07
Em uma manhã de sexta-feira, Minjeong sentou-se na cama e abraçou um travesseiro junto ao corpo. Todas as luzes do seu apartamento estavam acesas. A porta e as janelas estavam trancadas. Nós últimos dias ela não havia dormido muito bem. Sua mente estava tomada por medo e ansiedade, e esses sentimentos haviam assombrado seus sonhos.
Depois de se recuperar do choque, havia cogitado procurar a polícia. Uma simples olhada para o outro lado da rua a fizera mudar de ideia. Não sabia ao certo se estava sendo vigiada ou não, mas não descartava a possibilidade de que existisse algum cúmplice da intrusa de olho nela. Não iria chamar sua atenção pedindo uma visita da polícia.
Fosse quem fosse aquela mulher, ela parecia conhecê-la, ou pelo menos passara o dia seguindo seus passos. Sabia que Minjeong trabalhava no Teatro Nacional. Sabia onde ela morava. De alguma forma, sabia também sobre a sua ligação a administração. Das duas, uma: ou a tinha visto, ou simplesmente ficara sabendo que ela ligara para lá; A musicista não tinha certeza.
A intrusa havia entrado no seu apartamento pela varanda, no segundo andar do prédio. Talvez fosse uma escaladora, o que explicaria como conseguira subir até ali sem se machucar.
Se fechasse os olhos, podia ouvir a voz dela. Embora lhe soasse conhecida, não conseguia identificá-la. Mas conseguia recordar sua aparência e seu cheiro.
Abriu os olhos e observou seu quarto. Seu notebook, violino e algumas joias sem grande valor continuavam ali, como se ela não houvesse se dignado a roubá-los. Sua bengala estava apoiada na parede junto à escrivaninha. Não se lembrava de vê-la ali mais antes, mas era possível que não tivesse percebido. Por que a intrusa mudaria sua bengala de lugar?
Além dessas anormalidades, ela lhe deixara um presente.
Minjeong ergueu o crucifixo do peito. O pingente parecia de ouro; o metal era fino e fora trabalhado com um martelo por trás de modo a formar uma escritura em relevo. O estilo era primitivo e os detalhes mal podiam ser distinguidos, o que a levou a acreditar que a peça era pré-renascentista, provavelmente medieval.
A corrente dourada na qual estava suspensa tinha um aspecto bem mais recente, e também parecia de ouro.
Minjeong não conseguia imaginar por que a intrusa acreditaria que um pedaço de ouro poderia protegê-la dos “outros”, fossem quem fossem. Mas não custava nada usar a cruz, só para garantir. Talvez ela funcionasse porque os outros tinham medo dela, não porque ela possuia poderes sobrenaturais.
O presente por si só já fora estranho. E depois a sua atitude havia mudado, e ela a tocara com delicadeza.
Mais estranho de tudo, chamara-a pelo seu nome.
Não sabia como ela havia descoberto seu nome verdadeiro, mas não fora vasculhando seu apartamento. O nome oficial era mencionado na sua ficha profissional, então era possível que ela tivesse descoberto pelo Teatro Nacional.
Minjeong ainda cogitou o envolvimento da polícia, mas uma vez que ela parecia querer mantê-la longe disso, com certeza não ficara sabendo seu nome por alguém que a conhecia. Pelo menos não por alguém que a conheceu depois do acidente. Antes disso seria outra história.
Ela passou alguns segundos pensando em como sua mente sempre usava um eufemismo para se referir ao acontecimento que havia causado sua deficiência. Fechou os olhos e lembrou a si mesma que, fosse qual fosse a palavra que usasse, os efeitos haviam desaparecido. Esse fato por si só tornava mais positiva sua disposição em relação ao passado, embora só de leve.
Ainda recusava-se a saber da mãe, falar com ela ou estar no mesmo recinto. Ou seja, não via a mãe desde que saíra de casa por uma ordem judicial, mais de dez anos antes. E isso provavelmente não mudaria num futuro próximo.
Saindo da cama, ela foi até o banheiro na tentativa de deixar de lado os pensamentos sobre sua complicada vida familiar. Perguntou-se o que faria algum grupo misterioso se interessar por ela. Não iria abandonar tudo que havia se esforçado tanto para conseguir só porque uma criminosa enigmática ligada a uma associação secreta tinha invadido seu apartamento para lhe ameaçar.
Irritou-se ao recordar o que a intrusa tinha dito sobre seu talento para detetive. Redobraria os esforços para investigar Yu Jimin e sua ligação com o Teatro Nacional, e torcia para conseguir encontrar alguma coisa que explicasse toda aquela situação.
