que finalizasse aquele horrível sofrimento.

Então uma bela mulher de cabelos escuros apareceu para ela. Era um anjo enviado para levá-la a outro mundo. Nunca duvidou.

Como a patética miserável que era, suplicou-lhe clemência. Estendeu a mão para a aparição, e quando a tocou soube que o fim estava perto. Ao ouvir as palavras que pronunciava, ela tratou de sorrir como amostra de gratidão, mas não pôde articular nenhuma palavra. A mulher contou que estava ali para salvá-la e logo avançou em seu pescoço. Jimin estava fraca demais para sequer resistir ou questionar o que estava acontecendo.

E logo a mulher se afastou, abriu o punho com suas próprias presas e levou a ferida a sua boca, ela bebeu desesperadamente.

Mas a dor não cessou. Só ficou diferente. Sentiu que suas articulações se deformavam e seus ossos se deslocavam com uma horrível sucessão de estalos. Seus músculos se retesaram e logo se rasgaram, e teve a sensação de que seu crânio ia explodir. À medida que os segundos passavam, seus sentidos iam se modificando, até que ficaram terrivelmente aguçados. Sua respiração áspera e gutural feriu sua garganta enquanto tentava aguentar. Em algum momento desmaiou, finalmente.

Quando despertou na manhã seguinte, o mundo a sua volta estava diferente. A luz solar que tanto amava se filtrava através das ranhuras das pranchas do celeiro em pálidos raios dourados. Ela levantou, consciente de que seu corpo era bem mais forte do que no dia anterior. Confusa, olhou em volta apenas para constatar que não estava sozinha.

A mulher da noite anterior permanecia ali, como uma figura deslocada daquele celeiro, olhando para ela com notável interesse.

Alguns de nós são amaldiçoados pelos atos alheios e exilados no inferno sem terem cometido erro algum.

Era raro ela se permitir pensamentos assim. Eles instigavam sua raiva e punham sua disciplina à prova. Nessa noite, foi impossível afastá-los.

Em um momento crítico tinha visto a bondade sumir do mundo, a própria vida se esvair. Em um momento crítico, não conseguira impedir que isso acontecesse. No presente, ao topar com Minjeong, tivera o poder de fazer alguma coisa.

E tinha mesmo feito alguma coisa.

O mais interessante era que a bondade de Minjeong não era fria e indiferente, como sua reação retardada ao beijo indicava.

Pensar isso a deixou perturbada.

Jimin se lembrou de sua raiva, enterrada tempos antes. Lembrou-se dos séculos de desespero e desesperança que havia suportado até a noite em que encontrara a jovem de olhos castanhos caída em um beco.

Com as lembranças gravadas com firmeza na mente, sentou-se atrás da mesa e olhou para o céu noturno.

\[...]

Na manhã seguinte, Minjeong acordou tarde. Tinha passado a maior parte da noite se revirando na cama, com a cabeça a mil, preocupada.

Encontrou sobre a mesa de cabeceira um cartão indicando que deveria chamar a governanta para pedir o café da manhã. O cartão em si não tinha nada de mais. O fato notável foi que Minjeong se pegou estreitando os olhos para conseguir ler a elegante caligrafia da mulher. Sentiu um peso no peito ao entender que a sua visão estava voltando ao que era antes de Jimin resgatá-la.

Se é que ela a havia mesmo resgatado.

À luz clara do dia, pensou se a história dela seria verdadeira. Jimin dizia que ela havia sofrido um traumatismo craniano mas, tirando uma ou duas dores de cabeça e a perda de memória, não havia qualquer indício físico desse fato. Havia, é claro, a estranha questão da mudança de sua condição. Perguntou-se como Jimin teria conseguido causar isso.

Jimin.

A mulher que escondia por baixo da fachada atraente e elegante uma criminosa com tendências violentas.

A mulher que a havia beijado na noite anterior.

Sua prática em matéria de beijos era limitada, mas ela soubera reconhecer a experiência dela. O reconhecimento fora acompanhado pelo banho de água fria da culpa. Minjeong disse a si mesma que não a havia afastado porque estava abalada emocionalmente. Estava assustada. Não podia sentir atração por uma criminosa. Independentemente de qualquer outra coisa.

Vestiu um roupão para receber a governanta e ficou encantada quando a mulher serviu seu café da manhã tardio na varanda do quarto.

Enquanto aproveitava o sol tímido no céu nublado, naturalmente começou a pensar na noite anterior.

Jimin dizia ter salvado sua vida e matado por isso. Embora fosse possível ela ter mentido em relação a isso, Minjeong não conseguia explicar as estranhas imagens que continuavam a invadir sua consciência, imagens de um beco escuro, de sangue e dos rostos desconhecidos que ela nunca vira antes.

