04
A mesinha de centro de Minjeong estava ocupada com lápis, borrachas e papel para tablaturas. O violino estava repousando sobre o sofá, e ela havia começado a roer a ponta de um lápis enquanto examinava sua mais recente composição.
Tinha se mantido focada nisso desde que chegara do teatro. O diretor Kim não a suspendera. Fizera-lhe perguntas detalhadas sobre sua nova condição e sua ausência. Seu comportamento frio pareceu ficar mais caloroso com as respostas dela. Ao fim da conversa, Minjeong ficou achando que o havia convencido de não estar envolvida em nenhum problema.
Ele a mandara recomeçar a trabalhar e lhe dissera que a ausência no ensaio de sábado teria que ser compensado nos próximos dias. Minjeong não questionou, estava aliviada por não ter sido suspensa nem demitida.
Sentada no chão da sala, ela suspirou e olhou para a varanda a sua frente.
Seu apartamento era um pequeno quarto e sala com vista para uma praça pública. A cozinha ficava na entrada do apartamento e não tinha janelas. Uma mesa simples com quatro cadeiras ocupava o espaço junto a uma das paredes, enquanto a bancada e os eletrodomésticos ocupavam as outras duas.
Minjeong cozinhava bem, ainda que sua comida fosse simples. Naquela noite, encontrou poucos ingredientes no armário e na geladeira. Deveria ter feito compras depois do trabalho, mas tinha preocupações mais urgentes.
Eram quase nove horas quando se sentou diante de um jantar modesto: macarrão com molho e uma pequena salada. Infelizmente a comida não a animou muito, pois estava muito aflita com a súbita mudança em sua condição e a sua falta de memória sobre todo o fim de semana.
Depois de comer, tirou a mesa e voltou para a sala, onde estava seu material de trabalho. Pegou seu violino sobre o sofá e o posicionou sob o pescoço.
Com um ligeiro floreio do arco sob as cordas, se permitiu mergulhar na composição que vinha criando há alguns dias.
Desde a infância, a música era sua principal forma de lidar com as emoções — as boas, as ruins e as intermediárias. Mesmo depois da limitação visual, Minjeong não conseguiu abrir mão da sua conexão com ela. Com os acordes refinados das cordas, entoados através do arco, ela se entregou à melodia, deixando com que tudo o que sentia fluisse para o violino em suas mãos.
Quando a música terminou, ela manteve os olhos fechados, ouvindo o eco das notas se esvaindo no ar.
Ficou modestamente satisfeita com o resultado, muito embora soubesse que faltava algo. Por impulso, assinou, inscreveu a data e guardou a partitura dentro de uma pasta.
Então, como se alguém estivesse sussurrando em seu ouvido, abriu o notebook, verificou que já passava das onze e digitou no Google o nome Yu Jimin.
Foi passando por várias páginas de resultados, mas nada chamou sua atenção. Com certeza, se houvesse alguma Yu Jimin morando em Seul, não era uma pessoa muito conhecida. Não havia referência alguma a seu respeito.
Ela lembrou o que ouvira Seokjin dizer ao diretor Kim. O publicitário descrevera Yu Jimin como uma reclusa que havia doado dinheiro para ajudar a restaurar o Teatro Nacional.
Quando Minjeong entrou na página do Teatro, descobriu que o principal trabalho de restauração fora feito muito tempo antes. Desde sua fundação em 1950, houve restauros em 1974, quando o distrito assumiu a administração do prédio, e reparos adicionais de 2001 a 2009. As modificações mais recentes no teatro haviam começado em 2012.
Era impossível que Yu Jimin tivesse financiado as restaurações anteriores a 2001. Isso significava que ela tinha de ser uma das financiadoras do restauro de 2012. Nessa época, o diretor Kim já estava trabalhando em uma das companhias do teatro, e certamente conhecia todo mundo que tinha alguma importância na cidade. Como ele não reconhecera o nome, provavelmente Seokjin estaria enganado.
Mas o publicitário parecia tão certo... E ficara indignado quando Namjoon alegara não saber do que ele estava falando.
Mais estranho ainda, Seokjin havia identificado Yu Jimin como financiadora do teatro. Minjeong tinha certeza de que o seu nome não constava na lista de convidados que Namjoon havia lhe mostrado mais cedo.