Enquanto saia do banho, seu olhar baixou para a relíquia em volta de seu pescoço. Ela teria que continuar usando-a apesar de tudo.
Resmungou alguns palavrões escolhidos a dedo e foi se vestir.
\[...]
A tarde começou e terminou. Minjeong havia retomado o ensaio com a orquestra do Teatro, e a essa altura ninguém mais mencionava o fato sobre ela estar enxergando. Na verdade, seus amigos pareciam felizes por tal acontecimento. Enquanto guardava seu violino no estojo, Sunghoon se aproximou. Vestia roupas casuais e trazia em mãos o estojo do violão clássico que tocava.
– Bela peça. – Ele indicou o crucifixo em volta do seu pescoço.
Minjeong baixou os olhos para a relíquia. Havia esquecido que a estava usando.
– Ah, isso. – Ela a ergueu e a observou por um instante.
Sunghoon a encarou com um ar intrigado.
– Posso?
– Claro.
Ele examinou a cruz mais de perto, observando a escritura desenhada em relevo à luz que entrava por uma das janelas.
– É bem antigo. Onde arrumou?
– Uma amiga me deu.
Ele soltou a cruz na mão dela.
– Deve ser uma amiga bem importante.
Parece uma peça de museu.
Minjeong moveu o colar para escondê-lo debaixo da camisa.
Sunghoon baixou a voz.
– Chaewon e eu vamos à um café agora. Você gostaria de se juntar a nós?
Minjeong lhe abriu um pequeno sorriso.
– Claro.
Ele fez um carinho nos cabelos dela.
– Quando é que vou conhecer a namorada que presenteia peças de museu?
Ela revirou os olhos.
– Quando eu a tiver conhecido.
Sunghoon riu e a acompanhou até a saída, onde encontraram com Chaewon. Depois de um rápido cumprimento, eles seguiram a rua movimentada até o café próximo do teatro. Minjeong se sentia animada diante da perspectiva de passar uma noite relaxante com os amigos.
Quando ela se despediu deles, já passava das dez da noite. O encontro havia se prolongado até a sobremesa, depois em uma noite regada a conversas e debates sobre música.
O céu estava fechado após uma chuva forte. Como sempre, ainda havia alguns pedestres e motoristas nas ruas molhadas. Todos os outros haviam buscado abrigo em algum lugar. Ou assim parecia.
Minjeong seguiu calmamente pela Ponte Bampo. Quando chegou a praça próxima a rua onde morava, constatou que ela estava vazia. Em geral, as mesas ao ar livre do bar em frente ao seu apartamento ou dos cafés estavam ocupadas àquela hora. A praça em si muitas vezes ficava cheia de estudantes. Várias universidades americanas tinham programas de intercâmbio cujos alojamentos ficavam ali por perto. Como havia chovido forte, porém, não era de espantar que a praça estivesse vazia.
Ela estava a pouco metros de casa quando ouviu alguma coisa. O barulho em si já era estranho, um misto de rosnado e metal cortando o ar.
Virou-se para trás e viu algo se mexer do outro lado da rua. A penumbra atrapalhava um pouco sua visão, mas ela conseguiu discernir uma figura vestida de preto se movendo na sua direção. Quando a silhueta chegou mais perto, percebeu que era um homem. Ele se movia depressa, e seu contorno estava embaçado contra o fundo chuvoso.
Minjeong se virou e tentou sair correndo, mas seus tênis deslizaram nas pedras escorregadias do calçamento e ela caiu. Com força. Pôde ouvir o homem chegar mais perto, e seus passos soaram pesados nos seus ouvidos.
Pôs-se de pé o mais rápido que conseguiu e estava prestes a correr em direção ao prédio em que morava quando deixou cair as chaves.
– Merda! – Ela se abaixou para pegá-las e esperou pelo pior.
Olhou com raiva para a relíquia pendurada em seu pescoço e se preparou para o impacto, pois sabia que o chão estava escorregadio demais para correr.
Não há nada que eu possa fazer, pensou.
Ouviu um barulho de algo deslizando e roçando no chão, como se alguma coisa tivesse tentado parar de forma súbita e abrupta. Virou a cabeça na mesma hora em que o homem parou a poucos metros de onde ela estava.
– Tire essa porra do pescoço! – Bradou ele com um olhar furioso. Minjeong olhou através da penumbra e percebeu que ele era alto, de cabelos compridos e castanhos. Quando abriu a boca, deixou à mostra um par de longas presas entre dentes brancos alinhados.