Se Jimin havia matado para protegê-la, ela com certeza não aprovava isso. Sabia, porém, que sua história seria muito fantástica para a polícia acreditar.

Uma sombra se estendeu sobre a mesa.

– Bom dia – cumprimentou Jimin. – Descansou bem?

– Tive dificuldade para dormir. – Ela fechou mais as bordas do roupão. – Quer tomar café comigo?

– Eu já comi. – Ela saiu do sol e voltou para dentro do quarto, onde ficou parada no vão da porta.

Ela achou o movimento estranho.

– Não quer sentar sob o sol?

– Não – respondeu em tom calmo. Jimin indicou sua pele clara com um gesto.

– Você se queima com facilidade?

– Acho o sol um pouco incômodo e tenho tendência a evitá-lo sempre que possível. O café da manhã está do seu agrado?

– Sim, obrigada.

Minjeong sentiu-se pouco à vontade comendo na sua frente. Empurrou a bandeja para longe, deu um golinho no café e olhou para os vastos jardins e árvores nos fundos da propriedade.

– Sua casa é linda.

– Obrigada.

A musicista mudou de posição na cadeira para olhá-la. Suas roupas estavam impecáveis e limpas, embora ela parecesse estar usando a mesma camisa e jeans pretos da noite anterior.

Minjeong concluiu que ela devia estar usando roupas novas parecidas com as outras.

– Você sempre se veste de preto?

Jimin pareceu espantada com a pergunta.

– Ah, sim.

A proximidade dela a fez pensar no beijo que haviam trocado na noite anterior. Lembrou-lhe também que ela tivera de se convencer a não matá-la. Estava na hora de se libertar daquela situação.

– Obrigada pela sua hospitalidade e por ter me resgatado na noite passada. Preciso mesmo ir andando. Gostaria de voltar ao meu trabalho no Teatro. – Ela pousou a xícara de café na bandeja e lhe abriu um sorriso calculado para desarmá-la.

– Infelizmente, não posso deixar você ir embora.

Uma sensação de alarme se instalou no corpo de Minjeong.

– Por que não?

– Precisamos ter uma conversa mais longa. Vou deixá-la à vontade para se vestir e esperá-la no primeiro andar. Você tem uma hora.

Minjeong observou-a atravessar o quarto em direção à porta com as costas retas feito um poste.

– Não quero esperar – chamou ela. – Vamos conversar agora.

Jimin parou por alguns instantes, então se virou.

– Não podemos conversar aqui.

– Por quê?

A Princesa se reaproximou dela tão depressa que foi quase um borrão.

– Porque a sua proximidade da minha cama me lembra todas as coisas que eu preferiria estar fazendo com você.

A boca de Minjeong se escancarou.

Jimin demorou alguns instantes para recuperar o controle, tentando forçar o corpo a obedecer à mente.

– Vista-se e desça.

Ela voltou à porta e a fechou atrás de si. Atônita, Minjeong continuou sentada na cadeira.

Não estava acostumada a receber esse tipo atenção. Em geral, havia sido tratada meio como um papel de parede ou uma peça de mobília.

Na faculdade, tivera duas namoradas. A primeira era afetuosa, mas não especialmente apaixonada. A segunda fora infiel. Nenhuma das duas jamais havia agido com ela como Jimin acabara de fazer, nem mesmo em seus momentos mais íntimos e secretos.

Mas ela era uma criminosa. Precisava se lembrar desse fato.

Decidiu não perder tempo com o assunto e foi até o guarda-roupa. Ao percorrer os cabides e as prateleiras de roupas, constatou que havia peças de vários tamanhos, incluindo o seu. Ou Jimin havia providenciado roupas para ela quando estava lhe salvando a vida, ou previra sua volta a residência. Minjeong não sabia o que pensar sobre nenhuma das duas possibilidades.

Escolheu um sueter branco, que equilibraria com os jeans claros e um par de tênis. Então se trancou no espaçoso banheiro para se aprontar.

Quando Minjeong chegou ao primeiro andar, a governanta estava à sua espera. Acompanhou-a até uma sala mais adiante no corredor, que disse ser a biblioteca, abriu a porta e a deixou na companhia de Jimin. Ela encarou os livros boquiaberta, andando em círculos e tentando absorver a imensa e variada coleção.

Ficou assombrada que alguém tão jovem tivesse conseguido reunir um acervo tão extenso.

Jimin estava em pé nos fundos do recinto, fitando os jardins a partir de uma imensa janela que ia do chão quase até o teto. Ela não se virou.