O contato telefônico da responsável pela administração do teatro não era tão difícil de conseguir: ficava disposto no site oficial deste. Ela poderia ligar para a responsável, dar uma conferida, e então esquecer essa história por completo. É claro que seria preferível fazer isso durante o dia, ou quem sabe depois do trabalho, mas ela chamaria atenção se visitasse o setor administrativo durante o dia. E havia também a questão de seu horário de trabalho.
Era possível, pensou, enquanto procurava o celular que só usava em raras ocasiões, que conseguisse falar com a administradora sobre os financiadores do prédio, uma vez que ela provavelmente estaria desocupada e talvez entediada naquele horário tardio. Os funcionários do Teatro Nacional eram um poço sem fundo de informações, e Minjeong sempre os havia considerado muito solícitos, bastava fazer o esforço de ir falar com eles.
Talvez a situação a houvesse deixado valente. Ou talvez fosse apenas a desconfiança de que não conseguiria dormir sem gastar um pouco de energia. Fosse qual fosse o verdadeiro motivo, encontrou seu celular, digitou o número disponível e caminhou até a varanda.
Apesar da hora, as ruas lá embaixo estavam repletas de pedestres e pessoas visitando umas às outras. Ela observou o movimento enquanto aguardava silenciosamente na linha.
Esperou o que lhe pareceu uma eternidade, observando o movimento dos pedestres e de um ou outro carro. Por fim, quando pensou que ninguém fosse atender, ela ouviu uma voz.
– Diga o que deseja.
Ela se inclinou para a frente, mais para perto da proteção em sua varanda.
– Boa noite.
– Diga o que deseja – repetiu a mulher com um tom neutro e indiferente.
– Desculpe incomodá-la – gaguejou ela, perguntando-se o que dizer. – Eu trabalho para Kim Seokjin – mentiu. – Deveria ter entrado em contato antes, mas tive alguns imprevistos. Estou procurando... hum... a senhorita Yu Jimin. Pode me dizer como consigo entrar em contato com ela?
Minjeong esperou uma resposta, arrependida do impulso de usar o nome do amigo do diretor Kim. Mas agora era tarde para ser discreta.
Internamente, tentou formular uma explicação para por que precisava de tal informação se seu chefe já tinha cuidado disso mais cedo. Mas a voz não lhe fez essa pergunta.
Na realidade, a voz não lhe perguntou nada. Houve um silêncio longo, carregado.
– Só um instante.
Ela ficou chocada. Não esperava que alguém fosse reconhecer o nome de Yu Jimin, quanto mais lhe passar uma informação de contato. Será que Seokjin estava certo, e Yu Jimin era uma das financiadoras do teatro?
Minjeong ficou muito nervosa. Se ela existisse mesmo e tivesse tomado providências para proteger sua identidade, como se sentiria com o fato dela aparecer perguntando por ela?
Deu alguns passos para trás com cuidado, olhando em volta para tentar ver se havia alguém suspeito por perto. Por ora, pelo menos, parecia estar sozinha.
Decidiu que seria mais seguro entrar em casa. Ao se mover, ouviu a voz do outro lado da linha e teve um sobressalto.
– Não tem ninguém aqui com esse nome. Tenha uma boa noite. – Disse a mulher em um tom mais hostil.
Ela respirou fundo.
– Desculpe, não foi minha intenção incomodá-la, e...
A mulher a interrompeu rispidamente.
– Tenha uma boa noite.
Depois que desligou, Minjeong entrou em casa o mais depressa que suas pernas conseguiram.
Ela estava aflita demais para perceber que havia atraído a atenção da ser decididamente não humana em pé no alto do prédio do outro lado da rua.
\[...]
Jisu olhou seu relógio. Eram pouco mais das onze, o que significava que a diversão acabava de começar. Era uma segunda-feira à noite de começo de janeiro, e os universitários começavam suas férias e estavam ansiosos por competir nas Olimpíadas da Estupidez.
À medida que atravessava o Silent Night, ela esboçou um depreciativo sorriso enquanto a multidão tropeçava entre si para se afastar de seu caminho. De seus poros emanava medo, uma curiosidade mórbida e luxuriosa. Se esbarrasse em algo, não lhe importava. Dava no mesmo o que fosse: uma cadeira, uma mesa, um humano..., simplesmente passava por cima do que fosse.
Jisu se sentou em uma poltrona. Olhou fixamente à frente e observou à multidão ocupando de novo o espaço que ela tinha deixado entre eles.