O homem grunhiu, acenou com os braços e começou a andar de um lado para o outro. Mas manteve distância.
– Sua puta! Tire essa porra do pescoço! – Ele gritou. – Vou morder o seu pescoço e chupar todo o seu sangue.
Minjeong recuou, aumentando a distância entre eles enquanto o homem continuava a vociferar de modo quase obsessivo.
Ele começou a berrar palavras que ela teve dificuldade para compreender. No entanto, estranha e inexplicavelmente, não se aproximou mais. Simplesmente ficou andando de um lado para outro, resmungando.
Minjeong se levantou, e sem olhar para trás, correu derrapando no chão até a porta de seu prédio. Bateu a porta atrás de si e subiu a escada o mais depressa que pôde.
Foi só já dentro do seu apartamento, com a porta trancada e todas as luzes acesas, que desabou no chão, segurando o cordão de ouro em volta do pescoço.
\[...]
A Princesa estava inquieta. Ningning havia lhe informado que Seokjin tinha saído da cidade e ido para Icheon a negócios. No contexto geral, a partida dele pouco importava. Não havia nenhum lugar no mundo além do seu alcance, apenas lugares mais práticos do que outros.
Icheon não era dos menos práticos.
Ela teria de solicitar à Princesa da região permissão para enviar um investigador ao seu território, mas havia muitos anos que as duas se davam bem. Duvidava que ela fosse lhe negar permissão. Era possível que exigisse um favor sexual, como já tinha feito no passado.
A Princesa era linda, mas Jimin se sentiu indiferente diante da possibilidade, e os seus pensamentos foram ocupados por uma mulher de longas cabelos e belos olhos castanhos.
Sua questão com o publicitário teria de esperar. Ela tinha outras preocupações mais urgentes.
Havia observado a jovem de longe, torcendo para ela lhe obedecer e fugir. Mas não. Ela continuava a ir ao trabalho. Se encontrara com alguns amigos. A Princesa soltou um palavrão.
Sim, tinha lhe dado uma semana, mas isso já fora uma concessão. Ela precisava de uma motivação de verdade. Precisava que alguém lhe mostrasse o que era o verdadeiro perigo.
No entanto, Jimin também andava pensando em outra coisa. Nessa noite, ela queria uma mulher humana. Queria beijar sua boca e apreciar seu corpo. Queria olhar nos seus olhos e ver confiança, não medo, e fazê-la dormir nos seus braços.
Queria Minjeong.
Por diversos motivos, não podia tê-la. Ou seja, precisaria sair em busca de uma substituta adequada.
Em uma noite de inverno, com as ruas quase vazias, seria difícil encontrar uma mulher que correspondesse aos seus padrões.
Foi assim que ela se viu em frente ao Silent Night, lugar que não visitava havia mais de um século.
Ao entrar na casa noturna, os que a reconheceram ficaram em silêncio. Foi cumprimentada com entusiasmo, ainda que de forma cautelosa, passando pelo barman e por seus cidadãos, que se curvavam numa mesura, oferecendo seus assentos.
A música estava alta, e a Princesa se pegou fazendo uma careta. Na verdade, o som tornava sua disposição já impaciente e excitada ainda mais perigosa.
Felizmente, os humanos a ignoraram. Para eles, era um entre muitos. Bonita, era verdade, mas não obviamente poderosa nem tão grande quanto alguns dos outros.
Aceitou uma cadeira que lhe foi oferecida e um cálice de sangue morno e ficou sentada em silêncio, observando os presentes. Se não podia ter Minjeong, pelo menos teria alguém que se parecesse com ela. Mas duvidava que alguém tivesse tão delicioso cheiro.
– Boa noite, minha senhora.
Os devaneios de Jimin foram interrompidos por uma jovem que se sentou ao lado dela. Vestia um vestido preto, e seus cabelos claros estavam presos deixando à mostra ombros pálidos e um pescoço elegante.
Ela reprimiu a irritação pela aproximação indevida, deu-lhe um aceno de cabeça e pôs a bebida de lado.
– Posso satisfazê-la, mestre?
Jimin a encarou.
– Me satisfazer? Como?
– De qualquer maneira que a senhora quiser. – A jovem se inclinou na direção dela e pôs a mão no seu joelhos.
– Qual é o seu nome? – Perguntou Jimin.
– Yena, mestre.
– Quantos anos você tem?