Um concerto de piano de Mozart tocava. Minjeong reconheceu a música, que parecia sair de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo. Olhou em volta à procura de sua origem, mas não conseguiu encontrá-la.

Jimin se aproximou e cruzou os braços diante do peito.

– Prepare-se para ver seu universo se expandir, Minjeong.

– Então me explique. – Ela imitou sua postura. – Você só vem falando por meio de enigmas. Chegou a hora da verdade. Quem é você e em que está envolvida? Por que isso me coloca em perigo?

– Você viu um dos meus com seus próprios olhos. Ele poderia ter sugado sua vida em questão de minutos.

– Achei que Seul fosse relativamente segura à noite. Vou tomar mais cuidado.

– Você precisa parar com essa atitude e abrir os olhos – disparou Jimin. – Estava usando uma relíquia, e ele manteve distância. Isso não basta como indício do sobrenatural?

Minjeong abriu a boca para rebater, mas pegou-se incapaz de formular uma resposta inteligente. Jimin balançou a cabeça.

– Raciocine. Ele não decidiu ficar longe de você; foi forçado a manter distância. De que outras provas você precisa?

– Concordo, ele me evitou. A questão é: por quê? Talvez haja algum fundo de verdade na sua crença em relíquias. Mas talvez seja só um efeito placebo.

Jimin chegou mais perto.

– Sua visão está temporariamente curada. Quais são as suas explicações científicas para isso?

– Não tenho nenhuma. Escute, Sra. Yu, acho que mereço a verdade. Alguma coisa estranha aconteceu comigo. Minha memória está confusa. Diga o que me deu e pronto, para eu poder ir consultar um médico.

– Um médico não saberia o que fazer com você. Ele tiraria seu sangue, faria um teste e descobriria que ele contém substâncias totalmente estranhas à biologia humana.

Minjeong se sobressaltou, visivelmente abalada com o que ela dissera.

– O que você me deu? – sussurrou.

– Você está fazendo a pergunta errada. Deveria estar perguntando quem sou eu.

Minjeong pressionou os lábios um contra o outro.

– Eu sei quem você é. Uma criminosa que tem investido no Teatro Nacional por que aparentemente tem fascínio pela música clássica.

– Faço patrocínio ao Teatro Nacional desde sua inauguração.

– Isso em 1950? – Minjeong riu. – Mas nesse caso você teria...

– Sim.

Ela revirou os olhos, sem acreditar.

– Qual é a sua ligação com o Teatro Nacional?

– Não é da sua conta.

– Percebi que a maioria dos seus instrumentos são dignos de um museu da história da música, incluindo o piano no salão principal. Há quanto tempo está com ele?

Jimin ficou parada, encarando-a com um olhar tão intenso que Minjeong chegou a senti-lo na pele.

– Desde que foi fabricado.

A musicista soltou uma gargalhada desdenhosa.

– Bela tentativa, sua idosa. Os primeiros Steinway foram fabricados por volta de 1853.

– Como você disse, eu tenho fascínio pela música. Natural que cuide bem das peças que tenho na minha casa.

Minjeong balançou a cabeça e começou a andar em direção à porta.

– Não acho graça nos seus delírios. Sinto é pena. Você precisa procurar ajuda, e eu preciso ir para casa.

Jimin passou por ela em um borrão e se postou diante da porta, impedindo-a de sair. Chocada, Minjeong arregalou os olhos.

– Como fez isso?

– Sou rápida. – Ela se afastou da porta e andou na direção dela. A musicista recuou, erguendo a mão como se quisesse mantê-la afastada.

– Você é perturbada. Me deixe ir embora.

Determinada, Jimin continuou a se aproximar.

– Se eu deixar você ir embora, todo o meu esforço terá sido em vão. Algum dos meus vai encontrá-la e matá-la. Ou coisa pior.

Ela gelou.

– Como, por exemplo...?

A Princesa parou quando seus pés estavam quase se tocando.

– Fazer de você seu brinquedo até se cansar.

Ela estava tão próximo que Minjeong pôde sentir seu hálito no rosto.

Concentrou-se na porta, esforçando-se para não se deixar distrair pela proximidade da intrusa. De repente, entendeu.

– Você faz tráfico de pessoas. – Encarou o rosto dela. – Vende-as como escravas sexuais.

A expressão de Jimin mudou depressa de raiva para surpresa, e então para uma expressão divertida.

– Não exatamente.

– Quem mais tem seres humanos como brinquedos?

– Os que se alimentam deles, embora isso não seja bem uma necessidade.

– Se alimentam? – Com os olhos cravados em Jimin, Minjeong começou a recuar. – Você é um canibal.

Jimin se empertigou até atingir sua altura completa.

– Não exatamente. Sou uma vampira.

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