O Silent Night era uma casa noturna secreta situada no centro da cidade, fundada pela Princesa no século XVIII como uma espécie de local de encontro. Com o tempo, havia se transformado em algo bem menos intelectual, e agora era propriedade do Conselho de Seul, embora a verdadeira dona se escondesse por trás do nome de uma empresa americana.
Seul e os outros principados secretos da Ásia existiam há muitas gerações. Governantes secretos e seus conselheiros controlavam a população sobrenatural dentro de fronteiras específicas, em geral cidades. Na Idade Média, os principados da Coreia tinham sido organizados sob o governo geral do Imperador, em Seul.
Atualmente, Jimin detinha o poder absoluto da cidade. Sábia, havia instaurado o conselho governante, do qual era membro honorário. O conselho funcionava como uma corte, e punia ou bania quem violasse a lei. Além disso, supervisionava a organização e a proteção da sociedade do submundo, sobretudo contra incursões de outras cidades ou territórios.
Quando Jimin se cansava de lidar com o Silent Night, o conselho assumia o controle e o usava para se divertir e se alimentar.
A casa tinha um grande espaço central com pista de dança e bar; dois lados dessa área eram ocupados por algumas mesas e sofás baixos. As paredes e o teto eram pintados de um roxo quase preto, a iluminação era sensual e esparsa, e os móveis eram estofados de veludo preto ou vermelho.
Corredores conduziam do espaço central para quartos particulares, onde a diversão subia de nível.
Jisu observou os corpos a se contorcer na pista de dança enquanto sua mente bloqueava as batidas da música alta. Os de sua espécie eram sensíveis ao som, e ela sempre achava a música eletrônica dissonante. Como era esse o estilo que atraía os humanos, era isso que o DJ tocava.
O bar servia álcool para os humanos. Vítimas inebriadas eram mais fáceis de manipular e confundir, mas as substâncias afetavam o gosto. Os mais antigos e mais poderosos evitavam seu uso e, em vez de sedar suas presas, preferiam seduzi-las ou hipnotizá-las.
Jisu não ligava para o que os outros faziam com seus bichinhos de estimação humanos ou uns com os outros. Como uma dos seis integrantes do Conselho, era obrigada a seguir as regras do Silent Night e cuidar para que fossem respeitadas.
"Nada de mortes."
"Nada de transformações."
"A alimentação deve ser consensual, mas o controle da mente e o uso de álcool é permitido."
A última regra intrigava muita gente, mas servia para manter a atmosfera de sedução. Era pouco provável que os humanos aparecessem para se oferecer noite após noite caso vissem outro humano derrubado no chão, violado e esvaziado de todo seu sangue.
O controle da mente não funcionava em alguns humanos. Os de mente mais forte não podiam ser dominados, tampouco aqueles que usavam determinados talismãs. Mas os membros dessas duas últimas categorias não podiam entrar na boate, mesmo que implorassem.
Jisu deu um suspiro. As regras deviam ter sido feitas pela própria Princesa, apesar de seu desprezo pela boate. Nelas se podia ver seu controle e a humanidade que existia logo abaixo da superfície da sua pele.
Ela sorriu.
Naquela manhã, Jimin havia deixado que seu corpo a governasse. Eram esses os momentos de que ela mais gostava; quando a tensa e contido Princesa dava e recebia prazer. Ela era magnífica. Era poderosa. Era perigosa.
A loira a queria. Apesar do desdém por casos de longo prazo, Jimin havia se mostrado uma excelente amante. Jisu sentia bastante desejo por ela, e até mesmo algum afeto.
E, mais ainda, queria a sua cidade. Se ela fosse a sua consorte, as duas dividiriam o poder, e quando o destino dos de sua espécie um dia acometesse a Princesa, o controle da cidade seria seu.
– Você parece estar querendo companhia. – Uma voz suave soou em seu ouvido.
– Yeji. – Ela sorriu calorosa para a mulher alta inclinada acima dela.
A recém chegada a beijou na bochecha e acenou para a garçonete lhe trazer uma bebida.
– Como vai a bela Jisu hoje à noite? – Yeji sentou-se ao lado dela no sofá e pôs um braço em volta do seu ombro.
– Neste momento, entediada. – Ela deu um suspiro exagerado.
– Tenho certeza de que posso animar um pouco a sua noite. – Yeji piscou para ela, e Jisu riu.