– Fui transformada cinquenta anos atrás, mestre. Estava aqui de férias. – Ela separou os lábios vermelhos, ávida.
– Uma jovem – murmurou Jimin. Ela afastou sua mão e ajeitou impaciente os punhos da jaqueta preta. – Como você é jovem, vou perdoar essa impertinência. Mas no futuro saiba que não tolero esse tipo de aproximação.
Ela curvou a cabeça.
– Me perdoe. A sua presença é uma grande honra. Só queria demonstrar meu respeito.
Jimin ergueu uma das sobrancelhas, cética.
– Tenho certeza de que alguns dos membros do Conselho aceitariam de bom grado a sua... generosidade – falou. – Nem todos nós somos iguais. Se você chegar a uma idade avançada, vai se lembrar disso.
Com um movimento de cabeça, ela a dispensou.
A jovem tornou a se curvar e se afastou para logo desaparecer no meio da multidão. A Princesa fez uma careta.
Nem sempre havia se comportado assim. Nos primeiros tempos depois de ser transformada, havia se esbaldado com os prazeres do corpo. Mas as correntes que havia usado em vida eram difíceis de romper. Ela ainda as usava, mesmo agora. Talvez fosse uma das únicas da sua espécie que ainda tinha escrúpulos sexuais.
Esforçava-se muito para escondê-los, e esse era um dos motivos pelos quais evitava o Silent Night mais do que qualquer coisa.
Jisu dizia a verdade. Como Princesa, poderia escolher quem quisesse. Mas o que desejava era uma jovem humana, não uma amante.
Ela passou a mão no rosto e se levantou. Talvez fosse melhor voltar para casa.
Neste instante, alguém entrou na sua frente.
– Aeri. – Ela disse surpresa.
– Perdoe a intrusão, minha senhora, mas apareceu uma situação que exige a sua atenção.
Jimin soltou um palavrão.
– O que foi que aconteceu agora?
– Houve um incidente próximo a Ponte Bampo.
À simples menção desse nome, a Princesa ficou paralisada.
Minjeong.
– Que tipo de incidente?
– Talvez devêssemos ir conversar em algum lugar mais reservado.
Com raiva, Jimin seguiu a passos firmes até a saída do estabelecimento, empurrando humanos e outros seres enquanto cruzava a pista de dança. Abriu a porta com violência e saiu para o beco. Chovia.
Aeri saiu logo atrás e fechou a porta com cuidado.
– Precisamos de privacidade – disse ao segurança, que assentiu e foi até o final do beco.
– O que houve? – Perguntou Jimin em voz baixa, com as mãos no quadril.
– Um dos nossos causou problemas no bairro residencial.
– Alguma vítima?
– Felizmente para nós, parece que o pior foi evitado.
– Já conseguiram capturá-lo?
Aeri balançou a cabeça.
– Taeyong está cuidando dessa questão.
A Princesa fez uma careta.
– Dobre imediatamente o grupo de busca e convoque uma reunião do Conselho o mais breve possível.
– A polícia da cidade recebeu denúncias por telefone. Há agentes no local, mas o nosso contato conseguiu adiar os interrogatórios diretos.
– O que exatamente foi denunciado?
– Testemunhas viram um homem vestido de preto ameaçando uma mulher. Ela fugiu para dentro de um dos prédios residenciais.
Jimin levou alguns instantes para processar a informação.
– A mulher foi ameaçada?
– Assim concluí.
Jimin ergueu uma sobrancelha.
– Por que ela não morreu?
– Segundo as testemunhas, o homem não se aproximou dela. A mulher devia estar usando um talismã.
A Princesa ficou alguns segundos em silêncio, pensativa.
– Temos os nomes dessas testemunhas?
– Temos.
– Não podemos apagar o ocorrido sem levantar ainda mais suspeitas. Peça para o nosso contato conduzir ele próprio os interrogatórios. Lembre-lhe de verificar a presença de câmeras ou telefones que possam ter tirado fotos. Se for preciso, ele pode alterar os relatórios.
Aeri assentiu com a cabeça.
– Sim, mestre. E a mulher?
Jimin se forçou a não reagir.
– Se estiver usando um talismã, ninguém vai conseguir se aproximar dela. Deixe que eu mesmo investigo o assunto.
A Conselheira a encarou com um ar curioso.
– Como quiser.
A Princesa dispensou sua companheira e instruiu o segurança a voltar para o seu posto. Então saltou na motocicleta parada no estacionamento e acelerou na direção da Ponte Bampo como se as forças do próprio inferno a estivessem perseguindo.
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