Quando as bebidas chegaram, as duas brindaram e beberam. Yeji pousou o copo sobre uma das mesinhas próximas.
– Então, o que você me diz? – Ela alisou seu pescoço com as costas da mão. A loira inclinou a cabeça na direção da carícia.
– Vamos manter nossa conversa dentro dos limites do razoável, Yeji. Embora eu esteja muito tentada a lhe dar carta branca neste momento.
Ela a fitou com um olhar de desejo.
– Vou me lembrar disso. Fiquei sabendo que Hyujin teve problemas com a Princesa.
– Problema com o Princesa é problema comigo. – O tom de Jisu foi incisivo.
Yeji sorriu com tristeza.
– Infelizmente, cheguei tarde.
– Não tão tarde assim. – Ela a beijou com delicadeza, mas afastou-se antes de outra poder retribuir. – Como vão as coisas na inteligência?
Yeji grunhiu e limpou a boca com as costas da mão.
– Meu contato na interpol está fornecendo tudo o que preciso. Nossa permanência em Seul está segura.
Ela arqueou uma das sobrancelhas.
Yeji franziu o cenho.
– O que foi? Estou dizendo a verdade.
– Um caçador passou pelas patrulhas alguns dias atrás. Aeri o pegou, mas ele conseguiu fugir.
– Taeyong é o responsável por esse setor. Ele garantiu que foi um incidente isolado, mas já enviou um grupo de busca. Daqui a pouco devem o encontrar.
– Assim espero. – Ela disse em tom sério. – Não se esqueça do que aconteceu dois anos atrás: a Princesa teve que se livrar sozinha de um grupo de assassinos. Eles a emboscaram perto de um hotel.
Yeji deu uma risadinha.
– Ela é uma antiga. Sabe se proteger.
– Um grupo de caçadores pode derrubar um antigo. – Ela deixou o olhar se perder ao longe por alguns instantes. – Quantos anos você acha que ela tem?
– Sou mais nova em Seul do que você.
Jisu encarou com curiosidade os seus olhos claros.
– Se tivesse que chutar?
Yeji correu os dedos pelos cabelos ruivos.
– Mesmo que não soubesse nada de história, chutaria que é uma antiga, considerando sua força e sua disciplina. Os antigos têm pelo menos 400 anos. Como ela governa este principado desde o século XVII, deve estar nessa faixa.
– Ela ainda tem muito tempo – murmurou a loira.
Yeji acenou com a mão no ar.
– Eu ainda me recuso a acreditar nessa questão. Se é mesmo uma maldição, como poderia afetar a todos nós? Eles não teriam de saber da existência da cada um e nos amaldiçoar individualmente?
Jisu estremeceu, como sempre acontecia quando seu inimigo era mencionado.
– Não fale neles.
– Como quiser. Mas não acho que sejam tão poderosos quanto todo mundo pensa.
– Como vai Busan? – Perguntou ela, mudando de assunto.
– Os cidadãos parecem extremamente contentes, considerando a sua história. Dizem-me que preferem estar subordinados a nossa princesa do que ao antigo lider. Acham que ele era um tirano.
– Um tirano extremamente inteligente. Não consigo entender por que tentou um golpe tão mal preparado quando sabia do poder da nossa princesa.
Yeji deu de ombros.
– Nossa cidade é muito desejável. Ele queria expandir seu território.
– O rei jamais permitiria isso.
– Quem pode saber o que o rei realmente planeja? Ele não faz audiências públicas há anos. Acho que foi destruído, mas que eles mantiveram vivo o seu nome, referindo-se a quem quer que esteja no governo como “o rei” para manter todo mundo na linha.
Jisu passou alguns instantes a observá-la para ver se ela estava falando sério. Então deu uma risada baixa.
– Talvez você tenha razão. Desde o encontro de Aeri com o caçador, estou querendo convocar uma reunião. Precisamos aumentar as patrulhas de fronteira para nos protegermos das incursões.
Yeji acariciou a bochecha de Jisu com um dedo só e comentou:
– Não entendo por que você não é a conselheira da Princesa.
Ela revirou os olhos.
– Porque Aeri foi a escolhida. Ela conhece a Princesa há muitos séculos, eu não.
– A Princesa é uma tola.
– Não vou discutir a esse respeito.
Yeji ergueu o copo.
– À sua saúde, Jisu. Que você viva para sempre.
Ela também ergueu o copo.
– Que eu viva mais do que isso.
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